18 Fevereiro 2017
"A convivência poderá fazer da geossociedade menos centrada sobre si mesma e mais aberta para cima e para frente, menos materialista e mais humanizada, um espaço social no qual seja menos difícil a convivência e a alegria de conviver", afirma Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor.
Eis o artigo.
A onda de ódio que grassa no mundo, claramente no Brasil, as discriminações contra afrodescendentes, nordestinos, indígenas, mulheres, LGBTs e membros do PT, sem falar dos refugiados e imigrantes rejeitados na Europa e pelas medidas autoritárias do presidente Donald Trump contra imigrantes muçulmanos, estão rasgando o tecido social da convivência humana a nível nacional e internacional.
A convivência é um dado essencial de nossa natureza enquanto humanos, pois nós não existimos, coexistimos, não vivemos, convivemos. Quando se dilaceram as relações de convivência, algo de inumano e violento acontece na sociedade e em geral em nossa civilização em franca decadência.
A cultura do capital hoje globalizada não oferece incentivos para cultivarmos o “nós” da convivência, mas enfatiza o “eu” do individualismo em todos os campos. A expressão maior deste individualismo coletivo é a palavra de Trump: ”em primeiro lugar (first) os USA”, que bem interpretada é “só (only) os USA.”
Precisamos resgatar a convivência de todos com todos que moramos numa mesma Casa Comum, pois temos uma origem e um destino comuns. Divididos e discriminados percorreremos um caminho que poderá ser trágico para nós e para a vida na Terra.
Notoriamente a palavra “convivência”como reconhecem pesquisadores estrangeiros (por exemplo um acadêmico alemão, T. Sundermeier, Konvivenz und Differenz,1995) tem seu nascedouro em duas fontes brasileiras: na pedagogia de Paulo Freire e nas Comunidades Eclesiais de Base.
Paulo Freire parte da convicção de que a divisão mestre/aluno não é originária. Originária é a comunidade aprendente, onde todos se relacionam com todos e todos aprendem uns dos outros, convivendo e trocando saberes. Nas CEBs é essencial o espírito comunitário e a convivência igualitária de todos os participantes. Mesmo o bispo e os padres sentam-se juntos na mesma roda e todos falam e decidem. Nem sempre o bispo tem a última palavra.
Que é a convivência? A própria palavra contém em si o seu significado: deriva de conviver que significa conduzir a vida junto com outros, participando dinamicamente da vida deles, de suas lutas, avanços e retrocessos. Nessa convivência se dá o aprendizado real como construção coletiva do saber, da visão do mundo, dos valores que orientam a vida e das utopias que mantêm aberto o futuro.
A convivência não anula as diferenças. Ao contrário, é a capacidade de acolhê-lhas, deixá-las ser diferentes e mesmo assim viver com elas e não apesar delas. A convivência só surge a partir da relativização das diferenças em favor dos pontos em comum.
Então surge a convergência necessária, base concreta para uma convivência pacífica, embora sempre haja níveis de tensão, por causa das legítimas diferenças.
Vejamos alguns passos rumo à convivência:
Em primeiro lugar, superar a estranheza pelo fato de alguém não ser de nosso mundo. Logo perguntamos: de onde vem? Que veio fazer? Não devemos criar constrangimentos, nem enquadrar o estranho, mas acolhê-lo cordialmente.
Em segundo lugar, evitar fazer-se logo uma imagem do outro e dar lugar a algum preconceito (se é negro, muçulmano, pobre). É difícil mas é incondicional para a convivência. Einstein bem dizia: “é mais fácil desintegrar um átomo do que tirar um preconceito da cabeça de alguém”. Mas podemos tirar.
Em terceiro lugar, procurar construir uma ponte com o diferente que se faz pelo diálogo e pela compreensão de sua situação.
Em quarto lugar, é fundamental conhecer a língua ou rudimentos dela. Se não for possível, prestar atenção aos símbolos pois revelam, geralmente, mais que as palavras. Eles falam do profundo dele e do nosso.
Por último, esforçar-se para fazer do estranho um companheiro (com quem se comparte o pão) de quem se procura conhecer sua história e seus sonhos. Ajudá-lo a sentir-se inserido e não excluído. O ideal é fazê-lo um aliado na caminhada do povo e daquela terra que o acolheu, pelo trabalho e convivência.
Acrescentamos ainda que não se deve restringir a convivência apenas à dimensão humana. Ela possui uma dimensão terrenal e cósmica. Trata-se de conviver com a natureza e seus ritmos e dar-se conta de que somos parte do universo e de suas energias que a cada momento nos atravessam.
A convivência poderá fazer da geossociedade menos centrada sobre si mesma e mais aberta para cima e para frente, menos materialista e mais humanizada, um espaço social no qual seja menos difícil a convivência e a alegria de conviver.
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A ameaça da convivência humana nos dias de hoje - Instituto Humanitas Unisinos - IHU