"Não há como garantir domínio territorial armado com alguma estabilidade de mando sem a colaboração direta dos poderes estatais que conferem seu lastro ampliando ou assegurando o domínio sempre provisório do crime. Domínio armado do Comando Vermelho não é o mesmo que produzir e garantir soberania. Também não há e nunca houve Estado ausente. O que há no Rio são governos que negociam sua forma de presença nos espaços populares, como também se vê em outros estados e em outros países".
O artigo é de Jacqueline Muniz, professora do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (DSP/UFF), que é cientista social (UFF), mestra em Antropologia Social (Museu Nacional/UFRJ) e doutora em Ciência Política (IUPERJ/UCAM).
Nota do IHU: Após a publicação do texto, moradores resgataram mais 65 corpos em uma área de mata, além das 64 mortes confirmadas. Totalizando 129 mortes. Segundo a população, há marcas de tiros na nuca e facadas.
Passei o dia inteiro concedendo entrevistas para explicar a irresponsabilidade dos governantes e o desastre operacional de uma operação policial que escancarou o improviso e o populismo na gestão da segurança pública. Estas são 16 apreciações provisórias à espera de mais dados. E espero seguir subsidiando a discussão sobre maior operação solitária do Rio e com a maior letalidade já produzida até agora.
A operação deixou sem policiamento cerca de cinco milhões de moradores, imobilizando 2.500 policiais para pronto emprego, o que implica em alterar a escala de cerca de 10 mil policiais e mantê-los em prontidão. Um volume de efetivo superior a muitas polícias estaduais e sem capacidade de manter a sua mobilização e o seu empenho além de um curto período de tempo. Esse contingente concentrado num único perímetro da cidade imobilizou efetivos policiais para além das pernas estaduais. E, assim, abriu brechas para a ocorrência de crimes violentos oportunistas e ataques pontuais e previsíveis de grupos armados em represália. E, ainda, o mais óbvio: encurtou o tempo de sustentação da própria operação, maximizando os riscos de sua execução. O resultado foi o aumento da vulnerabilidade coletiva, a ampliação do medo e o comprometimento dos serviços de segurança pública na região metropolitana.
A operação foi conduzida, em sua maioria, com agentes generalistas que não trabalham em unidades especializadas e nem têm qualificação em operações policiais de alto risco. Em boa medida, são policiais convencionais que tocam a rotina burocrática, investigativa e ostensiva, e não apresentam padrão elevado de tiro defensivo por modalidade de tiro policial e por tipo de armamento. Eles, por razões profissionais, atuam em guarnições pequenas ou em tropas e não como corpos táticos. E, desta forma, eles não dispõem de disciplina tática e nem especialização para cenários de alto risco. Este improviso feito pela convocação de policiais sem expertise e preparo técnico adequado para operações policiais especiais amplificou as chances de letalidade e vitimização, entre policiais e civis. O que multiplicou a insegurança profissional e institucional, a oportunidade de balas achadas e/ou perdidas e de agentes expostos indevidamente. Isto revela a manipulação de policiais como mercadorias políticas e o barateamento de suas vidas tal qual a vida dos moradores das periferias de onde saíram a maioria dos agentes fluminenses.
🚨SANGUINÁRIO! Essa foto foi tirada às 3h da manhã no Complexo do Alemão! Já são mais de 70 corpos, e a contagem só aumenta. O que vemos não é uma política de segurança pública é um projeto de barbárie, que desumaniza e extermina moradores de favelas e periferias. É vergonhoso… pic.twitter.com/6pprtvpg0r
— Renata Souza (@renatasouzario) October 29, 2025
A ação inviabilizou a circulação de pessoas, bens, mercadorias e serviços. O bloqueio territorial descoordenado imposto em uma área com cerca de 200 mil habitantes e aproximadamente 500 mil transeuntes em 5,2 km² gerou colapso urbano, atingindo diretamente o funcionamento cotidiano da cidade, impondo-lhe prejuízos econômicos, políticos e sociais. Isto produziu mais insegurança pública. O espetáculo bélico agravou o temor coletivo, alimentou o pânico moral e disseminou a percepção generalizada de insegurança. Em vez de esfriar a chapa e garantir a rotina na cidade, a previsibilidade e a regularidade das ações policiais, o governo produziu medo e desorientação social. E, ainda, comprometeu a produção e a distribuição de riquezas, impondo prejuízos existenciais e materiais à população da região metropolitana.
A mobilização desmedida e insustentável do efetivo de 2.500 agentes estaduais comprometeu a capacidade ostensiva e de pronta resposta das emergências 190 e 192, prejudicando o atendimento a ocorrências reais em outras áreas da cidade, como assaltos, agressões, acidentes de trânsito, deixando milhares de moradores à deriva, entregues à falta de policiamento e de presteza de socorro frente às suas demandas emergenciais.
Ao levar à morte 64 pessoas, suspeitas ou não, a megaoperação terminou por sabotar o trabalho de inteligência e investigação das próprias polícias. Afinal, os mortos, se forem de fato “criminosos”, seriam justamente aqueles que poderiam revelar as parcerias entre Estado e crime, a troca de favores com as clientelas de baixo, ao lado e de cima, destruindo as possibilidades de elucidação das redes criminosas e de quem são os patrões, sócios e funcionários saídos do Estado e da política e que, por sua vez, conformam esta economia política criminosa.
Moradores do Complexo da Penha, na Zona Norte do Rio de Janeiro, levaram pelo menos 40 corpos para a Praça São Lucas, na Estrada José Rucas, uma das principais da região, ao longo da madrugada desta quarta-feira (29), dia seguinte à operação mais letal da história do RJ. O… pic.twitter.com/2Zfu6Kwv9U
— GloboNews (@GloboNews) October 29, 2025
O uso politiqueiro, banalizado e desordenado das operações policiais — um recurso caro e nobre que produz repressão qualificada e com foco — gerou o próprio esgotamento da capacidade repressiva das polícias militar e civil, que passam a ser incapazes, a curto e médio prazos, de sustentar resultados da repressão que elas mesmas produziram.
Cabe lembrar que polícia é uma força diuturna e de pronto emprego e que, por isso, não tem estoque de repressão, sendo continuadamente empregada em cada ação policial efetiva. Ou seja, não existe estoque de repressão policial. Assim, o seu gasto desmedido, o seu abuso ou mau uso implica em esgotamento da própria capacidade de policiar. Este é um dos graves efeitos de operações feitas para espetáculo eleitoreiro.
Cabe também esclarecer que nenhuma operação, em nenhum lugar, é capaz de produzir controle de território e população por tempo indeterminado, pela natureza escassa do recurso repressivo policial. Assim, tal como explica a doutrina de operações policiais especiais, os efeitos das operações são pontuais e provisórios, limitados no tempo e no espaço e com alto custo operacional. Por isso, requerem planejamento e gestão altamente qualificados para que seus resultados sejam satisfatórios e seus ultrapassem o imediato da atuação.
Não se deve matar as galinhas dos ovos de ouro da investigação e da inteligência. Paradoxalmente, ao matar 64 supostos bandidos, o Estado prestou um serviço ao crime organizado, eliminando possíveis integrantes de sua base criminal-comercial. Trata-se de uma mão de obra barata, precarizada e facilmente substituível, mas que custa para ser mantida de boca fechada dentro e fora das prisões. Os núcleos dirigentes do CV permaneceram intocados e protegidos com a troca de tiros da polícia com os soldados do tráfico. Estes, por sua vez, não podem recuar ou se renderem até que os gestores criminais tenham saído do território com o apoio de quem tem tiro certo, matrícula e passabilidade em qualquer lugar: agentes estatais parceiros do crime e milicianos.
Correto! https://t.co/l4MG71biCV
— Tarso Genro (@tarsogenro) October 29, 2025
A operação pouco afetou a capacidade coercitiva do CV, tal como tem ocorrido nos últimos 40 anos no Rio de Janeiro. Afinal, a capacidade coercitiva do CV não depende do uso de fuzis no controle de perímetros geograficamente irregulares, sem campo de visão claro com ao menos 180 graus de rotação. Fuzis são muito pesados, têm baixa mobilidade e pouca vantagem em terrenos acidentados. Para o crime, é mais vantajoso, ao empregar mão de obra com baixa qualificação, o uso de armas automáticas com menor necessidade de especialização, mais leves, que qualquer um possa usar sem muito treinamento, que permitam atirar enquanto correm, pulam ou se movimentam, e com facilidade de recarregar também em deslocamento. Fuzis requerem mais habilidade, qualidade decisória e posição tática para bom rendimento. Não dá para aprender usar fuzil só com tutorial da internet. Na correria da trocação de tiros, são os primeiros a serem abandonados ao longo do caminho, colaborando com o saldo operacional, atrasando a polícia e dando mais agilidade nos deslocamentos criminosos.
Sob ingerência eleitoreira, o planejamento da operação conjunta parece ter ignorado os protocolos de operações policiais das próprias PCERJ e PMERJ, elaborados em 2018, e que determinam parâmetros técnicos de planejamento, comando e controle e avaliação de desempenho operacional por grupo tático. Se as polícias tivessem ouvido apenas seus protocolos, os resultados não seriam a morte de 64 indivíduos, a multiplicação da insegurança pública e a paralisia da vida no Rio de Janeiro. Cabe enfatizar que existe doutrina de operações policiais internacional e das polícias estaduais, bem como critérios técnico-científicos de aferição de desempenho.
Sem uma sala de operações para alimentar os meios de comunicação e informar a população sobre o que se passava no decorrer da operação e das mudanças na ordem urbana, imperaram os boatos, os rumores e a desinformação — as verdadeiras fontes da insegurança pública. Isso favoreceu o desespero e o caos, paralisando os serviços essenciais na cidade e deixando a população desorientada, perdida e vulnerável, entregue ao risco do tiroteio e de outras violências.
Faltou cadeia de comando e controle com coordenação. Aqui, mais uma vez, coube ao Estado criar a insegurança pública e multiplicá-la ao seu extremo. Nenhuma operação policial pode parar uma cidade. Isto é expressão de abuso e mau uso do poder de polícia por quem governa. Tratou-se de reproduzir a POLÍTICA DOS 3 S: primeiro dá SUSTO na população com polícia de espetáculo e de ostentação, depois demonstra SURTO de autoridade com bravatas, cara feia e peito de pombo e, por fim, promove SOLUÇOS operacionais que não tem sustentação no médio e longo prazos mas que possuem elevado efeito publicitário.
Cláudio Castro afirmava não existir ligação do crime organizado com a política. Aí o Globo publicou uma sessão de fotos do governador do Rio ao lado do vereador que era o maior fornecedor de armas do Comando Vermelho. Se uma imagem vale mais que mil palavras, imagina 4 imagens. pic.twitter.com/9vybZK6AXc
— GugaNoblat (@GugaNoblat) October 28, 2025
O governante que cobra integração sequer fez o seu dever de casa: não integrou, nem articulou as próprias agências do Estado, nem buscou coordenar suas funções durante a operação. Em vez de agir de forma sistêmica e planejada, cada órgão foi deixado à deriva, entregue ao seu corporativismo, e o resultado foi o colapso do funcionamento público e o agravamento do temor coletivo.
1. Ministério Público (MP)
O MP deveria ter sido integrado desde a fase de planejamento, garantindo foco, legalidade e repressão qualificada. Cabe ao MP acompanhar a execução das operações, controlar o uso da força, definir prioridades investigativas e resguardar os direitos fundamentais, evitando a banalização da morte como política pública.
2. Defensoria Pública
A Defensoria deveria ter atuado junto com o MP, mantendo plantões itinerantes e canais de atendimento emergencial para a população atingida. Seu papel seria proteger moradores em situação de risco, orientar famílias de vítimas e garantir o acesso à Justiça nos casos de violações decorrentes da operação.
3. Corpo de Bombeiros Militar do Estado
O Corpo de Bombeiros Estadual deveria estar mobilizado para assegurar o pronto-socorro e atuar em resgates e emergências médicas durante a operação. Sem essa presença, vidas se perdem por omissão, e o socorro chega tarde — quando chega.
4. Guarda Municipal
A maior guarda municipal do país deveria ter sido acionada para ordenar o trânsito, desviar linhas de ônibus, orientar fluxos de pedestres e impedir a paralisação total da cidade. Em vez disso, a cidade foi abandonada ao caos, sem controle de circulação nem apoio logístico.
Os fiscais e agentes de trânsito deveriam ter sido integrados ao esquema operacional, atuando em conjunto com a guarda para liberar vias, sinalizar bloqueios e evitar o colapso urbano. Sua ausência reforçou o imobilismo logístico e o sentimento de abandono coletivo. O resultado foi uma operação “de juntos e misturados”, sem coordenação e sem cadeia de comando efetiva — um retrato fiel do bloco do “eu sozinho” governamental, em que cada órgão foi desmobilizado ou ignorado. O desastre estava anunciado desde o modo como foi executado: com desgoverno, sem integração e sem responsabilidade pública partilhada.
Não se pede apoio federal com blindados como quem pede emprestado uma xícara de café. Não é possível colocar as Forças Armadas na rua para fazer “uber” na segurança.
Se é necessário o apoio das FFAA, então é preciso solicitar e partilhar o planejamento, o comando e o controle, para também dividir responsabilidades nos acertos e erros.
Operação integrada não é um churrasco improvisado de final de semana, em que cada um leva o que tem, esquece de levar a carne e de gelar a cerveja. Não é o junto e misturado da roda improvisada de samba, em que se perde o ritmo e se desafina com gargalhadas.
Há que se ter um plano conjunto, com início, meio e fim, para não virar o que foi o final dramático da operação do Alemão em 2010, em que as FFAA entraram e ficaram meses exatamente porque não se tinha efetivo de polícia para manter a retomada de território.
O espetáculo da guerra sem exército desmoralizou o governo em mais um enxuga gelo contra o CV, ao passo o prejuízo imposto ao crime será reposto em uma semana de faturamento regional e nacional. Por ingenuidade, ignorância, má assessoria política ou oportunismo, desenhou-se uma operação “instagramável” para catapultar o governante, mostrando que ele teria mando de fato e de direito, que é capaz de agir sozinho, sem apoio de ninguém, reproduzindo o bloco do “eu sozinho” heroico governamental.
Como tal operação não tinha como se sustentar desde o início, por razões logísticas básicas, o tempo foi passando e os 2.500 policiais foram sendo forçosamente desengajados, e a operação virou um presente de grego: não pode continuar porque não tem pernas; não pode sair porque os saldos operacionais produzidos não abatem a precificação das mortes e das perdas materiais e existenciais dos moradores da região metropolitana do Rio de Janeiro.
E, claro, mais uma vez, a ocultação da responsabilidade política do comandante em chefe das polícias implicava pôr a fatura salgada na conta do STF e do governo federal que também tem deixado a desejar quando o assunto é a política de segurança pública.
“O combate à criminalidade, seja ela comum, seja ela organizada, se faz com planejamento, com inteligência, coordenação das forças. Enfim, não posso julgar, porque não estou sentado na cadeira do governador”, diz Lewandowski após a operação mais letal da história do estado do… pic.twitter.com/7fEKMVhwBn
— GloboNews (@GloboNews) October 28, 2025
Como de praxe, um governante que vira animador de auditório, servindo de garoto-propaganda de operações, torna-se dependente de saldos operacionais “instagramáveis”, independentemente da legalidade com que foram produzidos. Ficam todos os governantes municipais, estaduais e federais dependentes do que as polícias podem produzir e entregar para seu permanente estado de campanha eleitoral. E, desta forma, são quase que obrigados a fecharem os olhos para os maus usos e abusos do poder de polícia. Quando o saldo operacional é bom todo governante se torna ‘pai” da operação policial e vira uma espécie de garoto-bombril com suas mil e uma utilidades político-partidárias das polícias. E num contexto de terceirização do comando da segurança pública para grupos corporativistas e correligionários, o governante abdica de assumir responsabilidade como comandante em chefe e atribui a culpa a outro alguém federal, estadual ou municipal conforme a conveniência, convivência e conivência.
O governante blefa quando diz que a ADPF das Favelas algemou a polícia impedindo operações, quando na verdade o que a ADPF fez foi exigir profissionalismo policial e o cumprimento da doutrina policial de uso da força e, por sua vez, da doutrina de operações policiais.
A ADPF 635 cobrou, pela primeira vez, que a polícia fosse Polícia com “P” maiúsculo.
Durante sua vigência, viu-se o crescimento das operações policiais no Rio, como demonstrado pelo Fogo Cruzado. Dizer que a ADPF fez prosperar as barricadas é, no mínimo, infantil. Até porque barricadas são demonstrações visuais da incapacidade do CV, Terceiro Comando Puro - TCP ou qualquer outro domínio armado de garantir soberania sobre território.
Servem para controlar fluxos de pessoas, dificultar invasões de grupos rivais e servem muito pouco para conter ou impedir polícias, que não são bandos, e sim organizações armadas com superioridade de meios e métodos. Se lá estão as barricadas, é porque o Estado assim quer, como parte do seu arrendamento dos espaços populares para o crime. Barricada serve para o CV ganhar alguma vantagem defensiva contra rivais de mesmo calibre. Barricadas viram brinquedo diante do poderio das burocracias armadas como as polícias e FFAA.
Nada mais enganoso do que afirmar que a falta de integração com o governo federal deriva da ausência de uma lei — como a PEC da Segurança ou o Pacote Anticrime.
Cabe esclarecer que, com os dispositivos normativo-legais que já dispomos, é possível fazer agora operações conjuntas, operações integradas e forças-tarefas.
Todas elas provisórias e limitadas no tempo e à sua missão, como devem ser, para garantir resultados superiores e transparentes.
Este tipo de atuação integrada não precisa esperar mudança legislativa, por melhor que ela seja. E seja mesmo necessária. Isso porque operação conjunta, integrada e força-tarefa resulta de decisões de natureza política e administrativa-procedimental, ao alcance de qualquer gestor em posição de mando.
A lógica brasileira de vender para o cidadão inseguro e desinformado que só mudando a lei se muda o mundo é um caldo liberal-autoritário que serve como desculpa para a produção do monopólio do nada fazer dos governantes e para a ocultação da ausência de políticas nacionais, estaduais e municipais. Vender a fantasia de que só com a mudança da lei algo pode ser feito é matar a política pública e ocultar leniências.
E mais: é dar serviço aos outros sem se comprometer com a execução da própria lei, insinuando que “já fez a sua parte” ao criar a lei, e que agora o problema seria com quem executa — como se as leis não pudessem criar problemas de execução, gastos e prestação de contas e, até mesmo serem, inaplicáveis como revela normas draconianas de endurecimento penal.
Além de uma covardia moral, colocar as fichas políticas na aprovação de uma lei é colocar o medo, a insegurança e a violência vividos hoje pela população no final de uma longa fila de espera. Como se medo e insegurança pudessem ser adiados até a aprovação da suposta lei milagrosa. Não dá para pedir ao crime organizado, aos criminosos do cotidiano, ao feminicida que suspendam suas atividades e só voltem a atuar quando tivermos uma lei que integre as polícias ou uma lei mais dura.
Há, por fim, neste ilusionismo da mudança da lei como salvação imediata o delírio de uma “big-data total” de todas as informações e uma inteligência central, do bem naturalmente, que de cima para baixo articularia todas as polícias, a cada demanda, a cada ação. Nada mais ingênuo, pois nem a ditadura conseguiu este admirável mundo do comando e do controle único e central. Tem-se aqui o fetiche liberal-autoritário à brasileira com um novo papel de bala vistoso mas com recheio podre. Veja que integração aqui corresponde a uma unificação, uniformização e monopólio de fontes em um país federativo, de larga escala, com distintas agências de controle, com diversidade de cenários e desafios de atuação. Este tipo de fantasia tecnocrática revela, na prática, o desconforto que temos com as negociações e a produção de consenso e acordos. Revela que o que se quer estabelecer uma autoridade forte, definir quem manda em quem e quem é o que manda em tudo de forma unitária e autocrática.
Criminosos usam armas antiblindados e drones com granadas para atacar a polícia no Rio. População, que saiu em dia que deveria ser normal, para estudar, trabalhar, visitar parentes, fica sitiada em meio a guerra. Imagens rodam o mundo. pic.twitter.com/fvYcnMezmP
— Renato Souza (@reporterenato) October 28, 2025
Nenhuma organização criminosa no Rio de Janeiro controla plenamente o território. O controle é sobre a população, por meio da ameaça do uso da violência.
E, para existir, essas organizações dependem da parceria com o Estado, que garante previsibilidade e estabilidade aos arrendamentos territoriais para o CV, por exemplo.
Não existe essa história de poder paralelo — cuja finalidade desta expressão foi a de ocultar as relações entre política e crime organizado. É o Estado que, funcionando como uma agência reguladora do crime — para o bem ou para o mal —, organiza ou desorganiza o crime desde dentro.
Não há como garantir domínio territorial armado com alguma estabilidade de mando sem a colaboração direta dos poderes estatais que conferem seu lastro ampliando ou assegurando o domínio sempre provisório do crime. Domínio armado do CV não é o mesmo que produzir e garantir soberania. Também não há e nunca houve Estado ausente. O que há no Rio são governos que negociam sua forma de presença nos espaços populares, como também se vê em outros estados e em outros países.
Bem, estes foram alguns pontos esclarecidos em minhas entrevistas e que, mais adiante, quando dispuser de mais dados sobre esta operação de 28/10/2025 no Alemão e na Penha, poderei explicitar os parâmetros técnico-científicos assentados em evidências empíricas que nos ajudem a quebrar os mantras que nos iludem e desmascarar as cloroquinas da segurança que nos envenenam com falsas explicações.