09 Outubro 2018
Professor da Universidade de Nova York, Adam Przeworski (Varsóvia, 1940) é um dos cientistas políticos mais influentes de todos os tempos. Suas teorias sobre os alcances da democracia, as limitações e os obstáculos que enfrenta e sua contribuição sobre a natureza do voto popular nestes sistemas o tornaram uma referência.
A entrevista começou a se gerir há coisa de um ano. Sua agenda impedia encontrar o quando, mas desde então sugeriu o tentar, cada tanto, até que pudesse se concretizar. E é que Adam Przeworski divide seus dias entre a docência, a escrita e as conferências e palestras que oferece. No diálogo com Página/12 reflete sobre a democracia, seus alcances e limites, entre outras questões. O acadêmico polonês-estadunidense analisa a viabilidade das instituições democráticas como mecanismos eficientes de representação política, a convivência entre o capitalismo e a democracia, os altos níveis de desigualdade, o impacto do dinheiro na política, e os efeitos sobre a qualidade democrática.
A entrevista é de Bárbara Schijman, publicada por Página/12, 08-10-2018. A tradução é do Cepat.
Você estudou em profundidade comportamentos eleitorais em sistemas democráticos. O que exatamente as pessoas fazem quando votam?
Esta é uma pergunta delicada, porque a resposta depende se nos referimos ao “povo”, em singular, ou às “pessoas”, no plural. Nas democracias, o povo como coletividade decide quem o governará e o como, transmitindo instruções ao governo sobre o que deve fazer. Por sua vez, tudo o que as pessoas como indivíduos podem fazer é expressar suas preferências entre as opções que lhes são oferecidas, com a esperança de que muitos compartilharão essas mesmas preferências. É preciso levar em conta que votar e eleger não são a mesma coisa.
Por que o ato de votar não conota uma eleição?
Nos sistemas de partido único, as “eleições” servem apenas para intimidar uma resistência potencial em vez de selecionar os governos. Em muitos outros países se tolera a oposição, mas os governantes se asseguram que ninguém tenha a possibilidade de os remover. No entanto, mesmo quando as eleições não decidem quem irá governar, isso não significa que sejam insignificantes. A celebração de eleições não competitivas é uma fraude, mas é uma fraude se partimos do ideal de que a fonte última de poder reside no povo. Admitir uma norma e a violar na prática é uma gestão pouco convincente. Portanto, mesmo quando não são competitivas, as eleições deixam nervosos todos os dirigentes, algo que todas as eleições têm em comum.
Qual é sua definição de democracia?
Minha consideração da democracia é “minimalista”: a democracia é um arranjo político no qual as pessoas selecionam governos por meio de eleições e têm uma possibilidade razoável de os remover. É preciso notar, no entanto, que esta definição assume as condições prévias para a disputa de eleições – os direitos e as liberdades, simplesmente porque sem elas o governo em funções não poderia ser derrotado. Portanto, esta definição não é tão minimalista como pode parecer à primeira vista.
E como seria uma democracia ideal?
Para uma coexistência em paz, devemos ser governados, e isto, em algumas ocasiões, implica que sejamos proibidos de fazer o que queremos e em outras que sejamos ordenados a fazer o que não queremos. A democracia é um método para processar conflitos entre pessoas com diferentes interesses, valores ou normas. A todo momento e em toda sociedade, existem conflitos acerca de algo. Pensemos nas divergências e os choques que foram suscitados em torno do tema aborto na Argentina. E o que isto significa: que sempre há vencedores e perdedores. Inclusive, muitas das pessoas que votaram pelo candidato vencedor, acabam decepcionadas por seu desempenho. Mesmo quando uma democracia funciona muito bem, existirão pessoas descontentes. Se valorizamos este sistema, é porque permite lutar por nossos interesses e nossos ideais, porque repetidamente renova nossas esperanças, não por sempre obtermos o que queremos. Dito isto, é óbvio que algumas democracias funcionam melhor que outras, e que todos os sistemas democráticos podem ser melhorados em alguns aspectos.
O que leva em conta na hora de avaliar a qualidade democrática?
A medida em que a igualdade política se vê minada pela desigualdade econômica, especificamente, a influência do dinheiro na política.
Quais são os principais problemas que as democracias enfrentam hoje?
Sem dúvida alguma, a pobreza e a desigualdade, a xenofobia e o racismo. A primeira coisa que se deve ter em conta é que as instituições políticas funcionam em sociedades particulares, diversamente divididas por riqueza, religião, origem étnica, e outras questões, e que há limites ao que um sistema político pode conseguir. Nem sequer os governos democráticos melhor intencionados podem fazer tudo o que as pessoas querem.
Por outra parte, com frequência, também ocorre que os governos não sabem o que fazer: acredito que isto se passa com a situação econômica atual da Argentina. Os limites mais importantes à democracia se originam no capitalismo, um sistema no qual as decisões relativas à alocação de recursos produtivos – investimento e emprego – são guiadas pela concorrência do mercado. O capitalismo impõe limites às decisões que podem ser alcançadas pelo processo democrático, limites que atam todos os governos, sem considerar sua convicção ideológica.
Ao que se refere com “o governo (argentino) não sabe o que fazer”?
Não é só o governo que não sabe o que fazer diante da crise. Nem seus vários conselheiros e nem a oposição têm ideia. Os economistas dizem “por um lado” e “por outro lado”, e o governo vacila entre os lados, sem que suas medidas tenham o efeito desejado.
Recentemente, disse que os limites mais importantes à democracia se originam no capitalismo. Que alternativas há ao capitalismo?
Acredito que não há alternativas ao capitalismo, razão pela qual a democracia está condenada a funcionar dentro destes limites. Isto não significa que todos os governos democráticos sejam o mesmo. Há espaços dentro destes limites que dependem das condições específicas de cada sociedade e de sua configuração política.
Contudo, em linhas gerais, ao que se reduz a noção de democracia frente às políticas econômicas que regem o mundo, o avanço dos partidos extremistas na Europa e a enorme desigualdade?
São tempos difíceis praticamente para as democracias de todo o mundo, por todas estas razões. O maior perigo é que algumas forças políticas reivindiquem com êxito que a única maneira de solucionar as crises econômicas, as divisões fortemente arraigadas na sociedade ou as rupturas da ordem pública seja abandonando a liberdade política, unir-se sob um líder forte, reprimir a pluralidade de opiniões, em resumo, recorrer à autocracia, o autoritarismo, a ditadura ou como cada um queira considerar. A lição que aprendemos das experiências recentes da Venezuela, Turquia, Hungria e minha Polônia natal é que as instituições democráticas não contêm salvo-condutos que as protejam de ser derrubadas por governos devidamente eleitos e acatando as normas constitucionais. Quando Hitler chegou ao poder, a possibilidade de um caminho legal para a ditadura foi vista como um defeito da Constituição de Weimar. No entanto, esta possibilidade pode ser geral. O fundamental é que o desgaste da democracia não acarrete uma violação da constitucionalidade. Por sua vez, quando o governo toma medidas que não são flagrantemente inconstitucionais ou antidemocráticas, os cidadãos que se beneficiam de suas políticas são lentos para reagir, mesmo quando valorizam a democracia.
Por que agrupa Venezuela, Turquia, Hungria e Polônia?
Porque são os quatro países onde os governos tentam remover todos os obstáculos institucionais que possam impedir que façam o que queiram e coloquem em xeque sua perpetuidade no poder.
Quais são as principais diferenças entre as democracias europeias e latino-americanas atuais?
Costumo me tornar alvo de críticas por dizer isto, mas acredito que as diferenças não são entre continentes. Chile não é Honduras, Noruega não é Romênia. A principal linha divisora é a corrupção. O grau de corrupção na Argentina e no Brasil não tem paralelos na Europa.
Refere-se a beneficiar certos setores ou ao financiamento eleitoral da política?
A utilização do dinheiro para financiar a política é o açoite da democracia praticamente em todos os lados. Contudo, não acredito muito na eficácia da regulamentação legal. Podem ser escritas todos os tipos de regras, mas têm pouco efeito. Não são eficazes porque os que supostamente precisam fazer com que sejam cumpridas estão sujeitos à mesma influência do dinheiro que aqueles que regulam. A forma mais eficaz para equilibrar o jogo político é a mobilização das pessoas com poucos recursos econômicos, os sindicatos e as organizações da sociedade civil, como ocorreu nos países escandinavos até há pouco.
O que foi que aconteceu lá?
A presença de sindicatos fortes que apoiavam os partidos de esquerda fazia com que os recursos financeiros e organizacionais que entravam nos jogos de influência estivessem bem equilibrados. No entanto, na atualidade, os sindicatos são mais fracos e suas relações com os partidos socialdemocratas muito mais distantes.
Defende que “a igualdade política não é possível em sociedades econômica e socialmente desiguais”. Por quê?
A resposta foi dada por Marx, em 1844, em Sobre a questão judaica. Quando as pessoas que são desiguais em termos de riqueza, ingressos, educação, entram no campo político, perdem todos estes atributos. Como “cidadãos” somos todos anônimos, indistinguíveis: “uma pessoa, um voto”. Mas, uma igualdade política formal não é suficiente para gerar uma igualdade de influência política real. Até mesmo quando há igualdade de direitos, algumas pessoas carecem das condições materiais necessárias para participar na política. Os direitos para atuar não são mais que um vazio, caso careça das condições habilitantes, sendo que a desigualdade destas condições é suficiente para gerar desigualdade de influência política. Por outro lado, a concorrência entre os grupos de interesse para influenciar politicamente inclina as políticas dos governos em favor daqueles que são ricos ou que estão melhor organizados.
Mesmo se existissem os direitos para atuar e as condições habilitantes que você mencionou, e considerando que partimos da premissa de que se trata de democracias capitalistas, não se trata na realidade de democracia eleitoral e nada mais?
A relação entre democracia e capitalismo está sujeita a opiniões contrapostas. Afirma-se uma afinidade natural de “liberdade econômica” e “liberdade política”. Liberdade econômica significa que as pessoas podem decidir o que fazer com sua propriedade e sua capacidade ou força de trabalho. Liberdade política significa que pode dar a conhecer suas opiniões e participar nas eleições que determinarão quem e como governará. Contudo, equiparar os conceitos de “liberdade” nos dois terrenos é só um jogo de palavras. Se revisássemos a história, ficaríamos surpresos pela coexistência do capitalismo e a democracia. A partir do século XVII, quase todo o mundo, da direita e da esquerda, acreditava que a desigualdade econômica não podia coexistir com a igualdade política. Estes prognósticos extremos resultaram ser falsos.
Contudo, ao mesmo tempo, considera que a igualdade política não é possível em sociedades econômica e socialmente desiguais...
Em alguns países, a democracia e o capitalismo coexistiram sem interrupções durante ao menos um século e em muitos outros países por períodos mais curtos, mas extensos, a maioria dos quais seguem até hoje. Os partidos operários que tinham a esperança de abolir a propriedade privada dos recursos de produção se deram conta de que esta meta é irrealizável e aprenderam a valorizar a democracia e a administrar as economias capitalistas todas as vezes em que venceram as eleições. Os sindicatos, também originalmente vistos como uma ameaça mortal para o capitalismo, aprenderam a moderar suas demandas. Como resultado, os partidos operários e os sindicatos aceitaram o capitalismo, ao passo que os partidos políticos burgueses e as empresas aceitaram certa redistribuição do ingresso. Os governos aprenderam a organizar este compromisso: regulamentar as condições de trabalho, desenvolver programas de seguridade social e igualar oportunidades, e, em paralelo, promover o investimento e encarar os ciclos econômicos. No entanto, este compromisso hoje está quebrado.
Em que sentido?
Os sindicatos perderam muito de sua capacidade para organizar e disciplinar os trabalhadores e com isso seu poder de monopólio. Os partidos socialistas perderam suas linhagens de classe e com isso sua peculiaridade ideológica e política. O efeito mais visível destas mudanças é o exorbitante aumento da desigualdade em nível de ingressos. Justamente, um ponto central no neoliberalismo de Thatcher e Reagan era fragilizar os sindicatos e abrir fronteiras ao fluxo de capitais. Os efeitos sobre a distribuição do ingresso por lucros e salários são dramáticos. Nos Estados Unidos até o final dos anos 1970 e na Europa até o final dos anos 1990, os salários cresceram com taxas quase idênticas as do crescimento da produtividade. E, de repente, os salários deixaram de crescer, mesmo a produtividade cresça. Outra questão que evidencia o mesmo é o fato de que a participação da remuneração ao trabalho na distribuição do valor agregado diminuiu bruscamente. Acredito que estes efeitos foram intencionais, que o neoliberalismo foi um autogolpe da burguesia.
Você comentou que por questões que tem a ver com sua história pessoal, acompanha de perto o que acontece na Argentina e no Brasil, entre outros países da região. Qual é a sua análise política e econômica do que ocorre por estes lados?
Sempre hesito em opinar a fundo sobre países em que vivo. De fora, é evidente que a Argentina e o Brasil enfrentam crises urgentes, mas isto é uma banalidade. A corrupção generalizada é sua característica compartilhada, mas tenho a impressão de que a estrutura da crise econômica não é a mesma. A estrutura econômica do Brasil está muito mais diversificada que a da Argentina. O Brasil está experimentando uma estagnação a longo prazo, ao passo que a Argentina experimenta fortes altos e baixos.
Até que ponto a intromissão de organismos internacionais na política interna de um país – o Fundo Monetário Internacional (FMI), no caso da Argentina – não mina a democracia?
Estudei o assunto em detalhe, e acredito que os programas do FMI prejudicam o crescimento a longo prazo, principalmente ao obrigar os governos a reduzir o investimento em infraestrutura. Contudo, não acredito que minem diretamente a democracia. Acima de tudo, são governos eleitos democraticamente que apelam ao FMI, às vezes, só para conseguir um pretexto para o que desejam fazer de qualquer modo.
Adam Przeworski nasceu em Varsóvia, Polônia, em 1940. É professor de Ciência Política na Universidade de Nova York. Atuou como professor na Universidade de Chicago e foi docente convidado na Índia, Chile, França, Alemanha, Espanha e Suíça.
Membro da Academia Americana das Artes e as Ciências desde 1991, foi distinguido, entre outros, pelos prêmios: Socialist Review Book, em 1965, Gregory Luebbert, em 1997, Woodrow Wilson, em 2001, John Skytte, em 2010, e pelos prêmios Sakip Sabanci e Juan Linz, em 2018.
Escreveu mais de 13 livros e inúmeros artigos. Entre suas publicações, estão: Democracia e Mercado: Reformas Políticas e Econômicas no Leste Europeu e na América Latina (Relume Dumará, 1994), Democracy and Development (2000), Las reformas económicas en las nuevas democracias (Alianza, 2003), Democracia sustentable (Paidós, 2003), States and Markets (Cambridge University Press, 2003) e Democracy and the Rule of Law (Cambridge University Press, 2003). Recentemente, publicou Why Bother with Elections? (Londres: Polity Press, 2018).
Em sua consideração “minimalista” da democracia, Przeworski afirma que se trata de um “mecanismo de alternância no poder, através das eleições, que permite processar conflitos políticos em paz e liberdade”. Para o intelectual, a democracia é o melhor sistema para promover a igualdade frente a outros sistemas de governo porque “redistribui os ingressos através do governo, com impostos e transferências”. Nesta visão, no entanto, lamenta as limitações que impõe o mercado e a desigualdade política que a desigualdade econômica acarreta.
Foi membro do Grupo de Setembro dos marxistas analíticos.
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“A forma mais eficaz para equilibrar o jogo político é a mobilização”. Entrevista com Adam Przeworski - Instituto Humanitas Unisinos - IHU