31 Outubro 2018
“Não se deve fugir do presente, mesmo em tão más condições do ponto de vista ético, mas sim tentar fazer com que bata de novo aquele coração-consciência entorpecido; é preciso redimir o passado para que seja uma recarga para o presente e uma propulsão para o futuro.”
A opinião é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 28-10-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Poucos atentam para a origem da palavra “moderno”: ela deriva do advérbio latino de modo, que significa “ora, agora, pouco tempo atrás”, e, portanto, evoca o imediatismo, a evolução, a motilidade própria do tempo que flui.
Ironicamente, Gadda, em Cognizione del dolore [Cognição da dor], escrevia que, “se uma ideia é mais moderna do que a outra, é sinal de que nem uma nem outra são imortais”.
Na verdade, a classificação da era “moderna” nos manuais históricos, como se sabe, tem uma acepção bem diferente, porque, geralmente, abrange um arco de tempo que vai da descoberta da América (1492) à Revolução Francesa (1789), além do qual se alarga a era “contemporânea”.
Na realidade, a acepção genérica de “moderno” adquiriu a conotação de novidade em relação ao passado: basta pensar, em âmbito teológico, no “modernismo” ou no “modern style”, que, em âmbito artístico, foi uma variante da “art nouveau”.
Já foi dada uma sacudida em 1917 pelo escritor Rudolf Pannwitz, quando introduziu a categoria da “pós-modernidade”, que fez a fortuna dos ensaios de Jean-François Lyotard (“A condição pós-moderna”, de 1979, e “Moralidades pós-modernas”, de 1993).
No entanto, o conceito básico de “moderno” como sinônimo de presente é dominante ainda hoje, como em um texto escrito a quatro mãos pelo renomadíssimo fundador do Censis, Giuseppe De Rita, e por outro estudioso, Antonio Galdo, autor de ensaios interessantes justamente sobre a modernidade contemporânea com o seu eclipse da burguesia, a “grande crise”, as aflições da religião e dos ideais, e assim por diante.
O título assim como o subtítulo da obra, que falam de uma prisão e de uma armadilha, permitem compreender a abordagem crítica da análise deles.
Eu a apresento apenas alusivamente nesta página deste suplemento dominical, por sua natureza reservado à religião, porque os quatro capítulos que formam a espinha dorsal do livro (aliás, muito agradável na sua clareza, sinceridade e concretude, distante da bruma ornada de verificações socioculturais análogas) abrangem quatro temas sobre os quais eu mesmo me pronunciei ininterruptamente: tempo “líquido”, cultura digital, economia, política. E o apresento apesar de não ser um sociólogo, embora admita que meus interesses são ecléticos e móveis.
Isso ocorre porque os olhares que os dois autores dirigem ao panorama da “modernidade” têm um relevo capital também na experiência ético-religiosa. Exemplifico através de uma lista, nas entrelinhas dos quatro pontos cardeais indicados acima.
Comecemos com a já abusada mas efetiva detecção da “liquidez” do tempo atual, com todos os seus corolários de linguagem degradada, de esquecimento histórico-cultural, de esfarelamento das identidades de valor.
Continuemos ao longo das redes virtuais que envolvem aquela que, sem hesitação, é definida como “infosfera”, onde não só a linguagem, mas também a ética se degradam nos murais informáticos que não conhecem vergonha e dignidade.
Sem falar, depois, na ilusória liberdade de navegação em rede que é mapeada pela indústria do “big data”, como ensinam os recentes casos do mercado de dados sensíveis por grandes corporações, as “big five” estadunidenses, ou aquelas relacionadas com os condicionamentos eleitorais.
Ricoeur não hesitava em nos lembrar que “vivemos em uma época em que a atrofia dos fins corresponde a uma bulimia dos meios”. Como não pensar no império da tecnocracia sobre a ciência e no predomínio das finanças sobre a economia, pelo qual capital e trabalho desmoronam?
E, por fim, De Rita e Galdo nos introduzem na desconcertante fluidez da política, verdadeiramente reduzida a “um evento de futebol”, em que a torcida mais sinistra apaga qualquer projeto racional e as bandeiras tremulantes no ar da atualidade são não tanto os “desejos” e os projetos pessoais e sociais altos, mas sim as “necessidades” primárias de segurança e bem-estar.
Pois bem, todas essas mudanças de paradigma – como se costuma classificá-las – têm forte envolvimento no âmbito religioso, entendido no sentido genuíno do termo e não apenas como mera ilha sagrada onde se elevam volutas de incenso, velas brilham e cantam-se hinos.
Justamente por isso, o Papa Francisco não tem medo de avançar com as suas encíclicas, os seus discursos e os seus atos no horizonte “moderno”, sem temor de sujar a batina cândida no pó de um presente do qual não se pode escapar, ao contrário do que desejam os dois autores do livro, mas ao qual, certamente, não devemos nos uniformizar, adequar ou resignar.
A antropologia proposta pelas coordenadas socioculturais da “modernidade”, de fato, é problemática, sobretudo em nível ético. É imperante não tanto a imoralidade, aliás, bem atestada, mas sim a amoralidade, aquela indiferença que se estende também ao âmbito religioso, em que o ateísmo militante e coerente e a fé rigorosa e praticada foram substituídos pelo “apatismo” e, o fundamentalismo ou o vago sincretismo pela Nova Era.
Neste ponto, que valor tem falar de pecado e, em um espectro mais amplo, que significado têm categorias fundamentais como natureza humana, corpo, sagrado e profano, futuro?
Essas perguntas são respondidas, de forma bastante original, por Vittorio Robiati Bendaud, um autor de matriz judaico-italiana líbia, aluno do falecido rabino de Milão Giuseppe Laras. Digo “original” porque a sua abordagem não segue os parâmetros teóricos tradicionais, mas é uma série de percursos que usam uma instrumentação muito variada e às vezes até inesperada.
Ele recorre principalmente ao pensamento bíblico e judaico que constitui como que uma espécie de estrela guia dele, capaz de dar “sentido” àqueles conceitos enunciados acima, que agora estão afligidos por “pecados de sentido”, como diz o curioso título do livro.
Mas se esse guia interpretativo particular de “palavras já desgastadas e de reflexões abusadas no senso comum” é quase o baixo contínuo dos vários pequenos capítulos, o autor não hesita em avançar também em alguns campos da literatura e da ensaística contemporânea, sobretudo judaica, de Heschel a Buber, de Alain Corbin a Soloveitchik, de Gershom Scholem a Katzenelson e ao amado Laras, sem excluir, porém, por exemplo, o Cognetti das “Oito montanhas”, o Brontë de “Jane Eyre” e, particularmente, Daniel Varujan e Antonia Arslan, quando aborda o tema sensível do genocídio que também pertence ao povo armênio.
A trama, no entanto, é confiada principalmente às reflexões que, como se dizia, alimentam-se na fonte e no mesmo estilo epistemológico da tradição judaica. O apelo final, então, é o típico da própria religião bíblica, que é, por sua natureza, histórica e, portanto, encarnada. Não se deve fugir do presente, mesmo em tão más condições do ponto de vista ético, mas sim tentar fazer com que bata de novo aquele coração-consciência entorpecido; é preciso redimir o passado para que seja uma recarga para o presente e uma propulsão para o futuro.
Estamos, portanto, no espírito dialógico judaico-cristão: para muitos, a abundante colheita de ideias bíblico-judaica será uma surpresa justamente pela sua carga capaz de superar aquela resignada narrativa do presente que, de modo fulgurante e paralelo, foi proposta por duas figuras capitais do século XX. Por um lado, o agnóstico Camus em “A queda” (1956): “Uma única frase bastará para definir o homem moderno: fornicava e lia jornais”. Por outro lado, o crente Eliot em Fragment of an Agon (1922): “Nascimento, e cópula, e morte, / isso é tudo, isso é tudo, isso é tudo, isso é tudo... / No fim das contas, isso é tudo”.
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Presos na sagrada ''modernidade''. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU