03 Mai 2021
Os paralelos com os grandes eventos do passado nem sempre são possíveis, o professor Corbellini explica o porquê: "Depois das crises pandêmicas, as pessoas arriscam mais e gastam mais. Mas muitas pandemias destruíram civilizações inteiras".
A entrevista é de Linda Varlese, publicada por Huffington Post, 02-05-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Existe um romance muito famoso chamado "O mensageiro" publicado no início dos anos 1950 pelo romancista inglês Leslie P. Hartley que tem um início fulgurante. “O passado é um país estrangeiro, lá as coisas são feitas de forma diferente”. Ao falar por telefone com Gilberto Corbellini, professor titular de história da medicina da Universidade La Sapienza de Roma, ele nos cumprimenta com essa citação. É a premissa para repercorrer as etapas do que aconteceu na história como resultado de grandes transtornos "não financeiros", como podem ser justamente pragas ou epidemias, e entender realmente se podemos esperar do fim da pandemia do Coronavírus uma retomada econômica e social sem precedentes, um verdadeiro boom.
Para teorizar isso, um recente artigo apareceu no The Economist em que se conta que “Muitos especialistas acreditam que a economia dos EUA crescerá cerca de 7% este ano, cerca de cinco pontos percentuais mais rápido do que a tendência pré-pandêmica. Outros países também estão observando um crescimento excepcionalmente rápido. A análise do The Economist dos dados do PIB para as economias do G7 até 1820 sugere que uma aceleração assim sincronizada em relação à tendência é rara e não ocorria desde os anos do segundo pós-guerra”.
Professor, a situação seria tão insólita que os economistas estão se voltando para a história para ter uma ideia do que esperar. É realmente possível, neste caso, ler o presente através do passado e esperar esse crescimento econômico sem precedentes?
Quando olhamos para o passado para encontrar indicações para o presente, costumamos selecionar exemplos que eventualmente confirmem o que queremos encontrar: daí os casos relatados pelo Economist. E, de fato, tanto a pandemia de cólera do início de 1830 que atingiu duramente a Europa, quanto o fim da peste bubônica provocaram uma retomada econômica, com a França seguindo a Grã-Bretanha no caminho da revolução industrial e da reconstrução vertiginosa do modo urbano em Paris ou Londres. The Economist não se engana em dois pontos: as pessoas, que são as que constroem as retomadas após esses períodos de crise, têm uma atitude mais disposta aos riscos e estão mais propensas a gastar no final de períodos de crise pandêmica, e isso pode inflamar a economia. Mas nem sempre foi assim.
Conte-nos mais sobre isso.
Bem, a história nos diz que até à peste bubônica, todas as epidemias acabavam destruindo as civilizações. A civilização hitita no século XIV a.C., e várias dinastias egípcias, foram exterminadas pela peste, tularemia e esquistossomose, as civilizações Harappa e Mohenjo-Daro no vale do Indo foram exterminadas talvez pela peste. Pensamos também na chamada Peste de Atenas que atingiu a cidade-estado democrática por excelência durante o segundo ano da Guerra do Peloponeso (430 a.C.): depois da pestilência, Atenas desapareceu do contexto geopolítico. E assim a varíola com a Peste Antonina e a de Cipriano na Roma no final do século II e no século III d.C. desencadearam o declínio do Império Romano. Como você pode ver, nesses casos não houve nenhum renascimento, não foi possível se recuperar das crises sanitárias.
Mas as coisas mudaram após a Peste Bubônica ...
Sim. A Peste, que era pulmonar mais que bubônica, teve uma série de consequências que resultaram em danos sociais e demográficos. Entretanto, deve-se considerar que nos primeiros séculos do milênio ocorreram importantes inovações agrícolas, náuticas, etc. A peste matou muitas pessoas, mas também gerou uma espécie de nivelamento social e econômico, uma diminuição da força de trabalho. As pessoas podiam pedir mais dinheiro para trabalhar, muitas pessoas proprietárias de grandes bens morreram e houve uma redistribuição. As ondas de peste na Europa duraram até cerca de 1700 e essas crises ocasionaram uma seleção social favorável ao aprimoramento das inovações culturais e à criação de instituições político-administrativas que serviram à coleta de informações sobre a circulação da peste, mas também para a gestão e o governo da sociedade, e disso nasceu a burocracia moderna. Em última análise, houve um processo de eficiência social. É bem verdade que na Inglaterra e no norte da Europa provavelmente as ondas da Peste Bubônica que indiretamente causaram o aumento dos salários e favoreceram as especializações, concorreram para o fim do feudalismo, para o nascimento da burguesia, do comércio. Também a Reforma Protestante, com sua atenção nas necessidades das comunidades locais, foi favorecida pelo contexto sanitário caracterizado por ameaças epidêmicas.
A Peste, portanto, desestabilizou a sociedade e as pessoas se equiparam respondendo de forma parte casual, parte inovadora, buscando outras oportunidades e provocando uma reorganização econômica e, portanto, também o bem-estar social. O mesmo poderia acontecer após o Coronavirus?
Poderia. Mas não esqueçamos que as crises devido às pestilências que chegaram no novo mundo exterminaram civilizações inteiras. Em 200 anos, 90% das populações locais foram extintas. Essas populações nunca renasceram após as pragas, aqueles territórios foram ocupados por ocidentais, que se mudaram para lá. Portanto, o coronavírus pode ter efeitos diferentes sobre a economia dependendo dos contextos geopolíticos.
Exterminar civilizações. É isso que poderia acontecer na Índia? Onde o Coronavirus está causando danos incalculáveis, dizimando a população?
Penso que a Índia não seja tão representativa do mundo economicamente menos avançado. Ali os problemas demográficos são dramáticos: estamos falando de um país com um bilhão e 400 milhões de habitantes, uma densidade populacional assustadora, a presença de outras doenças, tensões sociais. A Índia é um barril de pólvora onde a Covid poderia ser um gatilho, mais que um fator realmente dramático. Basta pensar que a Índia deixou pelo menos 15 milhões de mortes à gripe espanhola, foi o país mais afetado. Outros países considerados pobres, como a região da África subsaariana, não parecem estar tão mal.
Portanto, voltando ao discurso inicial, devemos esperar um boom econômico no mundo ocidental como uma resposta à crise pandêmica vivida?
Fazer previsões é difícil. Nós, no Ocidente, temos um sistema econômico que, se mantiver suas conotações de capitalismo, de economia de mercado e democracia liberal, terá várias oportunidades para responder em termos de retomada desta crise. Mas também é verdade que a gripe espanhola e outras pandemias em algum momento terminavam ou se interrompiam, ou se encaminhavam para ondas cíclicas em escala global e tinham um período de latência mais ou menos longo. No presente caso, temos um vírus que continua circulando, gerando focos locais e variantes e ainda não temos referências precisas sobre a duração da imunidade. Muita incerteza para poder fazer comparações e previsões sólidas.
É verdade que certa direção de progresso foi tomada. Estou pensando não só à disseminação do smartworking, mas também na digitalização, na conexão, no uso cada vez mais massivo de inteligência artificial. Uma revolução que parece já em andamento e que de alguma forma parece confirmar a dicotomia crise/boom econômico ...
Crise e boom é um lugar-comum no capitalismo. A "destruição criativa" é um conceito de Schumpeter: como a evolução é criativa graças à seleção natural, a criatividade do capitalismo passa pelas crises. É o sistema que funciona assim e que, junto com a ciência e o liberalismo, criou o formidável bem-estar de que todos desfrutamos de modos diferentes. Mas existe um detalhe que não é insignificante. A queda da bolsa é um evento dramático que leva à falência centenas de milhões de pessoas, assim como uma crise de petróleo.
No entanto, esses são fenômenos que no nível da psicologia social têm características e consequências diferentes daquelas que observamos após uma pandemia. Pandemias levam as sociedades a se fechar. Em todo esse tempo, foram quase completamente ignoradas as respostas psicológicas dos cidadãos aos longos períodos de lockdown e a tudo o que o coronavírus comportou. Na contribuição das pessoas para o recomeço econômico e social haverá consequências nesse sentido e precisarão ser avaliadas. O smartworking, a digitalização e a inteligência artificial são realmente eficazes em alguns contextos que por muito tempo e não por acaso privilegiaram as interações sociais? Não vamos esquecer que somos, antes de tudo, animais sociais e que as pessoas que ficam interagindo quase que somente com máquinas que são, na realidade, estúpidas, podem ter um desempenho menor.
Dê-nos um exemplo.
Um bastante explicativo: a escola. Durante a gripe espanhola houve perdas de escolarização devido ao fechamento de escolas nos Estados Unidos, onde essas medidas foram tomadas. Faixas de jovens como resultado da perda da instrução viram sua renda média diminuir significativamente à medida que entravam no mundo do trabalho com menos competências. Teremos que lidar com o fato de que os jovens que passaram pelo EAD, da forma como foi feito, terão perdido a oportunidade de adquirir habilidades e que isso afetará sua capacidade de acompanhar um mundo que se torna cada vez mais assentado na aquisição de conhecimentos e técnicas que requerem um grande investimento de estudo.
Em última análise, alguns paralelos com as pragas do passado e a subsequente retomada econômico e social podem ser feitos, mas ainda assim estamos vivendo outra história.
Veja, o Economist não relata nenhuma lei social ou estudo que demonstre empiricamente que uma crise pandêmica ocorrida nas primeiras décadas de 2000 em uma sociedade com características como a nossa resultará em um boom. É possível.
Mas não é garantido. Mesmo os sinais que lemos na economia dizem que algumas atividades econômicas estão em expansão, como os setores de tecnologia e informação, mas outras são dramaticamente em decréscimo, como turismo, restaurantes, viagens, energia. Além disso, vamos falar claramente, aproveitamos os benefícios de nossas economias graças à mobilidade. As pessoas antes da Covid viajavam, criavam oportunidades para fazer circular mercadorias também graças a tecnologias, deslocalização, colocavam em movimento crescimento econômico e desenvolvimento do mercado de trabalho. Com essa pandemia, paramos, embora seja verdade que o comércio permaneceu eficiente em escala global.
No entanto, penso que é necessário devolver liberdade suficiente às pessoas, tanto gestores como turistas que garantem recursos importantes em muitos países, para viajar, deslocar-se e sustentar uma economia que tinha características como a que temos hoje. Isso vai acontecer, mas não sabemos quando. Provavelmente os países do Norte da Europa, mas também Nova Zelândia, Austrália, grande parte dos Estados Unidos terão ótimos resultados.
Por quê?
São países com estruturas demográficas mais circunscritas, digitalização e sentido cívico mais desenvolvidos. Não tenho tanta certeza de que será um fenômeno geral, justamente porque as sociedades são muito diversificadas. Na Itália estamos muito atrasados, sobretudo porque podem também chegar as mais incríveis tecnologias e infraestruturas, mas continuamos basicamente com pouco menos de 50% de analfabetismo funcional.
É plausível pensar em uma sociedade completamente diferente e completamente revolucionada? É ficção científica a possibilidade de um Big Bang econômico e social?
Você está me perguntando se existe a possibilidade de acabarmos visitando as Ilhas Bornéu apenas digitalmente? Eu acho que não, honestamente. A nossa psicologia não mudou o suficiente. As negociações que estão na base da economia e o encontro entre os países sempre foram mediados por interações físicas. Não estou convencido de que a digitalização possa ser o caminho para todo campo do conhecimento ou para satisfazer toda demanda de experiência. A digitalização de que falamos hoje, a inteligência artificial, a aprendizagem de máquina, a aprendizagem profunda simplificam a nossa vida, mas são próteses de uma inteligência que certamente ainda não está ao nível que nós sabemos expressar como seres humanos.
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Haverá um boom econômico pós-pandemia? Eis o que a história nos ensina. Entrevista com Gilberto Corbellini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU