O desafio do pós-teísmo. Artigo de Paolo Gamberini

Foto: Cathopic

18 Mai 2022

 

"O pós-teísmo não considera Deus inativo no mundo: fazer isso seria negar que Deus seja atividade infinita (em grego: energheia, 'energia'), ato puro, realidade absoluta. O pós-teísmo reconcilia as duas exigências subjacentes ao teísmo (Deus intervém no mundo) e ao deísmo (Deus se retira do mundo), especificando que Deus é poder ativo", escreve Paolo Gamberini, jesuíta italiano, capelão da Universidade La Sapienza de Roma, em artigo publicado por Rocca, 15-05-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.


Eis o artigo.

 

Na última entrevista divulgada em Rocca (18-19/2021), o teólogo recém-falecido Carlo Molari mais uma vez apresentou de maneira clara e envolvente - como sempre - a ideia inspiradora de todo o seu pensamento teológico e de sua espiritualidade, ou seja, a consciência de que "a ação criadora de Deus está continuamente em ação em nós, com a oferta de novos dons de vida a serem acolhidos; [...] a ação de Deus, de fato, só pode se manifestar na Criação como ação das criaturas que a acolhem e a assumem como dom. Deus não intervém de fora, não acrescenta nada além do que as criaturas podem trazer ao âmbito de sua existência e ao mundo; mas, à criatura, toda Perfeição é continuamente oferecida para ser acolhida por um caminho que só pode ser progressivo. Tudo isso pode ser resumido na feliz expressão de Teilhard de Chardin: Deus não faz as coisas, mas oferece às coisas serem feitas. Ou, da mesma forma, pelo Papa Francisco na Laudato si' no n. 80: "O Espírito de Deus encheu o universo de potencialidades que permitem que, do próprio seio das coisas, possa brotar sempre algo de novo."

 

Esta consciência, acrescentava Molari, marca o nosso tornar-se filhos de Deus e a nossa humanidade. “E é por isso que rezamos: não para pedir a Deus que faça algo em nosso lugar, mas para pedir a Deus para nos tornarmos capazes de fazer o que a vida hoje nos pede.”

 

Esta breve síntese expressa toda a paixão de Molari por querer combinar a busca da fé com a investigação da razão; confiamos na criação contínua de Deus com a convicção de que a matéria evolui para o espírito, e assim "seguindo o exemplo de Jesus, permitimos que o Verbo continue a encarnar-se, isto é, a tornar-se progressivamente carne em nós".

 

Continuar a pensar com e além de seu pensamento

 

Não apenas as criaturas estão - diacrônica e sincronicamente - conectadas umas às outras em uma sinfonia cósmica, mas as próprias disciplinas de pensamento - biologia evolutiva, física quântica, neurociências, filosofia, teologia, as outras religiões - vivem umas nas outras, apesar de sua necessária distinção.

 

Tudo isso, reiterava Molari na entrevista para a Rocca, não é relativismo, "mas, ao contrário, a certeza de que uma Perfeição, um Bem, um Amor existe e nos transcende, junto com a humildade de reconhecer que, diante de o Incomensurável, nenhuma cultura, tradição, religião humana, por si só, esgota o caminho que leva a Ele. No entanto, cada uma, por meio dos dons da ação criadora, acolhe fragmentos de verdade e perfeição e, por sua vez, os torna um dom para as outras espiritualidades. É assim que se desenvolve o caminho da humanidade”. Durante os anos do Concílio Vaticano II, mas de modo particular a partir do pós Concílio, Molari amadureceu cada vez mais essa singular perspectiva teológica e espiritual, iniciando assim caminhos que o expuseram, como bem sabemos, também à crítica daqueles que não apreciavam essa sua audácia intelectual, imbuída de impulso de fé.

 

A melhor forma de honrar um pensador - como é Carlo Molari - não é apenas relembrar sua vida e sua obra, mas principalmente continuar a pensar com e além de seu pensamento. Acredito que muitas instâncias da atual corrente do pensamento teológico, enraizadas também na consciência silenciosa da presença inefável e da ação criativa de Deus em todo o cosmos, ou seja, o pós-teísmo, estão levando adiante o testemunho da fé e a pesquisa intelectual de Molari. Muitos dos temas abordados por Molari estão bem presentes no centro da reflexão daqueles teólogos - os chamados "pós-teístas" - que há alguns anos também se tornaram conhecidos na Itália. Para citar alguns: John Shelby Spong, Roger Lenaers, José María Vigil, Mary Judith Ress, Diarmuid O'Murchu, José Arregi e Santiago Villamayor.

 

 

Para um primeiro conhecimento do pós-teísmo, pode-se fazer referência aos quatro volumes da série, Oltre le religioni [Para além das religiões], publicada pela Gabrielli editori.

 

O pós-teísmo, o que é?

 

Mas o que é pós-teísmo? Uma primeira resposta pode ser: a simples constatação de que Deus – como ainda é pensado e vivido pelas religiões institucionais – não é mais crível. A consciência religiosa das novas gerações parece ser mais secularizada, agnóstica e indiferente: parece que já não se sinta mais a necessidade do transcendente. Não estamos apenas além de Deus ou depois de Deus, mas também além da pergunta sobre a existência de um Deus assim (teísta). Estamos na era do pós-teísmo.

 

A atitude pós-teísta é ao mesmo tempo pós-ateísta. Ao contrário do ateísmo, o pós-teísmo não rejeita qualquer transcendência, mas apenas a imagem teísta de um Deus separado do mundo e que, de tempos em tempos, a seu critério e vontade, intervém ora aqui e ora ali. Esse paradigma religioso entrou em crise desde a idade moderna, mas persiste na forma como os crentes são formados. Aqui encontramos novamente aquele que foi um dos interesses mais relevantes da atividade pastoral de Molari: educar-se para uma fé adulta.

 

De fato, assistimos cada vez mais a uma separação imparável entre os vários planos da comunicação da fé cristã: o plano litúrgico-devocional do povo de Deus; o plano catequético tradicional dos educadores; o plano de formação intelectual dos líderes (leigos, candidatos ao ministério e padres); por fim, o plano acadêmico de pesquisa (professores e pesquisadores). Esses planos estão atualmente divididos e sem contato entre si. Precisamos de uma linguagem da fé capaz de dialogar com a modernidade (e pós-modernidade), capaz de falar novamente da fé com novas categorias, imagens e paradigmas.

 

Não se trata de fazer uma obra de maquiagem do Catecismo ou do Credo, mas de repensar a fé levando em conta o contexto em que as novas gerações se tornam cada vez mais indiferentes à proposta de fé e um número considerável de católicos adultos abandonam, decepcionados, uma igreja que se tornou imóvel e formalista. Há necessidade de novos paradigmas para voltar a falar da fé. Já em 1972, Molari com seu livro La fede e il suo linguaggio (A fé e sua linguagem, em tradução livre, Cittadella editrice), já havia intuído o surgimento dessa demanda e a necessidade de assumir novos paradigmas de compreensão da fé cristã.

 

 

 

Necessidade de um diálogo entre teologia, ciência e místicas

 

Como foi para Molari também para o pós-teísmo, tornou-se necessário um diálogo inter e transdisciplinar entre a teologia e as ciências, entre cristianismo e outras tradições místicas, muito além das barreiras ideológicas entre crentes e não crentes, leigos e católicos. Em diálogo com a ciência e outras tradições religiosas, o pós-teísmo pergunta se Deus deve ser considerado pessoal, impessoal ou transpessoal. Com efeito, Deus não pode mais ser entendido como Alguém lá em cima para adorar e que intervém como lhe apraz, mas como uma realidade que nos envolve e nos sustenta sempre - como disse o apóstolo Paulo, citando um poeta pagão "’Pois nele vivemos, nos movemos e existimos’, como disseram alguns dos poetas de vocês: 'Também somos descendência dele'” (Atos 17,28). A nova temporada que se inaugura, deste ponto de vista, é a superação da visão clássica da religiosidade e está nos conduzindo para uma reflexão arreligiosa, profundamente leiga da realidade.

 

A visão pós-teísta de Deus pode ser chamada de panenteísta. A criação não é vista como algo fora do ser de Deus, mas "em" Deus. Desta forma, se quer abandonar a concepção intervencionista e supranaturalista da presença e da ação de Deus no universo e em particular na história humana, pois esta contradiz a compreensão científica atual do universo, e acaba por compreender Deus como um ser mundano, ou seja, como se Deus fosse uma porção do mundo.

 

A compreensão pós-teísta, portanto, distancia-se da concepção mitológica de Deus assim como é apresentada na Bíblia, e renuncia a objetivar o divino como algo extraordinário no mundo, como se Deus estivesse acrescentando um ‘plus’ de suas ações especiais (encarnação, ressurreição e redenção final) à sua única ação criadora.

 

Poder-se-ia argumentar que a concepção teísta de Deus já tenha sido negada pelo deísmo do Iluminismo. Segundo os deístas do século XVIII, Deus teria criado o mundo como faz um relojoeiro e depois de ter iniciado sua obra, Deus teria deixado o mundo às suas leis, sem mais interferir e intervir.

 

“[O deísmo] reduz Deus à transcendência, ignorando sua imanência no mundo. Muitas vezes, neste tipo de deísmo, se reconheceu, e com razão, o perigo de um ateísmo oculto. De fato, um Deus que não age mais vitalmente no mundo é, em última análise, um Deus morto. E, no entanto, alguns motivos deístas também estão presentes em nossos dias, quando, por exemplo, discutimos a possibilidade de milagres, o sentido da oração e sobre a fé na providência de Deus" (W. Kasper, Il Dio di Gesù Cristo, Queriniana, Brescia 1984 , p. 38).

 

Ora, o pós-teísmo não assume essa imagem deísta de Deus, ainda concebido como separado do mundo e que deixa o mundo ir, como uma causa o faz com seu próprio efeito. Mas também não aceita a imagem teísta de Deus como agente e ator no mundo e operante na história da humanidade. O pós-teísmo, ao contrário, afirma que Deus é ativo no mundo - aliás, "Deus atua o mundo e não propriamente atua no mundo" (Karl Rahner, Corso fondamentale sulla fede, Edizioni Paoline, Cinisello Balsamo 1990, p.123) - sem ser um seu ator. Considerar Deus como um ator que atua no palco do mundo e da história é ainda entendê-lo como um ente entre os entes, um indivíduo supranatural entre muitos outros indivíduos naturais. Talvez um ente mais poderoso (que faz milagres, se encarna e ressuscita, cria o mundo e o julga), mas ainda pensado da mesma forma que os outros entes. Um Deus assim concebido é, por definição, o maior de todos os seres: o Ente Supremo.

 

"Deus não faz, mas faz com que as coisas se façam"

 

O pós-teísmo não considera Deus inativo no mundo: fazer isso seria negar que Deus seja atividade infinita (em grego: energheia, 'energia'), ato puro, realidade absoluta. O pós-teísmo reconcilia as duas exigências subjacentes ao teísmo (Deus intervém no mundo) e ao deísmo (Deus se retira do mundo), especificando que Deus é poder ativo.

 

 

 

Deus é o poder absoluto que faz com que as coisas se façam. Esta é a expressão de Teilhard de Chardin, inspiradora do pensamento e da espiritualidade de Molari: “A rigor, Deus não faz; Ele faz que as coisas se façam” (P. Teilhard de Chardin, La mia fede: scritti teologici, Queriniana, Brescia, 1993, p. 33). Rahner também retoma essa expressão e a desenvolve em sua concepção da autotranscendência da criação. O devir do mundo – de forma que do chimpanzé se passou para o homo sapiens - não é causado por um agente sobrenatural externo ao mundo. A passagem do menos para o mais, de um estado inferior para um superior, não se deu por intervenção divina de fora da ordem criada, mas em virtude do espírito imanente à matéria que move do seu interior todas as coisas, tornando-as capazes de transcender a si mesmas. "Deus intervém com seu poder e influência transcendentais, não acrescentando aditivamente e extrinsecamente o superior ao inferior, mas concedendo a este último o poder de ir além de si mesmo" (K. Rahner, Compimento immanente e trascendente del mondo, in Nuovi saggi. III, Edizioni Paoline, Roma 1969, pp. 669-689, aqui p. 687).

 

Portanto, as acusações feitas contra o pós-teísmo de ser uma reedição do deísmo do século XVIII são infundadas, pois não levam em conta que o século XX experimentou no âmbito teológico uma superação das dualidades de graça e natureza, natural e sobrenatural, criação e encarnação, que haviam caracterizado a teologia pré-conciliar. A teologia imediatamente anterior ao Concílio Vaticano II (Nouvelle théologie) e aquela seguinte (Rahner, Congar, Chenu, Schillebeeckx e Molari) procuraram superar essa visão dualista da realidade, compreendendo cada vez mais o cosmos "em" Deus e Deus presente e ativo em todas as criaturas. Este é o legado que Molari nos deixou. Este é o desafio que o pós-teísmo pretende não apenas aceitar, mas continuar, ainda que na diferença das abordagens, uma vez que o pós-teísmo - diferentemente de Molari - assumiu mais explicitamente a visão teilhardiana do Cristo cósmico e a compreensão panenteísta de Deus.

 

 

Nota do Instituto Humanitas Unisinos – IHU

 

De 03 de maio a 01 de julho, ocorrerá o Ciclo de Estudos: O cristianismo no contexto das transformações socioculturais e religiosas contemporâneas. O evento tem como objetivo debater transdisciplinarmente as condições e possibilidades da existência cristã e eclesial e da teologia no contexto das transformações socioculturais e religiosas que resultam numa caracterização da sociedade e da cultura atual como pós-teísta, pós-religiosa e pós-cristã.

 

 

A Teologia cristã em paradigma pós-teísta

 

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