A missão encarnada de acolhida num mundo de violências. O testemunho da Irmã Norma Pimentel

A vivência de Norma Pimentel, que fala no IHU na próxima quinta, dia 28, ressignifica e faz pensar na missão da vida religiosa consagrada nesse conturbado tempo que somos desafiados enquanto humanidade. Para ela, o caminho é o da acolhida a refugiados

Foto: Vatican News

Por: João Vitor Santos | 27 Abril 2022

 

Nesse tempo em que temos sido abalroados por crises que nos desnorteiam, parecemos criar mecanismos de defesa que nos fecham em nós mesmos. Muito antes de tomar essa como uma reação humana de adaptabilidade diante da conturbação, talvez, seja mais produtivo reconhecermos que tal reação anima um perigoso espírito que cria inimigos. Em certa medida, reduzimos tudo a disputas polares entre vilões e mocinhos e nós, verdadeiros e minguados mariscos entre mar e rochedo, tratamos de nos fechar em nossas conchas. Afinal, quem de nós não tem ouvido: como me preocupar com a Ucrânia se o tomate custa mais de dez Reais o quilo? Ou ainda: como me somar no combate à miséria do mundo se meu salário não cobre mais a conta do supermercado?

 

A situação não parece clarear se naturalizarmos essas reações bem pouco humanas, embora verdadeiras e latentes em todo tecido social. Então, o que fazer? Onde e como encontrar possíveis caminhos para atravessar doenças, dores e perdas pandêmicas, além de guerras, desastres ambientais causados pelo desequilíbrio climático? Por vezes, nem o caminho da fé cristã parece apontar direção. Será? O que é certo é que estamos mergulhados em incertezas, seja onde estivermos. Qual nosso papel? Como agir? São questões que interpelam até quem destina sua vida a servir, como religiosos e religiosas. Afinal, qual é e onde deve estar e agir um religioso nos tempos de hoje?

 

 A irmã Norma Pimentel talvez não tenha uma resposta pronta e pode ser que até por isso ela pareça mais preocupada em agir. Estadunidense, mas com alma mexicana, a religiosa que atua hoje nos Estados Unidos foi considera em 2020 uma das pessoas mais influentes pela badalada revista Time.

  

Irmã Norma Pimentel | Foto: Catholic Charities

 

E ela não esteve em cúpulas políticas, encontros internacionais ou reduto de uma diplomacia muito bem engomada e perfumada. Sua "fama", se assim podemos considerar, veio da fronteira entre Estados Unidos e México, de onde, com um sorriso largo e braços bem abertos para abraçar, atende imigrantes e refugiados enquanto o então presidente de uma das nações mais poderosas do mundo, Donald Trump, dizia pensar a América para os americanos, enquanto tratava pobres refugiados como expurgos de um mundo globalizado. “Vi o rosto infantil — vi as lágrimas, e parte o coração”, disse a Irmã Norma Pimentel, enquanto o mundo parecia mais interessado em discutir conceitos como globalismo e protecionismo

 

Mapa do México e sul dos Estados Unidos (Mapa: Wikimedia Commons)

 

Irmã Norma dividirá, aqui no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, na próxima quinta-feira, 28-04, às 10h, suas reflexões na conferência intitulada “Vida religiosa consagrada frente às urgências e incertezas do tempo presente”. A atividade integra a 19ª Páscoa IHU – Incertezas e Esperanças do Tempo Presente e, como as palestras anteriores, será transmitida ao vivo pelo site e redes sociais do IHU.

 

 

Reconhecendo o Evangelho no mundo

 

Quando falamos em vida religiosa consagrada, quase sempre associamos a ações de caridade e muita oração. É, em geral, para isso que se dedicam irmãos e irmãs, mas o desafio é pensar em como fazer isso num mundo de incertezas sem perder a esperança. Pela forma que encara sua missão, a irmã Norma Pimentel parece ter achado uma saída. Não espere encontrar na sua figura aquela irmãzinha de véu, hábito e crucifixo em riste. Sim, ela não esconde a fé que professa e anuncia o Evangelho como boa cristã católica. Porém, mais do que impor sua fé, ela parece estar disposta a olhar por aqueles que poucos olham e viver a experiência que o próprio Cristo viveu e convida a vivermos.

 

 

 

Quando o desespero inundou a fronteira entre Estados Unidos e México, separando pais e crianças de refugiados que buscavam apenas o direito de viver, Norma esteve lá. E não se intimidou diante de autoridades que, como o velho Pilatos, lavavam as mãos e diziam cumprir a lei. “A tragédia humana na fronteira [dos EUA], em que milhares de crianças e famílias estão fugindo das perseguições e da violência dos países do Triângulo Norte da América Central, como a Guatemala, Honduras e El Salvador, é onde o governo e o Congresso deveriam prestar atenção”, disse Donald Kerwin, diretor executivo do Centro de Estudos Migratórios, em reportagem reproduzida pelo IHU, ao lembrar que a voz de Norma era uma das poucas que gritava nessa crise.

 

 

 

Gritos recheados de críticas a autoridades, mas também ternura e afeto para acolher quem precisava. “Fico animada todos os dias com as famílias que encontro, principalmente as crianças. E também com os voluntários", afirmou irmã Norma, na mesma reportagem, ao ser questionada sobre como buscar forças para agir nessas situações. Hoje, ela segue na linha de frente e atua como diretora da Catholic Charities, uma das maiores organizações sociais norte-americanas. Sua base é na cidade fronteiriça de Rio Grande Valley.

 

Rio Grande, onde fica o acampamento de migrantes. (Mapa: Wikimedia Commons)

 

É nessa região que se estende um grande acampamento de refugiados que tentam cruzar o Rio Grande. É no meio dessas pessoas que Norma parece reconhecer as narrativas evangélicas, especialmente as que Cristo fala dos pobres e dos menorizados pela sociedade. Não à toa, na mensagem de Natal que escreveu no ano passado, a religiosa diz ver a todo instante a família de Nazaré entre aquelas barracas, em meio ao frio e a fome naquele lugar.

 

“Dói-me ouvir as histórias de tantos que estão lutando. Mas sou continuamente lembrada de que o Senhor Jesus, por quem esperamos no Natal, nos traz esperança. Vejo sua mão em ação nas famílias que encontro: a mãe amamentando seu filho após a travessia do rio; a menina de 3 anos dançando no Centro de Repouso Humanitário, trazendo um sorriso ao pai; os voluntários que se doam diariamente para oferecer sopa e roupas. Tenha certeza de que a luz do Senhor brilha mesmo quando pensamos que há apenas trevas.

  

 

Enquanto caminhamos nesta peregrinação de Natal, não esqueçamos que há muitos em nosso meio que estão lutando – os idosos que vivem isolados; jovens adultos que estão tentando encontrar seu propósito; famílias jovens que estão tentando transmitir a fé e os valores aos seus filhos em meio às pressões do nosso tempo; e os idosos que estão sozinhos”. Norma Pimentel, em tradução livre.

 

E não pense que com a saída de Donald Trump da Casa Branca a situação mudou muito. Para se ter ideia, em 2020, a irmã Norma relatava: “é difícil saber o que está acontecendo, porque as autoridades não falam e não identificam a pessoa morta. Elas dizem que a pessoa morta é da cidade de Matamoros, mas a maioria das pessoas não acredita nisso”. No mesmo ano, chega a pandemia de Covid-19 e torna ainda pior o que já era terrível. “Nosso campo é uma ‘cidade de tendas de campanha’, cheia com quase 1.500 mulheres, homens e crianças vulneráveis, que aguardam notícias de seus pedidos de asilo nos Estados Unidos. Essas famílias vivem em barracas doadas e estão ao ar livre e à mercê do clima extremo”, disse ela, em uma das reportagens em que reproduziu o drama de um acampamento de refugiados.

 

 

 

“Imagine viver em tanta incerteza, onde até o básico, como água corrente e um lugar para tomar banho, é inexistente; onde você precisa confiar em organizações externas para ter alimentos e fazer fogo para cozinhar. Assim como os presídios e asilos deram margem para a contaminação pelo vírus nos Estados Unidos, o acampamento está cheio de pessoas que por ora não podem ir a lugar algum”, continuou. 

 

Guerra, mais refugiados e centelha da esperança

 

Enquanto a pandemia piorava a vida em acampamentos de refugiados na fronteira entre Estados Unidos e México, a massa global de pessoas que era forçada a deixar suas casas aumentava em decorrência da guerra entre Rússia e Ucrânia. O problema dos refugiados não é novo e desde os primeiros movimentos de seu pontificado Francisco alertava sobre esse mal que chegou a fazer do Mar Mediterrâneo um grande cemitério de refugiados, mas esse novo conflito não só aumenta a massa em deslocamento como ascende outros medos. Afinal de contas, vive-se na iminência de uma guerra nuclear. Nessa situação em que o medo toma a todos nós, quem vai pensar nesses que migram em busca de novas oportunidades para viver?

 

 

A irmã Norma insiste nisso, em ações concretas nos acampamentos e movimentos políticos. Aliás, essa postura chamou a atenção do Papa, que agradeceu pelo empenho e testemunho dados pela religiosa. Mas não pense que ela abraça essa causa com dor. Basta olharmos suas fotos em meio a mães dando de aconchego aos filhos na adversidade ou homens agradecidos por um agasalho e abraço amigo que percebemos a centelha da esperança acesa na irmã Norma. Seu sorriso largo revela essa esperança, que vem aliada com a coragem de alguém que não só optou pela vida religiosa consagrada, mas se questionou sobre onde deve estar e como deve ser a vida religiosa nesse cenário de transição epocal.

 

 

Saiba mais sobre Norma Pimentel

 

Religiosa da congregação Missionárias de Jesus, é diretora executiva da Catholic Charities of the Rio Grande Valley. Nasceu em Brownsville, no Texas, Estados Unidos, mas com fortes relações com o México. Ela se descreve como uma cidadã norte-americana por acaso, tendo crescido em ambos os lados da fronteira. Sua mãe era de Matamoros e seu pai de Chiapas, ambos no México.

Como aluna pobre no ensino médio, não mediu esforços para melhorar suas notas e ingressar na universidade. Estudou arte, obtendo um diploma de bacharel pela Universidade Pan-Americana. Quando jovem, ganhavam alguns trocados para subsistência desenhando vitrines para lojas de roupas.

 

Irmã Norma em discurso pela concessão da Medalha Laetare | Foto: Global Sisters

 

Contra vontade da família, ingressou na vida religiosa em 1978, já na congregação Missionárias de Jesus. Realizou mestrado em teologia pela St. Mary's University e, mais tarde, obteve outro título de mestre, agora em aconselhamento pela Loyola University Chicago. Começou a trabalhar com refugiados em 1980 até que, em 2004, se tornou diretora-executiva da Catholic Charities of the Rio Grande Valley. Antes, já vinha atuando na instituição como conselheira e diretora assistente.

Irmã Norma continua se dedicando à pintura, muitas vezes retratando as famílias de refugiados que conhece. As pinturas são frequentemente doadas para angariadores de fundos. Uma delas, inclusive, foi dada como presente ao Papa Francisco durante sua viagem de 2015 aos Estados Unidos. Além de destaque na Time, também recebeu a Medalha Laetare pela Universidade de Notre Dame em reconhecimento ao excelente serviço à Igreja Católica e à sociedade em março de 2018.

 

Reportagens com Norma Pimentel reproduzidas pelo IHU

 

 

Assista a conferência da irmã Norma

 

 

 

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