Operação Contenção realizada na capital fluminense matou de mais de cem pessoas na periferia e entra para história como a maior chacina carioca de todos os tempos, sem, no entanto, cumprir o objetivo que era capturar Doca, apontado como líder do Comando Vermelho
Na quarta-feira, 29-10-2025, o Brasil testemunhou nos telejornais e redes sociais o resultado de uma das fases da Operação Contenção: a maior chacina já realizada pelas forças de segurança do Estado do Rio de Janeiro. Até o fechamento dessa reportagem, o número oficial de mortos era 121, entre os quais quatro policiais, e a quantidade de presos de 113 pessoas.
A operação iniciada na madrugada da terça-feira, dia 28 de outubro, e se estendeu durante todo o dia, tinha como objetivo cumprir cem mandados de prisão – principalmente de Doca, que seria líder do Comando Vermelho, e impedir o avanço territorial da facção. A megaoperação, que mobilizou mais de 2,5 mil policiais, transformou os complexos da Penha e do Alemão, localizados na Zona Norte do município, em um cenário de guerra. Segundo a Polícia Civil, criminosos lançaram bombas com drones, houve barricadas e intensa troca de tiros. Posteriormente o caos se estendeu para outros pontos da cidade.
A estratégia da polícia foi encurralar os suspeitos entre a Serra da Misericórdia e a mata, região que divide os dois complexos e de onde foram recolhidos mais de 70 corpos de vítimas fatais da operação. Este trabalho macabro foi feito por moradores locais que estenderam os cadáveres por uma passarela de corpos, morte e lágrimas dos familiares.
Nos vídeos e fotos que circularam nos meios de comunicação e redes digitais, as marcas de execuções sumárias, com tiros pelas costas, mãos amarradas e facadas, sem indícios de resistência. A cena, para quem viveu os anos 1990, lembra o Massacre do Carandiru [1].
Em resposta ao recolhimento dos corpos, que foram abandonados pelos agentes do estado, o secretário de Polícia Civil, Felipe Curi, afirmou em entrevista coletiva que vai investigar por fraude processual quem participou da remoção dos corpos na área de mata no Complexo da Penha. Segundo Curi, “esses indivíduos estavam na mata, equipados com roupas camufladas, coletes e armamentos”. De qualquer forma, é oportuno lembrar que no Brasil não existe pena de morte e que a todas as pessoas cabe o direito ao processo penal devido.
No dia seguinte à operação, o governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PL-RJ) classificou a ação como um “sucesso”. Na avaliação socióloga Carolina Grillo, coordenadora do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF), ações como essa “evidenciam o descaso do poder público estadual no Rio de Janeiro, com o direito à vida da população pobre, moradora de favelas e periferias de maioria negra, que são as principais vítimas dessa política de extermínio que é adotada na cidade”.
“É lamentável que um governador, após uma operação com um fim tão trágico, uma mega chacina policial, com quase 120 pessoas mortas [conversamos na tarde do dia 29], inclusive policiais, que eram servidores públicos trabalhando a serviço do Estado, em uma ação em que se mostrou a completa falta de zelo com a preservação da vida”, assinalou.
A professora ainda pontua essas falas visam capturar capital eleitoral nas eleições de 2026. “O que eu observo é que o Cláudio Castro está apostando nos retornos eleitorais a partir desse massacre de ontem”, afirma. “Historicamente, a prática de chacinas tem servido para atrair atenção e votos dos setores mais conservadores, porque autoridades públicas têm se aproveitado do medo, da sensação de insegurança da população face ao crime, para oferecer ‘soluções fáceis’ para a criminalidade e propagar o ódio, adotando discursos que costumamos chamar de populismo penal”, complementa.
Para Carolina Grillo, as operações policiais, que ocorrem as centenas todos os anos no Rio de Janeiro, “não têm efetividade nenhuma e a própria polícia e o governo do Estado sabem muito bem disso”. Conforme indica, as operações “não impedem o Comando Vermelho de continuar controlando os territórios”. “Esse tipo de atuação – conclui – tem apenas um impacto muito nocivo para a população que reside nesses territórios”.
Olhando em retrospectiva, os números já superam o Massacre do Carandiru, em 1992. À época, em poucas horas, houve uma comoção e uma reação contundente da sociedade civil. No entanto, na entrevista a seguir, concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Carolina observa que, “atualmente, vemos a sociedade civil chancelando o abuso do uso da força e o abuso de poder por parte das autoridades”.
Carolina Grillo (Foto: Arquivo pessoal)
Carolina Christoph Grillo é professora do Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF) e coordenadora do GENI/UFF. Doutora em Ciências Humanas (Antropologia Cultural) pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/UFRJ), com estágio de doutorado sanduíche na Universidade de Lille I, França. Atualmente pesquisa "Conflitos e violências nos territórios populares: mercantilização, gestão de precariedades e desafios para o engajamento cívico".
IHU – A Operação Contenção realizada no Rio de Janeiro ontem contabilizou o maior número de mortes de uma operação policial no território carioca, com, ao menos, 121 mortos (entre os quais quatro policiais) e 113 presos. O caso vem sendo tratado na imprensa internacional como “o dia mais triste do Rio de Janeiro”. Qual é a proporção do que ocorreu ontem para a população fluminense?
Carolina Grillo – Essa foi a maior chacina da história do Rio de Janeiro, os números ainda não estão claros. A polícia, até o momento, confirmou 119 mortos. Fala-se também em 128 mortos. Mas, é a maior operação policial e mais letal da história do Rio de Janeiro. Trata-se da chacina mais letal da história do Rio de Janeiro, superando a quantidade de mortos do Carandiru.
'Encontrei meu filho com os pulsos amarrados por uma corda', diz mãe de morto na Vila Cruzeiro (RJ)https://t.co/la7TlTFni3
— Folha de S.Paulo (@folha) October 29, 2025
IHU – Do ponto de vista midiático a operação está tendo uma enorme repercussão, mas do ponto de vista prático, qual a efetividade deste tipo de ação do Estado?
Carolina Grillo – Não tem efetividade nenhuma e a própria polícia e o governo do Estado sabem muito bem disso. Esse tipo de ação não tem nenhum efeito de desmantelamento do crime organizado, não impede o Comando Vermelho de continuar controlando os territórios onde a operação se deu e não impede o Comando Vermelho de continuar expandindo seus negócios.
Esse tipo de atuação tem apenas um impacto muito nocivo para a população que reside nesses territórios, sem nenhum ganho no sentido de combate ao crime.
IHU – Vimos dezenas de corpos enfileirados em praça pública. Segundo as primeiras informações, os mortos apresentam sinais de execução sumária. Na sequência, o governador Cláudio Castro declarou que essa operação “foi um sucesso”. O que as cenas que assistimos e as declarações do governador evidenciam?
Carolina Grillo – Evidenciam o descaso do poder público estadual no Rio de Janeiro, com o direito à vida da população pobre, moradora de favelas e periferias de maioria negra, que são as principais vítimas dessa política de extermínio que é adotada na cidade. Então, é lamentável que um governador, após uma operação com um fim tão trágico, uma mega chacina policial, com quase 120 pessoas mortas, inclusive policiais, que eram servidores públicos trabalhando a serviço do Estado, em uma ação em que se mostrou a completa falta de zelo com a preservação da vida.
THE GUARDIAN: 'Isso foi um massacre, não uma operação': a favela se recupera da operação policial mais sangrenta da história do Rio.
— Renato Souza (@reporterenato) October 29, 2025
É lamentável que o governador chame isso de um sucesso, por que é um sucesso em quê? Pessoas foram presas? Pessoas foram mortas? O encarceramento só aumentou no Brasil nos últimos anos. Assim como o número de mortos, pois dezenas de milhares de pessoas foram mortas pela polícia nos últimos anos no Rio de Janeiro durante as centenas de operações que ocorrem anualmente. E nada disso alcançou êxito para conter a expansão do controle territorial armado. Nada disso teve êxito em controlar a criminalidade no Rio de Janeiro. Ou seja, essas ações letais já se provaram ineficientes. E, pessoas mortas ou presas nunca podem ser chamadas de “sucesso”.
O gráfico acima é do Observatório Nacional dos Direitos Humanos do governo federal e traz dados de 2023. Estima-se que em 2024 o número da população carcerária tenha superado905 mil pessoas.
IHU – A operação de ontem resultou na apreensão de 93 fuzis. Entretanto, a maior apreensão de fuzis da história do Rio de Janeiro continua sendo os 117 fuzis apreendidos na operação que prendeu Ronnie Lessa, condenado pela morte da Marielle Franco e ex-vizinho de Bolsonaro. Neste caso, nenhuma pessoa foi morta na operação. O que este comparativo revela sobre as operações policiais no Rio de Janeiro?
Carolina Grillo – A apreensão de fuzis em posse dos seus consumidores finais, que são essas facções, não é o melhor método de apreensão de fuzis. Muito mais interessante, por exemplo, é a atuação recente da Polícia Federal, que conseguiu desarticular uma fábrica montadora de fuzis onde se fazia a montagem de peças importadas e se produzia cerca de 3 mil fuzis por ano, vendidos para o Comando Vermelho. Esse tipo de operação, que não precisou nenhum tiro sendo disparado, tem um efeito de desarmamento do crime organizado muito mais efetivo. E a apreensão de fuzis, em uma casa atribuída ao Ronnie Lessa, mostra mais uma vez o que várias outras investigações já mostraram, que é a participação de policiais e ex-policiais no mercado de armas, que é um mercado que precisa ser devidamente investigado.
A apreensão de fuzis em favelas apenas estimula e aquece o mercado ilegal de armas, porque esses fuzis serão recomprados e o mercado de armas será reaquecido, pois este é um mercado do qual participam agentes públicos.
IHU – O que essa operação significa e revela sobre o modo como o Brasil tem lidado com as facções?
Carolina Grillo – A Operação Contenção revela muito sobre como o Rio de Janeiro tem lidado com as facções, mas isso vale para outros estados também. Há sempre uma aposta em uma atuação ostensiva, centrada no confronto armado e pouquíssimo baseada em inteligência. [Essas operações são] centradas em práticas de encarceramento em massa e extermínio e não visam efetivamente desarticular o crime organizado.
Portanto, essa operação mostra mais uma vez essa aposta na força bruta em detrimento do uso da inteligência. Atualmente só a Polícia Federal vem atuando de forma mais estratégica, com vistas a desmantelar o crime organizado no Brasil.
Flávio Dino fez duas referências nesta quarta à operação policial mais letal da história do RJ. Ele afirmou que a posição institucional do STF "não é de impedir a ação da polícia, mas ao mesmo tempo não é de legitimar um vale tudo com corpos estendidos jogados no meio da mata". pic.twitter.com/5prAux0xkg
— JOTA (@JotaInfo) October 29, 2025
IHU – Qual a efetividade, no combate ao crime organizado, de uma possível intervenção das Forças Armadas na segurança do Rio de Janeiro, através do dispositivo de exceção da Garantia da Lei e da Ordem – GLO?
Carolina Grillo – Diversas já foram as GLOs decretadas no Rio de Janeiro, já houve, inclusive, uma intervenção federal. [O uso da GLO] historicamente se provou ineficiente e desastroso e as experiências dos moradores de áreas onde as GLOs estavam em vigor foram péssimas.
Recomendo, inclusive, que assistam o filme Cheiro de Diesel [2], sobre a GLO na Maré, no Rio de Janeiro, e as vítimas do Exército durante a vigência dessa GLO.
O decreto de GLO implica em tratar territórios de favelas e periféricos como territórios hostis. A militarização da gestão desses territórios implica na suposição de que estamos nos referindo a um conflito armado e não a uma violência armada. Ou seja, o emprego de Forças Armadas, que não recebem o treinamento adequado para oferecer segurança pública em espaços urbanos densamente populosos e sim para atuar em guerra [é equivocado].
E quando tratamos a violência armada cotidiana como guerra, há implicações para toda a população que reside nesses territórios, que são taxados como áreas de risco, áreas sensíveis e territórios hostis, onde a polícia não trata os moradores como cidadãos.
E, no caso de uma GLO, as Forças Armadas não detêm o treinamento adequado para atuar em segurança pública. Portanto, empregar as Forças Armadas para lidar com situações de violência urbana é uma aposta muito problemática que traz graves implicações para o bem-estar da população que reside nos territórios que atualmente se encontram sob domínio de grupos armados.
IHU – Na última entrevista que concedeu ao IHU, a senhora falou sobre as aproximações e diferenças entre crime organizado brasileiro e o colombiano. De lá para cá, operações policiais, como a Carbono Oculto, mostraram as teias das facções em “atividades legalizadas”. Diante às mudanças nos cenários, existe o risco de o Brasil se tornar um narcoestado?
Carolina Grillo – Não. Na verdade, a capacidade de penetração das organizações no Estado é muito maior aqui no Estado do Rio de Janeiro, no que se refere às milícias, muito mais do que nas organizações do tráfico de drogas que se engajam em relações de suborno e extorsão com o Estado. [As facções] têm suas atividades parasitadas por agentes públicos corruptos, mas não necessariamente mantém relações intrínsecas com o Estado. Então, não há uma penetração dos grupos ligados ao tráfico de drogas no poder político de forma substantiva no Brasil.
IHU – De um lado já temos o discurso de políticos de extrema-direita saudando a operação. De outro, estão veiculadas nas redes e em parte da imprensa algumas fotos de Cláudio Castro com o ex-deputado TH Joias, acusado de fazer a intermediação de compra de armas a facções criminosas. Que consequências políticas podem ter a circulação dessas imagens? Deve ocorrer o uso político desta operação para a eleições?
Carolina Grillo – O que observo é que o Cláudio Castro está apostando nos retornos eleitorais a partir desse massacre de ontem [28-10-2025]. Historicamente, a prática de chacinas tem servido para atrair atenção e votos dos setores mais conservadores, porque autoridades públicas têm se aproveitado do medo, da sensação de insegurança da população face ao crime, para oferecer “soluções fáceis” para a criminalidade e propagar o ódio, adotando discursos que costumamos chamar de populismo penal.
Práticas de massacres têm se mostrado bastante úteis do ponto de vista eleitoral, porque infelizmente boa parte da população brasileira chancela essas políticas de extermínio.
Então, apesar de fotos que mostrem a ligação do Cláudio Castro com pessoas acusadas de participação no crime organizado, eu acredito que ele propositalmente esteja se aproveitando politicamente desse massacre.
IHU – Hoje já se fala em acelerar a análise da Proposta de Emenda à Constituição - PEC da Segurança Pública no Congresso Nacional. De forma geral, como avalia a proposta?
Carolina Grillo – A PEC não oferece nenhuma solução para a Segurança Pública no Brasil, ela constitucionaliza uma série de práticas que já estavam em vigor e tem algumas propostas interessantes de integração de dados, que podem ter efeitos benéficos na produção de algum marco civilizatório na gestão da Segurança Pública no país. [A proposta] regulariza algumas questões com relação aos repassas de recursos, mas não oferece nenhuma solução substantiva.
Não é do ponto de vista Legislativo que vamos encontrar uma solução para a Segurança Pública no Brasil, e sim do ponto de vista do Executivo, com a adoção de políticas públicas que, de fato, ofereçam alternativas, oportunidades para os jovens.
Ao mesmo tempo, [precisa oferecer] uma atuação policial no sentido de desmantelar o crime organizado, desmantelar essas redes de forma inteligente. Ou seja, não é exatamente com mudanças legislativas, embora elas sejam, sim, importantes, mas elas não oferecem uma solução para o problema da criminalidade.
No @JornalOGlobo: Com kombi e 4x4, resgate a corpos na mata após operação já dura 12 horas: ‘Tinha gente amarrada com tiro na testa’ https://t.co/eNgz320JTh
— Bernardo Mello Franco (@BernardoMF) October 29, 2025
IHU – Diante de tal cenário, de que forma o Estado e a sociedade devem lidar com um problema tão complexo e desafiador como o da Segurança Pública?
Carolina Grillo – O Estado tem a prerrogativa, em tese detém o monopólio da violência legítima, e deveria oferecer segurança à população, que é o que não temos observado. Mas é preciso que a sua prerrogativa de uso da força seja usada dentro dos marcos legais, isto é, que haja algum controle democrático sobre o uso da força pelo Estado e a sociedade civil tem que participar desse controle democrático.
Atualmente vemos a sociedade civil chancelando o abuso do uso da força e o abuso de poder por parte das autoridades. É um ponto central das democracias que haja um controle democrático sobre o uso da força estatal e que, no caso das polícias aqui no Brasil, que esse controle seja externo, que conte com a participação da sociedade civil.
[1] O Massacre do Carandiru foi uma chacina que ocorreu no Brasil, em 2 de outubro de 1992, quando uma intervenção da Polícia Militar do Estado de São Paulo, para conter uma rebelião na Casa de Detenção de São Paulo (Carandiru), causou a morte de 111 detentos.
[2] Cheiro de Diesel é um documentário de 2025 com direção de Natasha Neri e Gizele Martins. O longa foi exibido em outubro no Festival do Rio e em breve chega aos cinemas. Confira a sinopse elaborada por Adoro Cinema: o filme documenta a traumática realidade vivida por moradores das favelas do Rio de Janeiro após viverem episódios de militarização, principalmente durante os megaeventos esportivos, ocasionalmente usados como forma de entretenimento e não repressão. Se tornando vítimas de um Estado cruel, o longa busca aumentar a voz daqueles que foram silenciados e, de alguma forma, lutar pela justiça daqueles que durante tanto tempo tiveram os seus direitos humanos violados.