“Para as elites e as classes dirigentes, chegou o momento da destruição criativa do capitalismo”. Entrevista com Miguel Mellino

Fonte: Piqsels

04 Março 2022

 

Apesar da degradação política que as sociedades ocidentais sofrem há décadas, o escritor e professor da Universidade de Nápoles Miguel Mellino (Buenos Aires, 1967) oferece sua análise com lucidez e resistência. Acaba de publicar seu sexto livro, Gobernar la crisis de los refugiados (Traficantes de Sueños, 2022), em que escancara a voracidade de uma direita cada vez mais racializada, que hoje rufa furiosamente os tambores de guerra frente à decadência inexorável das velhas estruturas políticas do distante século XX.

 

O exemplo nu e cru é o cataclismo que Vladimir Putin acaba de provocar na Ucrânia. “É um nacionalismo reacionário neoliberal dentro de um novo plano de blocos em que as direitas começam a se dividir: um ocidental e outro bloco não ocidental, cada um deles com suas heranças históricas e com ferramentas que a economia lhes ofereceu nos últimos anos”, afirma nesta entrevista realizada em uma manhã na qual o sol de inverno ainda não tinha aquecido os bancos frios da madrilena estação de Atocha.

 

Mellino sabe o que hoje está em jogo e aborda a questão com a precisão de um entomólogo fascinado e comprometido. “Penso que é o golpe definitivo na ordem global que nasceu após o desaparecimento da URSS. O comércio mundial, como o conhecemos no momento, rompeu-se. A exclusão da Rússia vai claramente nessa direção”, acrescenta.

 

Intelectual sério e politicamente inserido nos movimentos antirracistas italianos, entre 1990 e 2005, reconhece a preocupante situação, mas se nega a perder a esperança: “Há alternativa. Existem muitas lutas fragmentadas por todo o continente europeu: o feminismo, a saúde e educação públicas, a dos migrantes, dos que defendem o direito à moradia etc. Caso confluam, podem se tornar uma alternativa real única”, conclui.

 

A entrevista é de Gorka Castillo, publicada por Ctxt, 01-03-2022. A tradução é do Cepat.

 

Eis a entrevista.

 

Como a guerra que Putin agora desencadeou na Ucrânia se encaixa nessa crise global que você descreve no livro?

 

Penso que é o golpe definitivo na ordem neoliberal que nasceu lá em 1989-1991, entre a queda do Muro de Berlim e o desaparecimento da URSS. É o fim daquele momento que Fukuyama chamou de “fim da história” e que teve o seu apogeu em 2001, em Gênova, quando o G-8 tomou a decisão de colaborar entre si para formar o que Toni Negri chamou de “império”. Esse grupo se rompeu porque dois desses oito países, China e Rússia, seguiram um rumo diferente.

 

Considera que a globalização, da forma como vem se desenvolvendo nas últimas décadas, está liquidada?

 

Sim, parece-me que esse modelo de globalização comercial acabou de se romper com esta crise. E é provável que inicie um período de desestabilização muito grande em nível econômico, energético e veremos se também militar, pois a situação é extremamente preocupante. Receio que tudo dependerá do que acontecer dentro da Ucrânia, se resistirá à agressão russa, e do que acontecerá com o futuro político do país. Mas um dos efeitos imediatos já começamos a ver: o comércio mundial, como o conhecemos no momento, rompeu-se. A exclusão da Rússia vai claramente nessa direção.

 

E o que pode surgir dessas cinzas?

 

A aceleração de soberanismos regressivos, que nada mais são do que uma nêmesis de desequilíbrios e desigualdades que o desenvolvimento neoliberal criou nos últimos 20 anos. Evidentemente, a situação atual é muito incômoda para a União Europeia porque confronta diretamente com o seu modelo de Maastricht, que também entrou em situação terminal, pois foi pensado para funcionar em outro cenário muito diferente do que agora nos é apresentado.

 

Que cenário?

 

O que alguns chamam de “ordoliberalismo”, um modelo sustentado na ordem, no liberalismo econômico, no comércio mundial e na paz. Hoje, começamos a vislumbrar que o panorama começa a se dividir em blocos e é aí que o modelo europeu não se encaixa.

 

Parece que o que Putin está demonstrando é uma deriva de nacionalismo reacionário em toda a sua magnitude, algo que estava começando a aparecer em setores ultradireitistas da Europa e dos Estados Unidos.

 

Putin representa um nacionalismo reacionário neoliberal, mas eu o colocaria dentro desse novo plano de blocos que começa a se configurar e que também divide as direitas: um ocidental e outro não ocidental, cada um deles com suas heranças históricas e com as ferramentas que a economia de mercado desumanizado lhes ofereceu nos últimos anos. Por isso, penso que o que está acontecendo é o efeito mais nu e cru das contradições de um sistema econômico baseado na hegemonia pura e dura.

 

Você é pessimista?

 

Não há necessidade de ser pessimista porque o que está por vir não é irremediável. O problema seria se não existisse nada para deter esse desenvolvimento. Temos a certeza de que a solução não virá do campo institucional. E acredito que isso ficou demonstrado durante a crise da pandemia, que funcionou como trampolim para o avanço de muitas tendências neoliberais que já estavam em curso.

 

O confinamento em massa foi o parêntese que as elites políticas aproveitaram para pisar no acelerador dentro de sua lógica total do sistema. Pensemos no que aconteceu com a digitalização da economia. Mas há algo mais. A única reposta dos governos foi a vacina. E isso não é suficiente porque não foi somente uma crise sanitária, mas muito mais a crise de um modelo de produção global. Agora estamos vendo que algumas dessas mudanças vão em uma direção muito perigosa.

 

Quais mudanças?

 

Para as elites e as classes dirigentes, chegou o momento da destruição criativa do capitalismo. Estão desmontando uma parte das velhas estruturas para criar as bases de uma nova lógica de acumulação. Minha esperança é que nasçam movimentos da base, que muitas das lutas sociais que já existiam voltem a ser revitalizadas e que possam se conectar entre si para frear o que se projeta hoje de cima.

 

No livro, você afirma que o capitalismo foge para o futuro para sobreviver utilizando as ferramentas de coerção como o medo, o racismo, a corrupção e, se for necessário, também a guerra, levantando a bandeira da liberdade. De que liberdade falam?

 

Essa é a questão. Talvez a resposta explique o retorno ao cenário político desses partidos de ultradireita que se apresentam na sociedade com o desejo de dar um chute no tabuleiro de negociação. Tudo isso representa um retorno ao fascismo original europeu.

 

E por que cito o fascismo original? Porque se você analisar sua genealogia, comprovará que nasceu, na Alemanha e na Itália, como uma força libertadora para o povo da pulsão do capitalismo industrial, mas em troca da obtenção da hegemonia do culto à tecnologia e às máquinas. Sua finalidade era simples: que os grupos mais aptos dominassem o mundo e as nações. E hoje vivemos um processo parecido.

 

Durante a pandemia, vimos isso muito bem. Sob a bandeira da liberdade, a direita tensionou a situação até os limites da convivência, o que, em minha opinião, define suas intenções.

 

Há quem considere que a esquerda, dividida em facções, deixou o campo livre para eles. Qual é a sua opinião?

 

Por um lado, é verdade que a esquerda descuidou de suas posições sobre a liberdade e preferiu se refugiar em outras demandas, mas me parece mais importante aprofundar sobre que tipo de liberdade a direita reivindica. Ou para ser mais preciso: que tipo de significado a direita confere à liberdade? E parece-me que a comparação com o fascismo original europeu é muito oportuna porque o modelo que nos oferece é libertar o capitalismo de tudo que o impede de crescer e governar esta crise.

 

Assistimos o auge de grupos antidemocráticos que não aceitam o resultado de algumas eleições, tomam de assalto instituições do Estado com total impunidade ou apresentam candidatos, como o francês Éric Zemmour, que define a si mesmo como um intelectual moderno. Algo tão distópico, como a necropolítica ou o biopoder, está sendo normalizado?

 

Não acredito que estejamos nos entorpecendo diante desses fatos. O que penso é que, e falo da Europa, vivemos três crises profundas de forma muito continuada e isso desorientou as diferentes almas da esquerda europeia e global. Mas não se pode esquecer de algo importante. Essas direitas tão agressivas que nós temos, que chamamos de “alt-right” ou de “soberanismos neofascistas”, são a reação aos avanços sociais que as lutas antirracistas, feministas, dos imigrantes, antifascistas ou do mundo do trabalho tinham começado a conquistar nos últimos anos.

 

De certo modo, são o efeito restaurador que as elites colocaram em operação diante da crise de hegemonia que o seu modelo de governança sofre. Não são algo externo e nem antissistema como às vezes aparentam ser, mas uma espécie de nêmesis da ordem neoliberal precedente, o Mister Hyde do sistema.

 

Nascem da profunda desigualdade e dos grandes desequilíbrios deixados pela grande recessão de 2008.

 

É por isso que digo que esses problemas estouram depois de 25 anos de neoliberalização profunda que nos deixou uma herança catastrófica, com margens de exclusão cada vez mais extensas, enquanto um setor mínimo da sociedade aumenta a concentração da riqueza. Isso gerou medo em uma classe média que teme acabar do lado dos excluídos. E a ultradireita soube ler o momento para interpelar os setores que a crise deixou desprotegidos.

 

Estão engolindo os partidos tradicionais de direita. É o que vimos na França e na Itália e que começamos a ver na Espanha. Que saída possuem?

 

O que estamos vivendo é uma grande crise de representação política. Essa é a realidade. O sentimento de fragilidade e vulnerabilidade se generalizou e os movimentos de extrema direita compreendem isso perfeitamente. Por isso, mantêm um certo espírito antissistema com o qual estão conseguindo capturar esse descontentamento.

 

No entanto, é verdade que entramos em uma nova fase do capitalismo neoliberal em que as posições são muito mais extremas do que no período anterior, que é onde os partidos conservadores ou liberais tradicionais permaneceram estagnados.

 

Enxerga semelhanças entre o que acontece em países como Espanha ou Itália e o que aconteceu nos Estados Unidos, com Donald Trump, e agora com a Rússia de Putin?

 

A situação da Europa é muito complexa. Nos Estados Unidos, Trump, com muitas contradições e sob um preceito neoliberal regressivo, incorporou certo protecionismo econômico depois de 25 anos de deslocalizações que geraram uma enorme marginalidade nos setores sociais e nos territórios menos globalizados do país.

 

As extremas direitas europeias são muito diferentes, em parte porque nenhuma delas contempla o protecionismo em sua carta de apresentação, porque não conseguiriam o consenso do capitalismo produtivo do continente, tendo em vista que a margem de soberania dos Estados é mínima.

 

É verdade que essas direitas representam as pequenas burguesias nacionais e clientelistas, mas seu problema é que o sistema econômico europeu está dominado pela Alemanha, um país exportador de bens. Este quadro as impede de propor um protecionismo nacional. Por isso, sua aspiração é manter a base do sistema produtivo: a de continuar exportando mercadorias e tecnologia, mas governando de outra maneira.

 

Como?

 

Com um governo racista da crise. A principal proposta da extrema direita europeia é oferecer aos cidadãos, brancos e autóctones, um novo pacto que inclua uma guinada baseada na repressão, endurecimento do controle policial dos protestos e das fronteiras.

 

Mas no neoliberalismo surgido em inícios dos anos 1980 já existia um núcleo reacionário e classista. Como um modelo em crise conseguiu retificar a si mesmo?

 

Efetivamente, o neoliberalismo já tinha um roteiro bem definido quando nasceu, em finais dos anos 1970 e inícios dos anos 1980, com Reagan e Thatcher. Dedicou-se a hierarquizar os cidadãos, com um securitarismo que não visou apenas controlar a crise do liberalismo precedente, mas também responder às lutas operárias, antirracistas e feministas que caracterizaram aqueles anos.

 

Agora, preparam-se para outra guinada. Como? Hierarquizando os métodos coercitivos do sistema. Uma parte da sociedade pagará as consequências dessa crise. São os excluídos, as minorias e um setor do ativismo político. Mas o mais preocupante dessa construção político-ideológica é que coloca claramente a raça no centro.

 

E qual é o problema da esquerda diante desse radicalismo?

 

O problema da esquerda europeia é que não sabe o que fazer com a União Europeia. Não tem uma resposta para este problema, nem um projeto alternativo poderoso que corresponda ao que realmente transmite em público. Está presa na ordem binária do discurso neoliberal. O da União Europeia, que se apresenta como um neoliberalismo progressista, e o de uma direita radical que perdeu a inocência e se mostra aos cidadãos como uma opção regressiva, patriarcal, racista, reacionária e anti-imigração. Éric Zemmour a representa muito bem e diz isso sem nenhum tipo de preconceito.

 

A esquerda não chega a isso e tende a se refugiar muito timidamente no elo progressista da União Europeia. Mas isso não é uma resposta nem para a população migrante ou pós-migrante, que é a que mais sofre a violência racial do sistema, nem para esse setor heterogêneo que tem sofrido muito os altíssimos níveis de precarização, vulnerabilidade e exclusão provocados por 25 anos de neoliberalismo financeiro.

 

Então, que espaço alternativo resta nesse cenário?

 

Há alternativa. Existem muitas lutas fragmentadas por todo o continente – o feminismo, a saúde e educação públicas, a dos migrantes, dos que defendem o direito à moradia etc. – que, caso confluam, podem se tornar uma alternativa real única na Europa. Na Itália há alguns sinais.

Enquanto seguirmos identificados com o projeto atual da União Europeia será impossível sair dessa ordem binária em que estamos presos e será difícil colocar em xeque essa parte europeia governante ou essa parte reacionária que já se apresenta como outra opção para dirigir a crise na qual embarcamos.

 

Quem é Miguel Mellino?

 

É uma pergunta difícil. Sou um argentino que em 1989 migrou por motivos econômicos para a Itália, que é de onde vinha minha família. Então, sou produto de um duplo processo migratório. Em meus primeiros anos na Itália, levei a vida que normalmente um migrante leva quando chega a um país que não conhece e não entende a língua. Foram dois ou três anos difíceis. Acumulei uma experiência real, embora não, é claro, como a parte mais sofrida da migração, pois tive um pequeno privilégio por ser branco e homem.

No entanto, pude realizar uma trajetória intelectual e política dentro dos movimentos antirracistas italianos, de inícios dos anos 1990 até 2005, que me permitiu amadurecer muitas ideias e confrontar outras com as quais não concordava muito. Por exemplo, o refúgio fácil que uma parte da esquerda e dos movimentos sociais encontrou no humanitarismo e em uma lógica europeizada do antirracismo, diferentemente das tradições negras que existem nos Estados Unidos. O antirracismo está sendo cooptado por uma parte do capitalismo neoliberal com a lógica do politicamente correto.

 

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