15 Fevereiro 2023
Daqui a um mês, ocorrerão os 10 anos da eleição do Papa Francisco. Nas próximas semanas, dedicarei algumas colunas à reflexão sobre essa fascinante década da história papal. Não se trata de um obituário precoce. Eu também explicarei como os últimos 10 anos pintam um quadro daquilo que podemos esperar quando o Santo Padre iniciar sua segunda década guiando a barca de Pedro.
O comentário é de Michael Sean Winters, escritor e jornalista estadunidense, em artigo publicado em National Catholic Reporter, 13-02-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A primeira coisa que distingue a abordagem do Papa Francisco ao ministério petrino é sua sensibilidade pastoral. De fato, foi isso que o distinguiu naquela primeira noite em que foi eleito em 2013. Depois de saudar a multidão com um “buona sera” e lhes dizer que os cardeais haviam ido ao “fim do mundo” para encontrar um novo bispo para Roma, ele pediu à multidão que rezasse primeiro por seu antecessor, o Papa Emérito Bento XVI. Depois, ele conduziu as pessoas na praça na oração do Pai-Nosso, da Ave-Maria e do Glória, orações que até uma criança saberia. Em seguida, pediu ao povo que rezasse por ele, seu novo bispo. Antes de dar a bênção, curvou-se e deixou o silêncio envolver a enorme multidão. Então, ele proferiu a bênção e desejou boa noite a todos.
No dia seguinte, soubemos que ele não moraria no Palácio Apostólico, mas sim na Domus Sanctae Marthae, uma hospedaria para visitantes ao Vaticano. Isso foi erroneamente interpretado como uma indicação de sua preferência pela pobreza. O apartamento papal no Palácio Apostólico não é, apesar do nome, particularmente suntuoso. Os apartamentos de Rafael e os apartamentos Borgia, que um turista pode visitar em um passeio pelos Museus do Vaticano, são luxuosos, mas o apartamento papal era comum. Também era remoto, e Francisco indicou que sua mudança refletia sua necessidade de estar perto das pessoas.
O Papa Francisco causou alvoroço no início de seu pontificado quando, durante uma coletiva de imprensa no avião papal voltando do Brasil, foi questionado sobre os padres gays. “Se alguém é gay e busca o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para julgar?”. Cabeças explodiram! Como um papa poderia dizer uma coisa dessas? Os críticos conservadores expressaram “confusão”, mas o restante de nós reconheceu um pastor mais interessado em encorajar as pessoas do que em julgá-las.
O Papa Francisco pregava todas as manhãs na capela da Domus, e o Vaticano publicava uma sinopse dos textos. Os sermões eram caseiros, acessíveis. Havia densidade em um sermão de Ratzinger, mas não em um sermão de Bergoglio. Isso não quer dizer que eles eram superficiais. Pelo contrário, há uma radicalidade no sermão de Bergoglio. Ele tem o dom de chegar ao cerne da questão e fazer isso de uma forma que ressoe na pessoa sentada no banco.
Um dos meus sermões favoritos daqueles primeiros anos foi proferido em 15 de dezembro de 2014, quando Francisco pregou sobre os sumos sacerdotes que questionavam Jesus sobre a autoridade com que ele ensinava. A certa altura, o Santo Padre falou sobre o caráter do escrúpulo em todas as épocas: “Este é o drama da hipocrisia desse povo. E Jesus nunca negocia seu coração de Filho do Pai, mas era muito aberto às pessoas, buscando caminhos para ajudá-los. ‘Mas isso não pode ser feito; nossa disciplina, nossa doutrina diz que isso não pode ser feito!’, eles dizem. ‘Por que seus discípulos comem trigo nos campos quando viajam, nas dia do sábado? Isso não pode ser feito!’ Eles eram tão rígidos em sua disciplina: ‘Não, a disciplina não pode ser tocada, é sagrada’”.
E acrescentou uma confidência: “Por vezes, quando eu encontro um cristão, uma cristã assim, com o coração débil, vacilante, não firme na rocha e com muita rigidez fora, peço ao Senhor: lança-lhe à frente uma casca de banana, para que escorregue, se envergonhe de ser pecador e assim te encontre a ti, que és o Salvador’. Muitas vezes um pecado faz-nos envergonhar e encontrar o Senhor, que nos perdoa, como os doentes que estavam ali e ia encontro do Senhor para serem curados”.
Lembro-me de rir alto quando sentei na frente do meu computador, ao ler sobre aquela casca de banana!
Às vezes, o estilo pastoral do papa deixa os liberais constrangidos. No início do pontificado, ficou óbvio que o papa mencionava o diabo com mais frequência do que seus antecessores pós-conciliares. Ver o mal como algo personificado não é o modo como a maioria dos modernos tende a pensar o mal, mas Jesus não tinha esse escrúpulo. A piedade popular, especialmente entre os verdadeiramente marginalizados, sempre expressou a ideia de que o mal está presente de uma forma que sugere uma poderosa personificação transcendentalmente.
Não vemos mais o Santo Padre se misturando com as multidões da mesma forma que fazia nos primeiros anos. Seu joelho machucado torna isso mais difícil. Mas as imagens dele parando o papamóvel para permitir que um pai lhe entregasse uma criança para uma bênção ou saindo do veículo para acariciar um homem com uma doença gravemente desfigurante, essas imagens mostraram alguém que se envolveu com o mundo com os olhos de Jesus. É difícil encontrar uma definição melhor de pastor do que essa, envolve-se com as pessoas com os olhos de Jesus.
Uma qualidade notável desse papa é o fato de ele só ter palavras duras para pessoas que são hipócritas, particularmente clérigos. Com o povo de Deus, ele é generoso e simpático. Com as intrigas da Cúria Romana, nem tanto.
A injustiça também atrai a ira do papa, e isso decorre não de algum compromisso elevado com uma ordem social diferente, mas de sua experiência com a pobreza extrema, primeiro nas favelas de Buenos Aires e agora nas várias favelas do mundo, mais recentemente na África.
Ele denuncia a economia neoliberal não de um ponto de vista econômico, mas de um ponto de vista humano, a partir do que ela faz, não de suas teorias. Ele conhece e ama as pessoas que foram chutadas para a beira da estrada depois de caírem nas mãos dos barões ladrões no caminho para a Jericó neoliberal.
Será que sou só eu ou ele parece mais em casa no meio de pessoas desesperadamente pobres do que nas cerimônias de acolhida nos aeroportos, quando está cercado por poderosos e seus manipuladores?
Durante a maior parte dos últimos dois séculos, os cardeais elegeram como papa diplomatas ou candidatos com experiência pastoral. Ironicamente, os pastores tendiam a ser mais reacionários, como Pio IX e Pio X, e diplomatas como Pio VII, Bento XV e João XXIII eram mais pastorais. No nosso tempo, o pastor Papa João Paulo II não era reacionário, mas deu uma interpretação mais conservadora ao Vaticano II do que muitos de seus irmãos bispos.
Bento XVI ocupava um cargo na Cúria vaticana há 24 anos quando foi eleito. Francisco, um filho da América Latina, foi o beneficiário da recepção do Vaticano II naquele continente com sua contínua determinação de levantar a questão: o que significa exercer uma opção preferencial pelos pobres? O esforço para responder a essa pergunta moldou imensamente seu estilo pastoral.
Pastor. É a primeira palavra que vem à mente quando tentamos entender esse papado. Francisco é teologicamente astuto, sem dúvida, mas é tão instruído em teologia pastoral quanto em estudos doutrinários ou éticos. Ele não tem medo de se envolver com os políticos do mundo, mas carece da discrição de um diplomata.
Ele entra no mundo de braços abertos, e o mundo o ama por isso. O Papa Francisco é o pároco do mundo, e essa qualidade fundamenta e molda todos os outros aspectos de seu papado.
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Francisco, pároco do mundo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU