04 Abril 2018
“A Comissão Australiana estudou profundamente este problema em seu país, incluindo a realidade estrutural e operacional da Igreja Católica. Foi um trabalho objetivo e de qualidade, pelo qual somos profundamente agradecidos. Ele revelou a dureza do crime e os enormes danos causados às vítimas e suas famílias. A Comissão nos impulsiona a buscar as justas medidas de reparação para as vítimas e a renovação e mudanças que a Igreja necessita, tanto em sua estrutura de governo como em seu modo de proceder, para ser a Igreja de Jesus que acolhe a todos, especialmente os mais fracos”. A reflexão é de Agustín Moreira Hudson, jesuíta chileno, em artigo publicado por revista Mensaje, março de 2018. A tradução é de André Langer.
O relatório apresentado no dia 15 de dezembro de 2017 pela Royal Commission into institutional Responses to Child Sexual Abuse da Austrália representa um passo valioso em direção a medidas mais adequadas de reparação e justiça para as vítimas de abusos, assim como para a tarefa de renovação da Igreja Católica. Trata-se da resposta formulada pelo Estado desse país para as numerosas denúncias apresentadas há anos sobre esse tema e que foram feitas no contexto proporcionado pela legislação local para a convocação de uma “Comissão Real” para tratar de questões de interesse nacional.
Esse país, o sétimo maior do mundo com seus 7,7 milhões de quilômetros quadrados, tem aproximadamente 24 milhões de habitantes, dos quais 22,6% se declaram católicos. Durante as últimas décadas, essa população viu-se abalada por relatos de abusos sexuais de menores, fazendo com que no 12 de novembro de 2012 a então primeira-ministra, Julia Gillard, convocasse uma Comissão Real para analisar, analisar e fazer propostas sobre o assunto.
Seis comissários de alto prestígio e conhecida trajetória de serviço público foram encarregados de realizar a tarefa. Em seus pouco mais de cinco anos de intenso e exaustivo trabalho nacional, a Comissão recebeu 42 mil chamadas telefônicas, fez mais de 8 mil sessões privadas de escuta e constatou – de 1950 a 2017 – 6.875 menores vítimas de abusos sexuais, dos quais 2.489 estavam estudando em instituições ligadas à Igreja Católica.
Em relação à Igreja Católica, a entidade fez um amplo e profundo exame. Em seu Relatório Final, destina 926 páginas para a análise de sua estrutura e modo de atuação, além de fazer importantes propostas de melhoria, visando à proteção das crianças.
Na Austrália, instituições ligadas à Igreja recebem uma de cada cinco crianças em idade escolar. A Comissão revelou que 36% do total das vítimas de abusos sexuais de menores estavam ligadas a ela. A Igreja Católica registra 1.880 abusadores de menores, 96% dos quais são do sexo masculino. Entre eles estão padres, irmãos religiosos, leigos e voluntários. Em média, o primeiro abuso se dá em torno dos 10 anos, com 74% das vítimas do sexo masculino. O tempo médio transcorrido entre o abuso e sua denúncia foi de 33 anos.
Desde 1940 já se falava da propensão dos abusadores a repetir esse comportamento. O proceder reiterado de bispos e superiores religiosos em face de denúncias de abusos foi a transferência do abusador para outras paróquias ou escolas. Durante muito tempo, a pedofilia não foi compreendida, nem se sabia o que fazer com um pedófilo. Ignorava-se que ela pode ser compulsiva, repetitiva e viciante. Foi tratada como uma falta moral. Foi ocultada e mantida em silêncio para evitar escândalos. Até 1984, havia uma crença generalizada de que os distúrbios sexuais entre os clérigos poderiam ser curados com tratamento psicológico, terapia e apoio espiritual.
A partir de 1988, a questão dos abusos sexuais de crianças e adolescentes começa a ser discutida na Conferência dos Bispos da Austrália. Surgiram diversas iniciativas; nós recolhemos apenas algumas. Em 1990, foi elaborado um “Protocolo de Prevenção”. Foi um bom esforço, embora concentrado demais na defesa da Igreja e de seu clero, em detrimento das vítimas. Em 1992, foi lançada uma carta pastoral sobre o tema. Um ponto de ruptura com as velhas práticas foi marcado pela iniciativa Towards Healing de 1996. Ali se estabeleceu que qualquer comportamento sexual com um menor é imoral e um crime. A Igreja comprometeu-se a uma maior verdade e transparência, a buscar reparação para as vítimas, assistência para outros atingidos, resposta efetiva para os acusados e culpados e melhoria nas medidas de prevenção. Por sua vez, cada diocese ou congregação devia ter um “Professional Standards Resource Group” que abordasse a questão em sua totalidade.
Em 2000, membros da Conferência dos Bispos Australianos e membros da Santa Sé reuniram-se em Roma para dirimir questões em conflito. Os australianos perceberam que a Santa Sé estava 20 anos atrasada em questões de abusos sexuais de menores. Um problema espinhoso a ser resolvido é o das prescrições e a relação entre o direito civil e o direito canônico. E então 570 bispos presentes em Roma pedem que o direito civil seja assumido em casos de abusos de menores. Em 2001, a Congregação para a Doutrina da Fé, por meio do documento Sacramentorum Sanctitatis Tutela, reservou-se o direito de revisar e sancionar todos os casos.
A evidência corrobora que os abusos sexuais de menores são um problema que se alastrou amplamente na Igreja Católica. Incidem elementos individuais e sociais, teológicos, da estrutura hierárquica desta instituição, a formação do clero e a cultura clerical. Na sequência, desenvolverei alguns desses fatores.
Entre os abusadores de menores costumam-se distinguir aqueles de fixação persistente, os abusadores oportunistas e os abusadores atípicos. Os fatores individuais de risco que podem predispor ao abuso são: confusão na orientação sexual, interesses pueris, ausência de relações homólogas, experiências sexuais extremas, experiência de abusos, personalidade passiva-dependente e imaturidade psicossexual.
O clericalismo tem sido fortemente apontado como um fator que contribui para os abusos sexuais de menores. É a idealização do sacerdócio e da instituição da Igreja Católica. É caracterizado por uma liderança autoritária, uma visão rígida e hierárquica do mundo e a sacralidade do estado sacerdotal com sentimentos de superioridade. Essa sacralidade dos sacerdotes, que assumem o papel de Deus, tornou-os objetos de uma confiança e autoridade excessivas, que alguns aproveitaram para abusar de menores. No uso do poder e dos privilégios, desatende-se o serviço ao povo de Deus.
A isso se somou uma cultura clerical que procurou evitar os escândalos e cuidar da reputação da Igreja através do silêncio e do acobertamento, simpatizando mais com os abusadores do que com as vítimas. Durante muito tempo, a pedofilia foi entendida como uma falta moral e não um crime.
No nível da estrutura organizacional, a Igreja se assemelha a uma monarquia absoluta. O poder está concentrado no papa e depois nos bispos ou superiores religiosos, que governam sua diocese ou congregação com autonomia quase total e sem os limites e contrapesos das organizações civis. Isso ocorre com uma presença esmagadora de clérigos varões e reduzida presença de leigos e mulheres nos âmbitos de decisão e poder.
As evidências mostram uma falta de liderança tanto em bispos quanto em superiores religiosos, e falta de preparação e capacitação em questões de liderança e tomada de decisões. Por sua vez, o nível de accountability ou de prestação de contas de maneira responsável sobre suas decisões e gestão é muito pequeno. Todos os itens acima mencionados tornaram possível o sigilo, a falta de transparência e os erros reiterados.
No âmbito do Direito, a Igreja Católica é regida pelo Código de Direito Canônico de 1983, que considera os abusos sexuais de menores como uma falta moral e não um crime. Prevalece um sigilo que protege o abusador e procura evitar o escândalo (presente em 24 cânones). O tempo de prescrição do crime tem sido um fator que dificultou a justiça. Isso mudou nos últimos anos. É claro que o padrão do Código de Direito da Igreja é inferior ao do âmbito do Direito civil de muitos países. Em 2016, o cardeal Sean O'Malley afirmou, citando o Papa Francisco, que os crimes contra menores não podem ser mantidos em segredo e que existe a obrigação moral de denunciá-los à autoridade civil.
Muito se discutiu sobre a incidência que o celibato poderia ter sobre os abusos sexuais de menores. É bom esclarecer que a maioria dos casos de abusos sexuais de crianças ocorre dentro da família. Não há relação causal direta entre o celibato e a propensão aos abusos de menores. No entanto, quando existem fatores pré-existentes de risco, aos quais se soma a exigência do celibato como um peso, o risco de abusos infantis pode aumentar. Ao estudar a crise dos abusos sexuais, conclui-se que houve uma má teologia do corpo e da sexualidade no ensinamento da Igreja Católica e na formação dos religiosos. Há imaturidade e repressão na vivência da sexualidade. Para muitos sacerdotes, o celibato imposto é um martírio silencioso e consideram que deveria ser opcional.
À luz das informações hoje disponíveis, é evidente que antes de 1970 os processos de seleção, formação inicial, acompanhamento e preparação para uma vida celibatária e de trabalho pastoral eram inadequados nas áreas da sexualidade, limites, intimidade e comunicação. Os candidatos entravam a partir dos 12 anos em um internato, onde o desenvolvimento emocional e psicossexual era pobre, insano e disfuncional. Os seminários estavam isolados e seguiram um modelo monástico, cuja formação era rígida, com ênfase no intelectual, na piedade e na obediência a regras.
Era comum que sacerdotes recém ordenados e irmãos fossem designados para paróquias ou colégios sem prévia preparação pastoral. Muitos experimentaram a solidão, o isolamento, vida comunitária ruim, sem intimidade, pouca amizade entre pares, estresse, imaturidade sexual e emocional, sobrecarga de trabalho, falta de supervisão e apoio. Quer seja individualmente ou somados, os fatores acima mencionados aumentam o risco de abusos sexuais de crianças e adolescentes.
A confissão de abusos sexuais de menores – tanto pelas vítimas como pelos abusadores – recorrendo ao sacramento da reconciliação, manteve esse crime no segredo da confissão e dificultou que saísse da esfera privada. Isso aumentou o risco dos abusos. Nós mencionamos que por muito tempo os abusos sexuais de menores foram concebidos como um pecado e não como um crime. Eram abordados através do sacramento da confissão, mais oração, sem serem denunciados à polícia. A confissão foi um ato que permitiu que os abusadores continuassem com seus abusos. Uma filha contou que seu pai era assíduo à confissão e um abusador permanente.
Deus e evitar os títulos honoríficos. Para o bom governo de uma diocese, faz um convite para a implementação frequente de sínodos diocesanos, como uma instância participativa de consulta, diálogo e escuta. Quanto à seleção de candidatos à vida sacerdotal e religiosa, a Comissão recomenda uma aproximação multidisciplinar, que inclua as seguintes dimensões: médica, psicológica, espiritual e social. Será preciso recorrer à aplicação de exames específicos realizados por profissionais qualificados, antes da aceitação de um candidato. Além disso, a uma ampla consulta antes da ordenação sacerdotal e à verificação de aptidão para o trabalho com crianças.
Como toda relação pastoral traz implícita um desequilíbrio de poder, insiste-se na importância de uma formação permanente que inclua cursos obrigatórios sobre ética do ministério, limites na sexualidade, cuidado de crianças, confidencialidade e exercício responsável do poder. Além disso, existe a necessidade de supervisão profissional das atividades relacionadas às atitudes de ocultação e propõe que os abusos sexuais de menores sejam reconhecidos como um crime imprescritível. Sugere que a Congregação para a Doutrina da Fé tenha tribunais locais para levar adiante esses processos judiciais in situ.
A Comissão recebeu fartas evidências de que o celibato exigido e assumido como um peso implica um elevado número de casos de isolamento emocional, solidão, depressão e doença mental. Recomenda que o celibato seja opcional. Se, durante o sacramento da reconciliação, um menor confessar ter sido abusado sexualmente ou se uma pessoa confessar abuso de menores, o sacerdote deve persuadi-lo a relatar esses fatos fora do âmbito do sigilo a pessoas que possam dar andamento adequado a este crime. Recomenda que a prática do sacramento da reconciliação com menores seja em espaços abertos e sob a observância de outros adultos.
Os abusos sexuais de menores vieram à tona com força em vários países, provocando irritação e escândalo. A Igreja Católica foi severamente golpeada, uma vez que alguns de seus ministros e seguidores estiveram envolvidos nesses crimes. A Comissão Australiana estudou profundamente este problema em seu país, incluindo a realidade estrutural e operacional da Igreja Católica. Foi um trabalho objetivo e de qualidade, pelo qual somos profundamente agradecidos. Ele revelou a dureza do crime e os enormes danos causados às vítimas e suas famílias. A Comissão nos impulsiona a buscar as justas medidas de reparação para as vítimas e a renovação e mudanças que a Igreja necessita, tanto em sua estrutura de governo como em seu modo de proceder, para ser a Igreja de Jesus que acolhe a todos, especialmente os mais fracos.
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“Uma teologia da sexualidade de má qualidade propiciou a crise dos abusos na Austrália” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU