20 Junho 2022
Roma não deve se deixar condicionar, "mas certas críticas parecem bem fundadas". "O quadro não só comunicativo do Vaticano é confuso e o juízo histórico dificilmente poderá ser positivo", diz o ex-diretor do Osservatore Romano.
Nos canais sociais ucranianos, estão se espalhando caricaturas do Papa que, em vez da cruz, em seu peito, carrega um "Z", a marca dos carrascos enviados para o sul por Vladimir Putin. É o efeito injusto da série de declarações feitas a jornais, amigos jesuítas, chefes de Estado e de governo nos últimos meses. Palavras destorcidas e incompreendidas, desde aquele "ladrar da OTAN nas fronteiras da Rússia" até a intervenção talvez "provocada". O problema é que também os russos não parecem muito satisfeitos com o que Francisco disse, a começar por aquele "coroinha" com que definiu Kirill.
Talvez, perguntamos ao professor Giovanni Maria Vian, historiador e ex-diretor do Osservatore Romano, o desejo de manter uma certa “equidistância” – mesmo na certeza de que a Rússia de Putin é responsável – tenha criado um dano à reputação da Santa Sé? "Temo que sim".
Giovanni Maria Vian, ex-diretor do Osservatore Romano. (Foto: Vatican Media)
"E acima de tudo temos que nos perguntar qual será o juízo histórico; não longe no futuro, mas já daqui a alguns anos, por essa linha que está justamente deixando as partes descontentes. Não é uma novidade, e a sé romana certamente não deve se deixar condicionar em sua política, mas justamente um olhar para a história teria ajudado nas últimas semanas a evitar críticas que parecem fundadas, mesmo por observadores não preconceituosos contrários, aliás geralmente muito favoráveis, ao Pontífice argentino".
"Penso sobretudo no debate ainda em curso sobre os silêncios de Pio XII, denunciados primeiro por um católico como Emmanuel Mounier já poucas semanas depois da eleição de Pacelli em relação à agressão italiana à Albânia, em abril de 1939, prenúncio de uma polêmica e ainda debatida questão historiográfica sobre qual é a atitude do Papa Pacelli durante o conflito mundial e o Holocausto. E ele foi um conhecedor muito informado dos fatos e do background do Vaticano como Luis Badilla, diretor do Sismógrafo, site especializado cada vez mais essencial, a recordar as palavras de Paulo VI pronunciadas em 22 de agosto de 1968. O Papa de partida para a Colômbia, dolorosamente sentido pela invasão da Tchecoslováquia e ciente das críticas que uma mão estendida para os regimes comunistas estava despertando entre muitos católicos, disse estar disposto a mudar de destino para ir a Praga. 'Mais uma vez a força das armas parece querer decidir o destino de um povo, de sua independência, de sua dignidade', disse Montini, acrescentando: 'Não queremos julgar ninguém; mas como podemos deixar de voltar à análise dos princípios, da qual tais infortúnios parecem surgir naturalmente?'".
"Palavras muito claras. Tanto os contextos externos quanto os internos são muito diferentes, mas é justamente a evolução da política internacional após o colapso do comunismo europeu que torna ainda mais insuportável o que aconteceu e está acontecendo com a agressão russa contra a Ucrânia”.
Notou-se certa desorientação nas tomadas de posição da Santa Sé. Inicialmente, os meios de comunicação vaticanos enfatizavam que, de qualquer forma, a OTAN tinha uma certa responsabilidade em se alargar demasiado para o leste. Depois, o secretário de Estado parecia insistir no direito à legítima defesa do povo ucraniano, finalmente, o Papa novamente sugeria uma "culpa" imputável "ao latido da OTAN".
A entrevista é de Matteo Matzuzzi, publicada por Il Foglio, 18-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Historicamente, jamais havia acontecido que a Santa Sé em um contexto tão dramático se expressasse com tantas vozes e nem sempre totalmente concordes?
Pela minha memória não. Uma certa variedade é completamente normal, e nas últimas décadas houve de fato uma orquestração habilidosa de vozes diferentes, enquanto em outras vezes prevalecia a desordem, até chegar em alguns casos a dissonâncias claras ou cacofonias surpreendentes. Mas, em geral, a estratégia de comunicação, então quase sempre controlada pela Secretaria de Estado de acordo com o Papa, previa esse jogo das partes com um uso prudente dos diferentes meios, agora de fato unificados e de qualquer modo desconsiderados pelas escolhas do Papa de utilização de canais de comunicação externos à Santa Sé.
No entanto, não se pode excluir que um jogo das partes esteja ocorrendo também nestes últimos meses, com intervenções de natureza muito diferente que se sucedem, integrando-se e talvez retificando tacitamente declarações, sejam elas calculadas ou improvisadas. Por um lado, houve de fato a conversa do Pontífice, não uma entrevista, com o diretor do principal jornal italiano sobre o tema da guerra, cuja publicação foi autorizada e que foi reiterada em uma reunião com os responsáveis de revistas dos jesuítas; por outro lado, respostas repetidas, bastante coerentes entre si e muito calibradas, pelos dois mais altos diplomatas da Santa Sé.
Depois, há as vozes das periferias, tão caras ao Papa, ou seja, aquelas dos episcopados envolvidos nesta tragédia, relançadas ou não pela mídia vaticana, especialmente aquela cotidiana do arcebispo maior dos ucranianos católicos de rito grego. Em suma, um quadro, não apenas comunicativo, em geral confuso e em relação ao qual o juízo histórico dificilmente poderá ser positivo.
Uma passagem importante ocorreu quando Francisco relatou o conteúdo da conversa que teve com o Patriarca Kirill, afirmando que que não poderia ser o “coroinha de Putin”. Afirmações que, previsivelmente, provocaram a reação do Patriarcado.
Na sua opinião, isso é um golpe no diálogo ecumênico? Será talvez o reconhecimento de que Kirill não é o interlocutor que anos atrás se acreditava credível e confiável o suficiente a ponto de assinar com ele a histórica Declaração de Havana?
Talvez a intenção do Papa fosse uma correção fraterna em relação ao Patriarca russo. E sua afirmação, clara até a brutalidade, expressa um juízo severo sobre a chamada sinfonia, ou seja, a tradicional relação entre o poder russo e o Patriarcado de Moscou, sempre fortemente subordinado ao soberano.
Situação que foi agravada e complicada pelos anos setenta comunistas, impiedosamente persecutórios, mas depois pelos enormes benefícios econômicos e privilégios concedidos sobretudo por Putin. Agora são conhecidas as relações estreitas entre os cargos mais altos da hierarquia ortodoxa e o poder, até mesmo do atual patriarca, enquanto mais vozes estão enfatizando o apoio do patriarcado à elaboração da ideologia de caráter totalitário do "mundo russo".
Embora obviamente ciente de tudo isso, Roma se manteve na via do diálogo ecumênico com a maior e mais importante Igreja da Ortodoxia, mas essa realidade tão articulada é cada vez menos coesa para as escolhas divisivas e expansionistas do Patriarcado de Moscou. E agora a agressão russa à Ucrânia, abertamente apoiada por Kirill, torna tudo ainda mais difícil. Em uma fase já estagnada do ecumenismo, esta guerra de agressão e seus horrores despedaçaram ainda mais o mundo ortodoxo, em dificuldade desde que, em 2016, a Igreja Russa causou deliberadamente o fracasso do histórico Concílio de Creta ao decidir não participar dele.
As divisões entre os ortodoxos ucranianos se acentuaram, e dentro do próprio Patriarcado de Moscou a situação é obscura e agora é difícil decifrar mesmo para os observadores mais atentos. De fato, que consequências terá na evolução desta Igreja com uma história dolorosa e dramática a remoção do poderoso chefe das relações exteriores da Igreja Russa e sua substituição por um jovem prelado fiel do Patriarca? Talvez também exista (e se sim, o quanto afeta) uma espécie de preconceito antiamericano devido à origem cultural latino-americana do Papa no julgamento da guerra em curso?
Obviamente a origem argentina do Pontífice, seu caráter, suas decisões pessoas e seu modo direto e imediato de decidir e de comunicar ajudam a explicar as suas escolhas, muitas vezes inusuais. E sobre a guerra é inevitável observar uma consonância substancial da opinião do Papa com a que prevalecia em muitos países antigamente definidos como não-alinhados. De qualquer forma, fica sua condenação inequívoca a esta guerra de agressão.
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Papa Francisco e a guerra na Ucrânia. Há um dano à reputação da Santa Sé, segundo Giovanni Maria Vian, ex-diretor do Osservatore Romano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU