Seca e mudança climática

Foto: nike159 | Pixabay

21 Julho 2022

 

Paolo Tarolli é professor de hidráulica agrícola no Departamento de Território e Sistemas Agroflorestais da Universidade de Pádua. Ele é frequentemente convidado para conferências promovidas por departamentos diocesanos no norte da Itália sobre questões relacionadas às mudanças climáticas e ao meio ambiente.

 

É autor de livros e publicações em várias revistas científicas internacionais. Em 2022 publicou com seu grupo de pesquisa na prestigiosa revista Nature Food um artigo sobre o impacto global das mudanças climáticas na agricultura. A Settimana News entrevistou-o sobre o tema da seca que assola o Norte e grande parte da Itália.

 

A entrevista é de Giordano Cavallari, publicada por Settimana News, 19-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis a entrevista.

 

Professor, qual exatamente sua área de pesquisa?

 

Há anos estou envolvido na compreensão dos problemas das paisagens diante das crescentes pressões antrópicas, da degradação causada pelo abandono de terras cultivadas e nas mudanças climáticas. Concentrei-me nas superfícies de uso agrícola, em particular em terrenos cultivadas em declive, usando técnicas de sensoriamento remoto (remote sensing, com drones e scanners a laser), para a análise e prevenção de fenômenos de instabilidade (por exemplo, deslizamentos de terras, erosão) e para a maior sustentabilidade ambiental das culturas.

 

Minhas pesquisas estendem-se também à planície - nos aterros - pelas razões que as secas deste período estão evidenciando de forma clara. Os problemas, de fato, não nascem apenas das mudanças climáticas, mas também de um manejo incorreto das superfícies. Espero que minha contribuição de pesquisa possa ser de ajuda e sugerir indicações úteis para melhorar a gestão do nosso território.

 

A seca que estamos sofrendo é certamente uma consequência das mudanças climáticas? Afinal, situações semelhantes também ocorreram no passado distante.

 

Não há dúvida de que uma mudança climática está ocorrendo. Se você ler todas as publicações científicas a esse respeito, não poderá deixar de chegar a tal evidência científica. Quero ser muito claro: o que está mudando em relação ao passado é a frequência dos fenômenos e sua intensidade. Aumentam os eventos extremos. A observação científica afirma que esse tipo de evento é cada vez mais frequente e cada vez mais extremo.

 

Dê-nos um exemplo ...

 

Há dois verões - agosto de 2020 - na área de Soave di Verona houve um episódio de downburst (rajadas de vento descendentes com movimento horizontal) gerado por uma supercélula: um fenômeno de intensidade muito forte que em um curto o tempo arrasou uma faixa substancial de vinhedos da região. Falei com os agricultores que vivem naquela área há gerações. Eles têm lembranças de eventos desastrosos que ocorreram no passado, especialmente relacionados ao granizo. Mas não se lembram de nada parecido com o que viram pessoalmente.

 

Planície Padana, também conhecida como Vale do Pó, na Itália. (Foto: Wikipédia)

 

No verão de 2020, eventos semelhantes afetaram vários lugares do Vale do Pó, em alguns casos até com tornados. Esses eventos, portanto, estão se manifestando com maior frequência e com maior intensidade; o clima da zona mediterrânica está cada vez mais quente, especialmente os mares, com uma carga de energia e humidade que, mais cedo ou mais tarde, dá origem a fenômenos meteorológicos muito intensos. Consideramos, além disso, que tudo isso ocorre em um território muito mais antropizado (Norte da Itália e Vale do Pó) do que no passado, o que significa mais ocupado por infraestruturas, mais urbanizado e cimentado; e isso amplifica as consequências. Uma enchente repentina, assim como uma seca, tem efeitos mais graves hoje do que no passado.

 

As coisas só vão piorar?

 

Existem agora muitas projeções cientificamente elaboradas a esse respeito. Há anos, a comunidade científica vem alertando sobre as mudanças climáticas e suas consequências. Cito aqui um trabalho que publiquei este ano com meu grupo de pesquisa na revista Nature Food (cf. aqui) sobre o impacto das mudanças climáticas na superfície agrícola mundial.

 

Existem vários cenários climáticos que podem ser considerados: do mais extremo ao menos extremo. O nível de gravidade varia de acordo com o que a humanidade conseguirá ou não conseguirá fazer nesse meio tempo. Refiro-me, em primeiro lugar, às emissões de gases de efeito estufa na atmosfera. Bem, de acordo com a pior projeção (cenário de concentração de gases de efeito estufa RCP8.5, ou seja, sem a adoção de iniciativas em prol da proteção do clima e, portanto, com crescimento das emissões nas taxas atuais) no final do século, a Itália - parte de Emilia-Romagna, Vêneto, Toscana, Abruzzo, Molise, Puglia ... - irá para um clima definido, segundo a classificação climática de Köppen-Geiger, árido, enquanto hoje o clima das regiões mencionadas (excluindo parte da Puglia e da Toscana, já agora com um clima árido) é temperado.

 

Obviamente, não só a Itália seria afetada, mas também uma grande parte da Europa, especialmente o Leste, incluindo a Romênia e a Ucrânia. O sul da Espanha poderia ser afetado por uma severa desertificação. Pensemos no impacto que isso teria na produção agrícola e alimentar nacional e mundial. Pensemos nas consequências que agora vemos concentradas na guerra. É um cenário realmente crítico, no qual a crise alimentar, as migrações em massa e os conflitos poderiam se multiplicar. Não pretendo de forma alguma espalhar alarmismo. Mas é meu dever colocar sobre a mesa as informações que temos, algo que o meio científico vem tentando fazer, justamente, já há algum tempo. No entanto, não se nota uma resposta adequada à seriedade da situação de parte da classe política em nível global.

 

É verdade que chove menos?

 

Não tenho dados atualizados sobre esse assunto, porém temos cada vez mais períodos prolongados sem chuva e períodos com chuvas muito intensas e muito localizadas.

 

Fale-nos sobre a "cunha salina" no Pó: o que é e por que preocupa tanto.

 

No registaram-se, desde 2000, excluindo o ano em curso, cinco períodos de seca, precisamente em 2006, 2007, 2012, 2015 e 2017. Em todos esses casos o caudal desceu abaixo dos 450 metros cúbicos de água por segundo - vazão definida como crítica pelas autoridades da bacia - que comporta a entrada da água do mar para o rio. A FAO - Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação - estabelece o limite crítico de salinidade da água para irrigação em 2 gramas por litro: além desse grau de salinidade, a água torna-se inutilizável na agricultura.

 

Pois bem, em 2006 - o primeiro (e mais grave) dos 5 anos de seca do observados - a vazão do rio, no final de julho, caiu para 189 metros cúbicos por segundo e a água do mar entrou até 33 quilômetros da foz com salinidades que ultrapassaram amplamente o limiar crítico (em alguns casos foi ultrapassado a 30 gramas por litro). Agora estamos no final de junho e a “cunha salina” já subiu até 21 quilômetros da foz. Também este ano, salvo chuvas significativas nas próximas semanas, o pior período de seca poderia ocorrer entre o final de julho e o início de agosto. Até o momento, prevê-se que o recorde negativo de 33 quilômetros de subida de águas salobras seja superado. É, portanto, fácil prever consequências muito graves para a agricultura - e não só - naquela área.

 

Quais são as consequências para as áreas "verdes"?

 

As imagens de satélite de 22 de março último relativas à zona Novara-Milão-Pavia - facilmente acessíveis a todos no site da Agência Espacial Europeia - mostram que o amarelo era a cor predominante já no início da primavera europeia, quando deveria ter sido pelo menos próximo do verde. Outras imagens - mais recentes - mostram as ilhas que se formaram no leito do : verdadeiras margens brancas. Meu grupo de pesquisa está trabalhando na comparação das imagens com 2006, ano de máxima subida da cunha salina.

 

Analisamos o índice de presença da vegetação das áreas cultivadas. Estamos observando como nas superfícies mais próximas do mar - as mais afetadas pelo fenômeno da salinidade da água - a vegetação atinge um estado de estresse: o verde não é tão verde quanto deveria ser. Mas mesmo em áreas mais internas - onde a cunha ainda não subiu e a salinidade está abaixo do limiar crítico - a vegetação também está em estado de sofrimento.

 

O que poderia ter sido feito e o que ainda há tempo para fazer?

 

Uma reflexão deveria ser feita sobre a espécie homo sapiens, portanto sobre nós mesmos, em primeiro lugar. Eventualmente, poderei fazer um apelo de ética ambiental. O que observo é que, apesar de tudo que a ciência vem divulgando há anos e apesar das previsões de mudanças climáticas que mencionei, a espécie homo sapiens, até que seja atingida diretamente, até que - pelo menos na Itália - consiga ter sua própria casa equipada com sistema hídrico, seu próprio jardim irrigado, seu próprio carro lavado, não considera esses problemas como seus. A política, além disso, não apenas na Itália, tem um foco principalmente nas próximas eleições. Portanto, ainda não existe uma verdadeira programação sistêmica que vise enfrentar os enormes problemas ambientais que temos pela frente. Até agora, navegamos basicamente à vista, tentando remediar os desastres, a posteriori.

 

Ainda há muitas coisas que - com base científica - podem e devem ser feitas, na minha opinião. A começar por um programa de economia e melhor aproveitamento do precioso recurso da água. Penso nos muitos desperdícios ainda presentes. Também é possível programar reservatórios (micro reservatórios) para coletar água quando chove muito e construir reservas para períodos de seca e outros usos. Devemos evitar de todas as formas ir buscar outras águas para uso de irrigação nas profundidades ou ir esgotar os cursos d'água abaixo do nível mínimo para a subsistência de seus ecossistemas.

 

Também deve ser iniciado um debate sobre a alimentação do futuro, trazendo para a mesa de discussão os interessados, quanto os políticos e os cidadãos: de fato, não poderemos mais nos permitir o mesmo tipo de culturas, especialmente na Itália. Deve-se passar de uma agricultura que requer muita água para uma agricultura que requer menos água, melhorando também os sistemas de irrigação. É inevitável: é preciso chegar a um acordo a tempo, ou seja, o mais rápido possível, ou melhor, imediatamente.

 

Não haverá volta. Sem uma visão para o futuro, inevitavelmente enfrentaremos o colapso. Aos que acreditam que essa previsão seja improvável, digo que a história ensina como civilizações do passado já entraram em colapso por não terem se adaptado e não terem encontrado soluções para os problemas ambientais. Com maior razão, é possível agora.

 

Diferentes sistemas de irrigação são possíveis para economizar água? Na minha região, alguns campos de pastagem para a alimentação do gado são irrigados por escoamento…

 

Recentemente ouvi alguém defender a vantagem da irrigação por escorrimento para a manutenção das zonas húmidas e a conservação da biodiversidade. A partir da objetiva constatação da falta de água neste período - enquanto no verão a neve já está toda derretida nas montanhas, as últimas geleiras estão derretendo e nas planícies estamos com 37 graus centígrados - digo que não podemos mais nos permitir esses sistemas de irrigação: são muito dispendiosos. Devemos necessariamente e rapidamente mudar para a chamada irrigação de precisão guiada por tecnologias modernas. O Estado de Israel está na vanguarda nesse sentido.

 

Em que ponto estamos com os projetos de construção de reservatórios de água?

 

Está se falando sobre isso. Mas, fora algumas experimentações, estamos longe do nível sistêmico. No entanto, os consórcios de recuperação estão elaborando alguns projetos interessantes. Nós estamos realizando uma simulação computacional sobre zonas de vinhas em declive. Estamos imaginando um sistema de micro reservatórios, simplesmente seguindo uma sugestão dos pais que tiveram o cuidado de deixar poças de água nas colinas para coletar sedimentos para extrair nas secas. Nas planícies, é claro, os reservatórios deveriam ser maiores. Mas o objetivo é o mesmo: recolher a água de escoamento quando chove abundantemente a ser aproveitada quando não chove. É claro que hoje precisamos de um plano capilar para os territórios. Estamos apenas no início. Mas a estrada parece-me a certa.

 

Quais são, então, os comportamentos a serem encorajados? Qual é o seu apelo?

 

Como dizia, ainda há muito individualismo ou egoísmo - mais ou menos consciente – em matéria ambiental. É fácil pensar que esses sejam problemas temporários, esquecê-los rapidamente ou, em qualquer caso, pensar que podem ser abordados e resolvidos no plano pessoal. Em vez disso, devemos perceber que a nossa casa é a "casa comum" que compartilhamos com todos os organismos vivos.

 

Aos meus jovens alunos, repito isso constantemente. Todos devemos cuidar melhor da nossa "casa comum". Devemos alimentar juntos uma visão de futuro e das gerações futuras: um futuro com o qual o termo sustentabilidade tem a ver, tão usado hoje, aliás de forma inadequada. Caso contrário, o futuro está comprometido. Cada um claramente tem seu próprio lugar e papel a desempenhar: como homem de ciência, eu devo me empenhar a estudar e comunicar dados corretos e compreensíveis, os administradores devem se empenhar a realizar os melhores projetos, os cidadãos devem se empenhar a consumir e se comportar da melhor maneira, respeitando o meio ambiente.

 

Qual é a sua opinião sobre a encíclica Laudato si' do Papa Francisco?

 

Como estudioso leigo, não tenho nenhuma dificuldade em reconhecer na Laudato si' um dos documentos de ética ambiental de maior visão e, portanto, mais importantes do nosso tempo.

 

Para aprofundamentos

 

Wang, W. - Pijl, A. - Tarolli, P. (2022). "Future climate-zone shifts are threatening steep-slope agriculture", em Nature Food, 3, 193-196. Disponível online neste endereço.

 

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