30 Mai 2022
“Embora a invasão russa da Ucrânia pareça situar o centro do teatro de operações na Europa Oriental, algo está acontecendo um pouco mais longe do foco, como se estivesse nos bastidores. Algo muito importante. A mudança do centro de poder do mundo do Oceano Atlântico para o Pacífico”, escrevem Juan Bordera e Antonio Turiel, em artigo publicado por Ctxt, 27-05-2022. A tradução é do Cepat.
Embora a invasão russa da Ucrânia pareça situar o centro do teatro de operações na Europa Oriental, algo está acontecendo um pouco mais longe do foco, como se estivesse nos bastidores. Algo muito importante. A mudança do centro de poder do mundo do Oceano Atlântico para o Pacífico. Uma mudança que coincidirá, paradoxalmente, com o aumento das possibilidades de guerra – inclusive nuclear – em larga escala, em uma época marcada pelo descenso energético. Tudo normal e bem.
A administração Biden divulgou há poucos meses o documento Estratégia Indo-Pacífico dos Estados Unidos, no qual declara: “Nenhuma região será mais importante para o mundo e para os estadunidenses do que o Indo-Pacífico”. Recentemente, a China fechou um acordo de defesa e segurança com as Ilhas Salomão, um acordo insignificante, mas que deixou tanto os americanos como os australianos nervosos.
Esses acontecimentos que delineiam uma tendência perigosa já foram analisados por Rafael Poch ou Xulio Ríos, que recentemente alertou para o crescente risco de conflito em Taiwan. Também foram tratados por Olga Rodríguez, que em um artigo aponta que “a inércia em direção a um quadro de guerra, como se forças irreversíveis da história nos conduzissem a ela, pode ser evitada”. Não podemos estar mais de acordo com essa frase, e para isso, nada melhor do que identificar quais são essas forças, tentar compreendê-las e assim poder desativar sua aparente irreversibilidade.
A armadilha de Tucídides é um conceito criado em 2015 pelo cientista político estadunidense Graham Allison. Ele se refere ao conflito entre Atenas e Esparta – narrado por Tucídides em História da Guerra do Peloponeso – como forma de explicar o dilema que existe entre uma potência hegemônica mas em declínio (Esparta – Estados Unidos) e outra em ascensão (Atenas – China). O medo de que a potência emergente acabasse sendo a dominante teria levado Esparta a iniciar uma guerra contra Atenas, a qual venceu, impedindo assim a ascensão de sua rival, embora pagando um alto preço na forma de desgaste.
É a Rússia o verdadeiro rival dos Estados Unidos? Não, claro que não. É a China. A guerra na Ucrânia, Tucídides não quer isso – e, sobretudo, nem os falcões dos EUA –, poderia ser o prelúdio de um conflito maior para impedir a ascensão final de uma potência emergente que já domina os setores industrial e econômico. Falta o setor militar, ainda muito claramente do lado da organização atlântica. O fato de estarmos vivendo uma era nuclear não diminui o risco de que a OTAN – que se reúne em Madri daqui a um mês – considere essa opção.
Outro fator – provavelmente o mais importante – que deve ser levado em conta nesta história é o energético. Os EUA são um grande consumidor de energia. A China também. Na verdade, esta ultrapassou os EUA há cerca de uma década como o maior consumidor de energia do mundo. E em ambos os países o consumo de energia está crescendo de forma constante. Normal: numerosos estudos, como os do economista e professor da Sorbonne Gaël Giraud, mostraram que a suposta desmaterialização da energia não passa de um mito, que, se você quiser continuar crescendo economicamente, o consumo de materiais e de energia tem que crescer, aqui ou no local onde realocarmos a fábrica que nos fornecerá os produtos.
Mas acontece que a disponibilidade de energia neste planeta é finita e as fontes de energia não renovável (petróleo, carvão, gás natural e urânio), que nos fornecem 90% do nosso consumo de energia primária, atingiram o pico. Na ausência de minas e jazidas tão boas quanto aquelas que esgotamos nas décadas anteriores, a quantidade de energia fornecida pelos combustíveis fósseis e o urânio já não crescerá mais. Pior que isso: cairá acentuadamente nesta década, o que já começou a ser percebido. Onde? Nos cortes de energia na China por falta de carvão, na falta de diesel e de querosene para aviões na costa leste dos Estados Unidos, nos estoques de combustíveis em patamares mínimos em todos os lugares, no aumento geral dos preços, na verde União Europeia que aumenta a proporção de carvão no mix…
Os grandes blocos estão se posicionando para manter sua hegemonia em um mundo com menos recursos e em que as regras do jogo serão diferentes. A Rússia, por razões históricas, olhou para a Europa e, portanto, vê com desconfiança a expansão da OTAN nos países do Leste Europeu. A Europa, por sua vez, olha sobretudo para a África, como mostram as operações militares patrocinadas pela França no Magrebe ou os planos de produção de hidrogênio verde para a Alemanha patrocinados pelo governo teutônico no Marrocos, Namíbia ou Congo. A China também tem interesses na África, mas olha ainda mais para o Sudeste Asiático, pretendendo ampliar sua área de influência e ganhar a corrida contra a sua grande rival regional, a Índia, ainda muito ensimesmada em sua grandeza e sua enorme diversidade cultural e étnica. E para onde olham os EUA para enfrentar a Era do Descenso Energético?
Naturalmente, os Estados Unidos deveriam olhar para a América do Sul, mas estão relutantes em abandonar seu papel de império planetário. Com mais de 800 bases espalhadas por mais de 70 países, os amigos americanos ainda têm interesses espalhados por todo o planeta. E embora o expansionismo africano dos europeus não lhes tire o sono, estão muito preocupados com os caprichos russos na Europa, e mais ainda com as ambições chinesas no Sudeste Asiático. É por isso que os EUA começaram a voltar sua atenção para o Pacífico, com a intenção cada vez mais declarada de que esse oceano deixe de fazer jus ao seu nome.
Uma parte importante da estratégia americana concentra-se na proteção de Taiwan, lugar crítico por ser um dos dois países (o outro é a Coreia do Sul) que abrigam as mais avançadas fábricas de microchips de última geração. A China nunca escondeu seu interesse em retomar o controle da que considera uma ilha rebelde, parte do seu território nacional. Isso explica o jogo de manobras militares americanas, replicado com manobras militares chinesas, durante os últimos meses. E algumas declarações recentes de Biden durante sua visita ao Japão – como se procurasse cumplicidade em um lugar que está longe de ser casual – deram um pouco mais de tempero ao assunto: “Defenderemos Taiwan se a China atacar”.
Devido à escalada de tensão, outra parte importante da estratégia americana são as alianças na região: o Aukus, o recente pacto militar assinado com o Reino Unido e a Austrália, que também vê com desconfiança o avanço imparável da influência política chinesa em seu flanco noroeste e com a qual coincide também no Quad: outra aliança militar – neste caso ressuscitada – que inclui a Índia e o Japão.
E, no entanto, a China já está travando sua guerra de conquista de maneira relativamente sem derramamento de sangue: a primeira vítima foi o Sri Lanka, que acolheu de braços abertos os investimentos chineses em portos e outras infraestruturas e agora tem a China como seu principal credor e negociador na definição das condições de liquidação econômica e política da grande ilha do Oceano Índico. Mas o Sri Lanka não é o único país nas mãos chinesas, apenas o primeiro a cair: a estratégia da Nova Rota da Seda da China, financiando novas infraestruturas em outros países com créditos aparentemente vantajosos mas na prática impossíveis de serem saldados, dado o seu elevado montante, está lhes dando grandes retornos.
Apesar de sua estratégia de dominação ser mais comercial do que militar, a China conhece bem a Armadilha de Tucídides e sabe perfeitamente que os Estados Unidos não permanecerão impassíveis enquanto continuarem avançando em direção à hegemonia em sua região, e por isso continuam com seu rearmamento e mostrando sua força militar quando necessário. E apesar de os EUA apostarem mais na intimidação física, também estão jogando algumas de suas cartas com sutileza, esperando estrangular o acesso da China aos preciosos e cada vez escassos recursos: daí todo o problema com o carvão australiano que a China embargou durante meses ou os recentes protestos do Japão por causa das prospecções da China no Mar da China.
Esse vertiginoso choque de trens em câmera lenta é a consequência lógica de uma atitude ilógica: a de tentar manter um crescimento infinito em um planeta finito. Uma ideia não apenas equivocada, mas suicida. Uma ideia que pode nos levar a muitas outras guerras. Novas ucrânias que terão que sucumbir ao horror da mais nociva e perigosa das ideias que este planeta conheceu: a do crescimento infinito.
Existe algo mais estúpido do que uma guerra? Podem apostar que sim: uma guerra quando os recursos estão diminuindo rapidamente e quando a única resposta possível ao desafio ecológico que está diante de nós é compartilhada e cooperativa.
Se quisermos resolver essa trama, devemos reconhecer a hipocrisia do Ocidente: por um lado, consideramos qualquer gesto mínimo, como o acordo com as Ilhas Salomão, de uma China pouco expansionista – pelo menos militarmente – como uma ameaça à nossa segurança. Por outro lado, a expansão da OTAN foi espetacular nos últimos 30 anos. E, depois, nos causa estranheza que um país que foi invadido duas vezes nos últimos 200 anos por exércitos europeus (Napoleão e Hitler) tema que possa haver uma terceira invasão, e que a terceira, já se conhece. Até o Papa Francisco entende isso perfeitamente e não tem medo de dizer que a guerra na Ucrânia pode ter sido provocada pelos “latidos da OTAN às portas da Rússia”.
Isso significa que a OTAN é o vilão do filme e Putin uma noviça inocente? Absolutamente não. Putin é um sátrapa autoritário e liberticida, e a invasão não pode ser justificada de forma alguma. A solução para a Armadilha de Tucídides é justamente essa: sair dos esquemas maniqueístas de “bons e maus”, assumir a complexidade das relações geopolíticas e internacionais, e começar a reconhecer que será impossível enfrentar os desafios que temos como civilização se pensarmos em continuar a crescer. Quando o espaço ou os recursos energéticos são finitos, é melhor parar de crescer, a menos que sua intenção seja esmagar aqueles que estão ao seu lado.
É hora de cooperar para enfrentar o dilema do prisioneiro global formado pelas crises climática e energética, uma trama na qual estamos todos enredados e da qual as guerras não podem sair exitosas. A Armadilha de Tucídides 2.0, é evidente, não terá nenhum vencedor. No Outono da Civilização são todas potências crepusculares. Pode haver um lado que perde menos, sim, mas o risco da destruição mútua total não existia nos tempos da Guerra do Peloponeso. A única opção pacífica é que a potência dominante desista de dominar militarmente a potência ascendente e a potência ascendente seja generosa com a potência que lhe dá espaço sem guerrear.
Precisamos imaginar uma política que não seja de blocos. Não precisamos de receitas conhecidas ou de reformas suaves. Precisamos de uma grande mudança em pouco tempo, mas que ainda seja possível. Prestemos atenção em Tolstoi, que sabia alguma coisa sobre guerras e pazes quando escreveu: “pensamos que tudo está perdido quando somos obrigados a sair do nosso caminho habitual, mas é precisamente aí que começa o novo e o bom”.
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O Pacífico e Tucídides na ‘Era do Descenso Energético’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU