01 Setembro 2018
“De onde vem esse ódio extremo aos padres gays? Vem do medo. Medo do ‘outro’. Medo da pessoa que é diferente. Às vezes, o medo da própria sexualidade complicada. Em tempos assustadores, culpar e transformar o ‘outro’ em bode expiatório pode dar uma sensação de empoderamento.”
A opinião é do jesuíta estadunidense James Martin, editor-geral da revista America, 30-08-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Não é de surpreender que os católicos estejam furiosos com a última crise dos abusos sexuais, que começou, mais recentemente, com acusações de abuso e de assédio contra o ex-cardeal-arcebispo de Washington, Theodore McCarrick; aprofundou-se com o relatório do Grande Júri da Pensilvânia, detalhando 70 anos de abuso no Estado; e se intensificou com o “testemunho” de 11 páginas do arcebispo Carlo Maria Viganò, ex-núncio vaticano nos Estados Unidos, acusando muitos clérigos do alto escalão, incluindo o Papa Francisco, de encobrir os crimes.
Os católicos têm o direito de estar zangados com o clero abusador, com os bispos que encobriram seus crimes e com o sistema clerical esclerosado que permitiu que os crimes e os encobrimentos ficassem impunes durante décadas.
Mas a intensidade do ódio e do nível da raiva dirigidos contra os padres gays não têm precedentes na minha memória.
Ao falar de “padres gays”, refiro-me aos padres ordenados de orientação homossexual que vivem suas promessas de celibato (e, nas ordens religiosas, seus votos de castidade). O fato de ser necessário até mesmo definir o termo “padre gay” aponta para a desinformação generalizada sobre aquele que se tornou talvez o tema mais incendiário na discussão atual.
Alguns comentaristas chegaram a declarar que o termo “gay” implica que um padre deve ser sexualmente ativo. Quando eu uso o termo, um “padre gay” significa simplesmente um padre ordenado que tem uma orientação homossexual.
O furor latente há muito tempo contra os padres gays e a suposta “subcultura homossexual” ou a “Máfia Rosa” foi alimentado até se tornar um incêndio que ameaça engolfar não apenas os padres gays fiéis, mas também, de forma mais ampla, as pessoas LGBT.
Embora o desprezo dirigido ao clero gay venha de apenas um punhado de cardeais, bispos e padres, assim como de um subconjunto de comentaristas católicos, ele é tão intenso quanto perigoso. “É hora de admitir que há uma subcultura homossexual dentro da hierarquia da Igreja Católica que está causando uma grande devastação na vinha do Senhor”, escreveu Dom Robert Morlino, bispo de Madison, Wisconsin.
Um bispo suíço, Marian Eleganti, declarou que as “redes” de padres gays na Igreja devem ser investigadas antes que a “grande purificação” possa começar. Um bispo do Cazaquistão, Athanasius Schneider, ao listar remédios para o abuso por parte do clero, começou com este: “Purificar sem restrições a Cúria Romana e o episcopado de grupelhos e redes homossexuais”. O cardeal Raymond Burke, o influente ex-arcebispo de St. Louis, disse: “Existe uma cultura homossexual não apenas entre o clero, mas até mesmo dentro da hierarquia, que precisa ser purificada na raiz”.
Michael Hichborn, presidente do Instituto Lepanto, leva isso à sua inevitável conclusão, dizendo à Associated Press que o que é necessário é “uma remoção completa e abrangente de todos os clérigos homossexuais na Igreja”.
Nos últimos dias, tenho visto mais comentários homofóbicos em minhas contas de mídia social do que nunca. O aumento do veneno não é surpreendente, especialmente depois desse tipo de comentários provenientes de lideranças da Igrejas e de comentaristas católicos ou depois de manchetes como estas: “Papa culpa o abuso sexual pelo clericalismo, deixando de lado a homossexualidade”; “Crise dos abusos sexuais na Igreja tem a ver com homossexualidade, não com pedofilia”; “Predadores homossexuais, e não os sacerdotes pedófilos, são o câncer mortal da Igreja”.
O “testemunho” do arcebispo Viganò também abundou desse mesmo tipo de linguagem: “Essas redes homossexuais, já disseminadas em muitas dioceses, seminários, ordens religiosas etc., atuam encobertas pelo sigilo e pela mentira com o poder dos tentáculos de um polvo e esmagam vítimas inocentes e vocações sacerdotais, e estão estrangulando a Igreja inteira” (revelação total: tanto o arcebispo Viganò em seu “testemunho” quanto o cardeal Burke em uma recente entrevista me mencionaram pelo nome).
É importante dizer que a maioria (mas não todos) dos crimes de abuso clerical eram casos de padres que atacavam adolescentes do sexo masculino e meninos. Além disso, a maioria (mas não todos) dos casos de assédio sexual eram de homens assediando outros homens adultos ou jovens. Independentemente das complexas questões psicológicas de quanto a sexualidade de uma pessoa tem a ver com o abuso, do quanto as diferenças de poder têm a ver com o abuso e quanto a proximidade tem a ver com o abuso, devemos afirmar claramente: muitos padres abusadores tinham uma orientação homossexual. Isso é inegável.
Mas o próximo passo é onde a conversa pode tomar um rumo perigoso. O fato de muitos abusadores serem padres gays não significa que todos ou até mesmo que a maioria dos padres gays sejam abusadores. É um estereótipo perigoso e injusto. Simplesmente porque uma determinada porcentagem de um grupo age de uma certa maneira não significa que o grupo inteiro ou mesmo que a maior parte do grupo vai agir da mesma maneira.
Então, por que parece que muitos padres gays são abusadores? Uma razão é que não há exemplos públicos de padres gays saudáveis e celibatários para combater esses estereótipos. Por que não? Porque os padres gays não estão dispostos a sair a público sobre a sua identidade quanto os padres heterossexuais. Por exemplo, em uma comunidade que sofre de uma onda de violência LGBT, pode não haver referências em uma homilia de domingo ao significado de sofrer bullying por ser gay. O presidente da celebração não pode dizer: “Quando menino, eu também sofri bullying por ser gay”.
Por que os padres gays sentem que não podem sair a público? Por várias razões.
Primeiro, o medo de “sair do armário” nesse ambiente cada vez mais venenoso (pergunte a si mesmo se você “sairia do armário” quando até os bispos pedem uma “limpeza” de homens como você).
Segundo, bispos e superiores de ordens religiosas temem que seus homens (novamente, padres celibatários e castos) possam ser alvos da mídia ou de sites homofóbicos.
Terceiro, uma vergonha subjacente sobre a sua sexualidade.
Quarto, um desejo inato de privacidade sobre um aspecto pessoal da própria vida.
Quinto, o medo de que, na ausência de outros padres “fora do armário”, o indivíduo possa se tornar o “garoto-propaganda” do grupo.
Tais razões significam que o exemplo de muitos padres gays trabalhadores, saudáveis e celibatários (e membros castos de ordens religiosas) está quase totalmente ausente tanto da consciência da Igreja quanto da visão pública.
Há exceções, como o Pe. Gregory Greiten, da Arquidiocese de Milwaukee, e o Pe. Fred Daley, da Diocese de Syracuse, padres que “saíram do armário” publicamente como gays. Mas os padres Greiten e Daley são dois de apenas um punhado de clérigos como eles. E enquanto os bispos e os superiores religiosos não apoiarem os padres gays em seus desejos de saírem mais a público sobre quem são, e enquanto os padres gays não estiverem dispostos a pagar o preço da honestidade, é improvável que a situação mude.
Consequentemente, o estereótipo do “padre gay abusador” predomina agora. Para usar outro exemplo, imagine se as únicas histórias transmitidas sobre membros de um grupo étnico, social ou religioso fossem as daqueles que cometeram crimes. Além disso, imagine que nenhuma história positiva sobre seus membros cumpridores da lei fosse tornada pública. No fim, o estereótipo negativo predominaria: “Todos os membros desse grupo são criminosos” (infelizmente, esse não é um cenário difícil de imaginar: muitos grupos étnicos enfrentam os mesmos tipos de estereótipos).
Esse medo leva a um ciclo de sigilo: menos padres gays celibatários aos olhos do público significam mais estereótipos. Mais estereótipos levam a mais medo. Mais medo leva a mais sigilo.
Outros estereótipos malignos também estão sendo propagados, por exemplo, a ideia de que a homossexualidade inevitavelmente leva ao abuso. Isso é contradito por quase todos os estudos, incluindo o Relatório John Jay, um estudo exaustivo sobre o abuso sexual na Igreja Católica entre 1950 e 2010. A maioria dos abusos ocorre nas famílias. E ninguém, até onde eu sei, sugere que a heterossexualidade promove o abuso.
Além dessas razões, há uma explicação talvez mais importante: a intensa homofobia que ainda existe em alguns setores da Igreja. E isso deve ser chamado pelo que é: ódio.
Alguns dias atrás, um padre gay me enviou esta astuta observação: “Estamos tão acostumados com as pessoas gays sendo maltratadas na Igreja que podemos internalizar a intolerância homofóbica que estamos vendo agora e que Viganò expressou em seu testemunho e deixou de nomear. É profundamente odioso. E se ele estivesse fazendo ataques similares contra outro grupo étnico ou religioso, haveria uma reação bem diferente – provavelmente até de dentro da Igreja. Mas, como os padres gays estão tão condicionados a encarnar o bode expiatório, ficamos envergonhados demais para falar”.
Existe uma “subcultura gay” na Igreja? Eu nunca trabalhei no Vaticano, então não posso comentar sobre esse local de trabalho. Mas, em meus 30 anos como jesuíta, tenho visto que padres gays nas dioceses dos Estados Unidos, assim como em ordens religiosas, trabalham bem com seus pares heterossexuais – assim como com leigos heterossexuais: associados pastorais, membros de conselhos paroquiais, paroquianos, assim como diretores, administradores e professores. Na vida religiosa, eles vivem pacificamente com seus irmãos heterossexuais.
Mais precisamente, conheço centenas de padres gays, e posso dizer com sinceridade que todos eles se esforçam para manter suas promessas de celibato e seus votos de castidade, e nenhum deles conspira com outros padres gays, e, mesmo assim, muitos deles são desmoralizados por essa “caça às bruxas” cada vez mais alimentada pelo ódio.
De onde vem esse ódio extremo aos padres gays? Vem do medo. Medo do “outro”. Medo da pessoa que é diferente. Às vezes, o medo da própria sexualidade complicada. Em tempos assustadores, culpar e transformar o “outro” em bode expiatório pode dar uma sensação de empoderamento. Como o filósofo René Girard aponta consistentemente, o bode expiatório nos une em torno de um inimigo comum e nos encoraja a acreditar, falsamente, que resolvemos o problema.
Esse ódio que atualmente está sendo instigado por algumas influentes lideranças da Igreja e comentaristas da Igreja, se não for controlado, nos levará a um lugar de grande escuridão, caracterizado por um ódio crescente por indivíduos inocentes, pela condenação de um grupo inteiro de pessoas e pela distração das verdadeiras questões que subjazem a essa crise dos abusos sexuais.
Há muitas coisas que precisam ser abordadas quando se trata dos abusos sexuais do clero: a seleção imprópria dos candidatos; a predominância da cultura clerical que privilegia a palavra dos padres sobre a dos leigos (e dos pais); a pobre formação no seminário, especialmente em áreas da sexualidade; a necessidade de regulamentos que punam os bispos que encobriram o abuso e muitos outros fatores.
O que não é necessário é a demonização dos padres gays. O que não é necessário é mais ódio.
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A ''caça às bruxas'' contra os padres gays. Artigo de James Martin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU