04 Outubro 2025
"A insegurança não é acidente nem desvio. É projeto deliberado de poder, sustentado pela arquitetura política do medo", escreve Jacqueline Muniz, professora do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (DSP/UFF), que é cientista social (UFF), mestra em Antropologia Social (Museu Nacional/UFRJ) e doutora em Ciência Política (IUPERJ/UCAM).
Eis o artigo.
Tristeza com o resultado da investigação sobre a morte de Herus Guimarães Mendes, no Morro do Santo Amaro. Ela ilustra com contundência como a engrenagem da segurança pública no Brasil tem operado pela dissolução das responsabilidades. A Delegacia de Homicídios da Capital concluiu o caso como “legítima defesa putativa” do policial do Bope, amparada em laudos e imagens de câmeras corporais, e remeteu o inquérito ao Ministério Público. Sorria, sua morte está sendo filmada e legalizada!
O desfecho, até o momento, não trouxe respostas, não apontou responsabilidades concretas — dissolveu a morte matada no ar, como se a vida negra e favelada perdida não fosse passível de reparação nem de justiça. O que se produz, assim, não é só o sentimento popular de impunidade, mas a confirmação de um modo de governar pelo medo e pela indeterminação: a morte virando um dado a mais, a vítima virando mais um caso, a violência virando mais um acidente inevitável. Pavimenta-se, desta forma, a avenida da perversão das polícias em governos autônomos, autocráticos, acima do Estado e da Sociedade!
Revela-se, aqui, o núcleo da narrativa da segurança pública: a insegurança como projeto autoritário de poder e as operações policiais como o seu método eleitoreiro. A morte de Herus, “mais um na estatística”, é traduzida como risco aceitável em nome de uma paz cuja seletividade a morte confirma. É narrada como incidente rotineiro administrável quando se governa com o crime supostamente contra o crime. Mortes violentas, respostas imediatas e performáticas de autoridade, dão votos quando o medo é convertido em regra, a exceção em rotina.
É no terreno da irresponsabilização programada, que se combina à captura dos afetos como a dor, a revolta, a indignação diante do temor politicamente agravado — onde prosperam as caricaturas da segurança. É em um cenário de insegurança fabricada em atenção aos cálculos políticos que emergem as caricaturas retóricas de políticos-avatares — à direita e à esquerda — que têm buscado colonizar a narrativa da segurança pública no Brasil. São clichês ambulantes que, com rumos ideológicos aparentemente distintos, acabam por legitimar violências estatais, promover a desqualificação de boas práticas, produzir a moralização dos direitos, incentivar a autonomização do poder de polícia, fomentar a securitização das políticas sociais universais, reforçar a tutelagem coercitiva da cidadania e, por tudo isso, administrar politicamente o crime. No varejo, convertem a segurança pública em proteção particular, desigual e clientelizada, operando a troca perversa entre os direitos civis suspensos e os direitos sociais distribuídos como favores.
A apresentação dessas caricaturas aqui, tomando seus exageros como relevo — ao gosto de Weber —, serve para explicitar os elementos comuns e específicos de suas narrativas. É pela ênfase nos excessos que se torna possível compreender como, de um lado, a segurança é transformada em promessa quimérica e, de outro, ela é convertida em promessa apocalíptica. Pelo holofote exagerado do real, explicita-se uma esquerda caricatural missionária refugiada na espera de um mundo melhor e praticante do absenteísmo diante da insegurança cotidiana. Explicita-se, também, com zooms, uma direita caricatural profética que conduz pelo imediato do medo, atuando como um showman da catástrofe que terceiriza para justiceiros com matrícula o serviço sujo da repressão que apregoa.
A promessa suspensa
Nas versões caricaturais, a segurança não se realiza como política plena. Permanece como programa em suspensão: anunciada, interrompida, executada pela metade ou deliberadamente sabotada para seguir como pauta e palanque permanentes. Desta forma, não se pode dizer que as palavras de ordem “dão certo” ou “dão errado”. O discurso sobrevive pela sua própria incompletude, como futuro virtual preso ao seu formulador, aposta que se autorrenova ao não se cumprir. Esse caráter inconcluso a converte em futuro normativo: um horizonte sempre por vir, ancorado em exemplarismos do presente — casos trágicos, estatísticas manipuláveis, imagens espetaculares — que ilustram e catequizam a promessa. Essa expectativa é atravessada por uma cruzada moralista, que outorga ao político-arauto uma aura de virtude e inquestionabilidade “porque executor” persistente. E aqui está o paradoxo central: não se pode avaliar o político caricatural pela sua execução. Ele não precisa ter feito nada de concreto. Basta que tenha seguido pregando bolhas virtuais e palanques afora. Um político impedido sempre de executar, suspenso de qualquer teste de aprovação popular, mantém-se como proclamador. A repetição não é medida pela obra realizada, mas pela enunciação insistida: o sermão reiterado converte-se em evidência, a palavra martelada em prova de verdade.
O missionário da esquerda caricatural: a espera utópica e o absenteísmo do aqui vivido
Na retórica da esquerda caricatural, a segurança surge como horizonte adiado, vinculada a projetos maiores de cidadania, igualdade, renda e democracia. É a virtualidade programada, remetida ao “ainda não”, a segurança da sua vida fica para depois. A figura que a enuncia é o político-missionário, um profeta do advento: convoca a sociedade a aguardar pelo fim das desigualdades como condição para a cessação das violências. Essa promessa instala uma esperança utópica: a quimera de um mundo sem conflito, onde a igualdade material dissolveria antagonismos. A violência é reduzida a déficit de recursos materiais, quando deriva sobretudo de relações de poder, das formas de seu exercício na resolução das paixões, interesses e apetites divergentes.
A segurança se projeta no porvir, mas não se cumpre — permanece em estado de latência, que administra o presente pela expectativa infinda. Tudo pela crença de que se está criando uma sociedade melhor e mais justa. Até lá, resta ao cidadão atravessar o cotidiano exposto, tentando não morrer de bala achada num tiroteio, de uma violência sexual ou num assalto de cada esquina. Essa espera messiânica — legitimada por discursos e cronogramas de redenção — pode produzir tutelas administrativas e controles que regulam destinos em nome de um futuro que, pelo medo aparelhado, projeta direitos já penhorados no presente.
A promessa de igualdade de acesso aos bens da cidadania passa a funcionar como justificativa para conduzir populações a uma transição democrática eterna que institui regimes diferenciados de tutela e adiamentos legitimados de acesso aos direitos. Estes, em nome do bem vindouro, tendem a criar um conformismo com a precariedade, a insegurança existencial e material vividos, conduzindo a uma mobilidade social reversa.
Instala-se o absenteísmo da esquerda caricatural: ao postergar a segurança para a “terra prometida”, abandona o cidadão ao desamparo imediato. Sua promessa de mundo melhor converte-se em desculpa para não lidar com a violência cotidiana, para suspender respostas concretas em nome do porvir.
O profeta do caos da direita caricatural: a ordem impossível e o animador de auditório
Na caricatura de direita, a segurança se ancora na promessa de restaurar uma ordem impossível — porque nunca existiu ou que só sobrevive como mito fundador de um pensamento mágico. O que se oferece não é a concretização de uma política de segurança, mas a encenação permanente da volta a um passado idealizado e nostálgico, a recuperação de um equilíbrio fantasmático de uma idade de ouro, um ideal que jamais se cumpriu. Trata-se de uma promessa irrealizável, sustentada por uma ordem idealizada que nunca se cumpre, mas que funciona como recurso político inesgotável: porque nunca será alcançada, nunca poderá ser cobrada; porque é mito, renova-se como ameaça, perseguição e cobrança permanente.
Aqui vigora o profeta do caos, pregador do colapso da moral e dos bons costumes, que dramatiza a derrocada iminente da sociedade para legitimar repressões continuadas. Sua política obedece ao tempo imediato: o agora do medo. Governa-se pelo medo manipulado que justifica a necessidade de dispositivos cotidianos de contenção da circulação. Tem-se um discurso que exige a subida de cercas e muralhas, a imposição de passaportes e vistos entre grupos sociais com suas razões desiguais de raça/cor, gênero, orientação sexual, de classe, de renda e afiliações religiosas.
A ação repressiva converte-se em um fim em si mesma, em uma pedagogia da sanção antecipada como punição pela desigualdade naturalizada. Perigos futuros conjecturados legitimam repressões preventivas. Os “exemplos de limpeza” socioespacial rendem performance política e produzem demonstração pública de poder. É a punição antecipada transformada em espetáculo, otimizada como encenação política.
O que se instala é uma sociedade defensiva em estado de alerta contra si mesma: o corpo político deve ser protegido de seus próprios “elementos perigosos”. A política de segurança converte-se, assim, em tecnologia de separação e exclusão afirmativas, operada em estado permanente de defesa contra alguns dos seus desterrados de pertencimento e reconhecimento. No palco com esta performance atua o animador de auditório irresponsável: o político da direita caricatural que inflama medos, converte bravatas em show permanente e incita os aparelhos repressivos à brutalidade prática, enquanto capitaliza os dividendos simbólicos da histeria e predação do “inimigo” dos bons costumes que promove.
O falso endurecimento da direita caricatural
À direita caricatural, soma-se o anúncio de leis draconianas e estapafúrdias, que servem apenas como encenação de austeridade anticrime. São dispositivos punitivos cenográficos, que não são aplicáveis nem passíveis de funcionar. Sua função é abrir-se a negociatas interpretativas no fio do bigode dos gabinetes, favorecendo esquemas escusos e espasmos legalistas de conveniência. A austeridade proclamada é, no fundo, mera liturgia punitiva, uma demonstração de virilidade repressiva que se dissolve em favores, exceções e acordos subterrâneos.
O abandono securitário da esquerda caricatural
À esquerda caricatural, por sua vez, há o abandono das questões de segurança — reduzidas pela direita bravateira a espasmos viris de “lei e ordem” abstratas. Em lugar de enfrentar a insegurança cotidiana, a agenda se desloca para áreas de emancipação cidadã:
saúde, educação, cultura, lazer. Mas esse movimento ocorre sob uma lógica elitista e salvacionista, que novamente tutela e securitiza as políticas universais. Os bens comuns acabam subordinados às razões da segurança — razões que são, por definição, restritivas de liberdades e garantias individuais e coletivas.
O paradoxo é claro: ao pretender emancipar com a subordinação das políticas sociais às razões seletivas e invasivas da segurança pública, a esquerda caricatural amplia indiretamente o poder de polícia sobre a vida do cidadão comum. Em vez de governar as burocracias armadas e o exercício de seu poder, acaba por alimentar a sua engrenagem coercitiva, deixando o indivíduo vulnerável aos mandonismos dos consórcios entre estado e crime na gestão do espaço urbano.
Discursos catárticos: liturgias do fim e da redenção
Tanto à direita quanto à esquerda, nas suas versões patéticas, a segurança se reveste de discursos catárticos. À direita caricatural, a encenação é o milenarismo da guerra contra o fim do mundo. Tem-se o discurso preditivo do colapso iminente, da dissolução da moral e da ordem, que justifica a repressão preventiva e a punição exemplar. À esquerda caricatural, é o milenarismo do juízo final em busca da terra prometida. Tem-se o discurso do futuro redentor, em que a igualdade dissolveria toda violência e conflito, como se fosse possível alcançar um mundo sem antagonismos.
Esses discursos operam com determinismos prosaicos: à direita, um atavismo individual, a crença num caráter imutável, uma sobrenatureza do mal que condena certos indivíduos a bandidagem. À esquerda, um atavismo social, a crença num ambiente deformante, uma supernatureza social que estraga a inocência original dos indivíduos.
Nos dois casos, o efeito é o mesmo: os sujeitos são esvaziados de escolhas, tratados como incapazes políticos, submetidos à tutela e infantilização que os converte em existências dirigidas de fora, de cima para baixo. Seja pela marca do “mau caráter” ou pela pecha de “vítimas do meio social”, ameaçadores e ameaçados terminam enquadrados como figuras sem autonomia, perpetradores de violências. Essas liturgias organizam o mesmo circuito afetivo que alimenta a escalada autoritária: do medo à intolerância, da intolerância ao pensamento único e do pensamento único a exclusão. Esse jogo de liturgias e promessas catárticas se fecha em um círculo vicioso, que impede a consolidação de uma política efetiva de segurança.
O círculo vicioso da promessa e da pregação
Tanto à esquerda quanto à direita, nas suas formas caricaturais, a segurança se torna cruzada moral: uma agenda interminável, sustentada por exemplificações do presente e conduzida pelo político-arauto — seja o missionário, seja o profeta do caos.
Em ambos os casos, ela não se consolida como política efetiva, mas como dependência do político-influencer e como agenda eterna. A autoridade não vem do que se realiza, mas da palavra reiterada, que se apresenta como verdade por sua repetição. O missionário ganha crédito pelo futuro que anuncia; o profeta do caos, pela catástrofe que dramatiza.
E quanto mais cega é a fé aparelhada pelo medo, mais amoladas se tornam as facas que sangram direitos e cortam vidas. Por meio da captura dos afetos, instala-se uma trilogia perversa: a maximização da insegurança, que produz a intolerância, que por sua vez substitui o pensamento comum pelo pensamento único. É esse pensamento único que autoriza e viabiliza exclusões, que ergue cercas, que fazem crescer a insegurança que, por sua vez, amola ainda mais a sua faca — e assim por diante, em ciclo vicioso de medo, intolerância e exceção.
A insegurança pública como projeto de poder
A insegurança não é acidente nem desvio. É projeto deliberado de poder, sustentado pela arquitetura política do medo. Não se trata de falha, mas de engrenagem cuidadosamente mantida: a violência e o risco não são eliminados porque funcionam como instrumentos de governo. A normalização da exceção é o mecanismo central dessa engrenagem. O medo é cultivado, administrado, distribuído em doses controladas que produzem resignação ou aplauso. Ele organiza campanhas eleitorais, constrói palanques e legitima governos que se alimentam de sua reprodução. O efeito é a dissolução da política em favor da administração da ameaça difusa e continuada. O cálculo da insegurança substitui o debate de direitos; a retórica da urgência apaga projetos coletivos. O medo não é resíduo, mas método de governo: ele sustenta a autoridade, fabrica consensos e perpetua a exceção como horizonte político permanente.
No mundo globalizado, translocal em escala e multilateral nas exigências de cooperação, sob a ordem neoliberal, o Estado já não consegue explicitar sozinho sua capacidade de governo em várias áreas: na economia, nas políticas sociais, nos programas estruturais de médio e longo prazos, depende de pactos com mercados, organismos internacionais e redes de atores não estatais. Do rito ao método, a encenação da segurança se converte em tecnologia de governo.
Mas há um campo em que o Estado segue soberano, exclusivo e sem precisar dividir protagonismo: o universo do controle coercitivo. É na defesa nacional, na segurança pública e nas fronteiras que o Estado pode, por excelência, exibir de forma direta sua força, sem mediações, e com isso reafirmar sua autoridade. Aqui, o governo em exercício, independente de orientação ideológica, pode explorar ameaças difusas, manipular pânicos morais, erguer cercas, impor cercos e produzir espetáculo de soberania.
É nesse registro que o combate ritualizado é trazido para o palco das cidades; que fronteiras são fechadas; que imigrantes são presos e expulsos; que territórios urbanos são cercados sob a justificativa do enfrentamento ao crime; que complexos prisionais e arrendamento de custódias são operacionalizados, que manobras militares se tornam exercícios de afirmação soberana para os eleitores. Aqui o Estado não depende de ninguém além de si mesmo: é com a força coercitiva que o governo da vez pode mostrar utilidade, capacidade de resposta e entrega imediata de elevada visibilidade.
Esse rendimento é potencializado pela exploração política dos ódios e temores. A insegurança é modulada como ferramenta para acionar ressentimentos étnico-raciais, fobias de gênero, preconceitos contra estrangeiros e imigrantes, rejeição ao diferente e ao deslocado. O Estado, ao encenar segurança para si, legitima fronteiras sociais rígidas, reforça exclusões e fomenta perseguições internas. Essa política do medo não é apenas punitiva, mas identitária: oferece pertencimento ao “cidadão de bem” pela negação do outro, pelo sacrifício do diverso e do indesejado.
E a segurança se presta a esse papel porque é antes de tudo existencial e material: ela toca diretamente os sentidos de pertencimento, de reconhecimento e de organização concreta da vida, no ir e vir, na manutenção da rotina, no status quo das relações sociais. Espetáculos repressivos funcionam como prova de governo, porque dobram vontades e produzem efeitos visíveis em curto prazo, diferentemente das políticas econômicas, sociais e culturais, que só rendem resultados em horizontes mais longos.
Assim, a segurança pública se converte em instrumento privilegiado para a antecipação política: com recursos coercitivos ad hoc, o Estado se mostra operante antes que o tempo lento da pactuação, da negociação e da construção de consensos tenha se completado. O tempo político estendido cede lugar ao tempo tático-operacional. É nesse tempo acelerado — de operações, cercos, prisões e manobras espetaculares — que o Estado “mostra serviço”, respondendo ao medo presente com ações imediatas e com promessas de futuro, sempre com uma paz permanentemente prometida e adiada.
É dessa lógica que se alimentam as caricaturas.
- À direita, o profeta do caos se apoia no espetáculo repressivo como promessa de entrega imediata: bravatas, leis draconianas, cercos midiáticos, mortes transformadas em dividendos políticos. O medo imediato se converte em capital eleitoral, e a repressão encenada em prova de autoridade.
- À esquerda, o missionário da espera se beneficia do próprio espetáculo repressivo ao se manter absenteísta. A cada cena de violência, reafirma que “tem as mãos limpas do sangue”, embora atadas na espera purificante de um mundo melhor. A desgraça vivida no presente vira insumo para slogans antigos e palavras de ordem reanimadas, reforçando que a promessa sempre está adiante do caos vivido. A paralisia decisória se converte em posição moral: o purgatório atual é apresentado como passagem necessária para a redenção futura.
Dessa maneira, direita e esquerda caricaturais convergem: ambas fazem da insegurança um ativo político. A direita explora o presente pelo medo; a esquerda administra o futuro pela espera. Uma se afirma na brutalidade imediata, outra na promessa purificada. Mas ambas vivem do mesmo cálculo: transformar a insegurança em engrenagem de hegemonia eleitoral, espetáculo de soberania e técnica de governo que se perpetua no curto prazo visível e se renova indefinidamente no longo prazo prometido. Na longa e assustadora noite das crises inventadas da insegurança, os profetas da direita e da esquerda se tornam pardos, indistintos, podendo trocar de lado já que partilham do mesmo campo narrativo.
Sob o pacto de irresponsabilidade
As caricaturas, à direita e à esquerda, convergem na mesma engrenagem: a evasão organizada de responsabilidades. A segurança pública torna-se campo sem donos, território de ninguém, em que nem o Estado, nem a sociedade, nem a política se reconhecem como sujeitos da ação. Erige o monopólio político das burocracias armadas que ambicionam governar no lugar de governos e fazem da política, a sua política.
O resultado é a produção sistemática de indeterminação: mortos sem culpados, vítimas sem reconhecimento, violências sem autores identificáveis. A morte se dissolve em estatística, o sofrimento em retórica, o crime em rotina administrativa. O que se estabelece é uma cumplicidade estrutural, um acordo tácito entre bravateiros e gestores: um pacto que sustenta a exceção e administra a insegurança como se fosse destino inevitável, e não escolha política deliberada.
O governo pela insegurança: reflexões sem um fim
As caricaturas da segurança — de direita e de esquerda — não são desvios retóricos, mas engrenagens políticas. Elas se alimentam do medo e da exceção para legitimar projetos autoritários, sustentando um pacto de irresponsabilidade que dissolve culpados, vítimas e autores na névoa da indeterminação.
À esquerda, a promessa suspensa e o absenteísmo mantêm a segurança como utopia diferida, administrando o presente pela espera. À direita, o profeta do caos convoca a restauração de uma ordem mítica inexistente, encenada como espetáculo de bravatas e delegada à brutalidade repressiva.
De um lado e de outro, o efeito converge: normalizar a exceção, cultivar a insegurança como método de governo e transformar a política em liturgia do medo. O resultado é a conversão da segurança pública em mercadoria, espetáculo de poder e justificativa para a suspensão ou permuta de direitos. O governo pela insegurança não é falha a corrigir, mas cálculo deliberado: uma técnica de dominação que perpetua a violência como destino e a exceção como regra.
Romper com essas caricaturas exige devolver a segurança ao espaço da política democrática: governar as polícias, responsabilizar o poder armado com transparência e tratar a segurança como direito público. Segurança pública não é marketing do medo nem mercadoria eleitoral: é abundância de futuro, porque sustenta a infraestrutura da esperança, o caminhar do agora para o daqui a pouco do presente e poder amanhecer recriando o amanhã. É ela que garante a rotina que permite viver e sonhar, assegura regularidade e previsibilidade. É o que oportuniza o ir e vir, a mobilidade socioespacial que reduz desigualdades, que empodera sujeitos e abre o acesso continuado a direitos e aos bens urbanos para todos. Só assim será possível romper com a narrativa do medo que faz da guerra contra o crime o cotidiano das sujeições, das perdas e destituições irreparáveis.
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