Criação de pauta unificada dos grupos subalternizados é o grande desafio do nosso tempo. Entrevista especial com Saulo de Matos

“Quando consideramos os diversos movimentos sociais e grupos organizados politicamente, é difícil identificar uma gramática comum mais elaborada de reivindicação”, afirma o pesquisador

Foto: Isaka Hunikui | Rede de jovens comunicadores da Coiab

Por: Patricia Fachin | 07 Outubro 2025

O grande desafio do nosso tempo “é a ausência de uma pauta unificada por parte dos grupos subalternizados”. A constatação de Saulo de Matos, professor de Filosofia do Direito da Universidade Federal do Pará (UFPA), emerge do coração da Amazônia, onde os indígenas representam a principal resistência ao neoliberalismo e ao “Estado-empresa”, que atua com o objetivo de gerar lucro. Trata-se, afirma o entrevistado, de “um Estado-empresa cada vez mais agressivo ao longo dos séculos”.

A lógica de atuação do Estado na região, contextualiza, perpetua-se desde o século XVII até a atualidade, quando Belém virou o palco da principal conferência mundial sobre mudanças climáticas. A COP30, a ser realizada na capital paraense no próximo mês, menciona Matos, “foi vendida como um grande negócio para quem presta serviços em Belém”. O evento internacional, que está sendo organizado em meio a sucessivas críticas e crises, como a da hospedagem, “é mais um capítulo da mesma lógica empresarial que conduz as ações de intervenção estatal na região desde o período colonial”. E acrescenta: “A população amazônida sempre permanece alijada do debate sobre a sua própria realidade”.

Na entrevista a seguir, concedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU por WhatsApp, Saulo de Matos reflete sobre a situação da Amazônia brasileira à luz do passado e do presente e comenta, a partir da sua área de estudo, o Direito, os desafios para assegurar as condições de possibilidade para as pessoas viverem bem na região. “Não é o reconhecimento de direitos subjetivos à natureza que fará com que a forma de exploração da Amazônia ou em qualquer outro lugar se modifique. O verdadeiro dilema em que estamos inseridos é como podemos estabelecer uma relação diferente com a natureza, a fim de que possamos viver bem”, adverte.

Em agosto deste ano, Matos ministrou a videoconferência “Teoria Negativa da Dignidade Humana e as narrativas silenciadas”, em evento promovido pelo IHU. A palestra está disponível aqui.

Saulo de Matos (Foto: Frame do entrevistado em conferência para o IHU)

Saulo de Matos é autor de, entre outros, Zum normativen Begriff der Volkssouveränität (Sobre o conceito normativo de soberania popular) (Nomos, 2015) e Teoria Negativa da Dignidade Humana (Dialética, 2024). Em 2017, foi professor visitante na Universidade de Göttingen e, em 2020-2021, professor convidado do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É vice-coordenador da Clínica de Combate ao Trabalho Escravo da Universidade Federal do Pará (UFPA), coordenador do projeto Censo Trans Pará e coordenador do Grupo de Trabalho de Filosofia do Direito Contemporânea da Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia (ANPOF). É membro fundador da Associação Serras de Minas de Teoria do Direito e Teoria da Justiça, do grupo de pesquisa Teorias Normativas do Direito e do Grupo de Estudos sobre Neoliberalismo e Alternativas na Amazônia (GENA-Amazônia).

Confira a entrevista.

IHU – No evento “Neoliberalismo e alternativas na Amazônia”, promovido na UFPA no ano passado, Christian Laval disse que o “neoliberalismo não é a ausência de Estado, mas um Estado novo, que absorve e adota uma mentalidade de capital/empresa. Ele deixa de lado a sua vocação de Estado educador, de garantia da saúde, da educação, e, em seu lugar, entram questões como ‘performance’, ‘gastos’, ‘investimento’, uma visão de empresa, não de cuidado do povo”. A Amazônia tem sido pensada à luz desse modelo de Estado? Pode nos dar alguns exemplos?

Saulo de Matos – Um dos primeiros contatos da Amazônia com uma forma de Estado europeu ocorreu em 1616, quando a empresa colonial portuguesa chegou ao território chamado Mairi, onde hoje se situa a cidade de Belém no estado do Pará. Assim como Atenas, Portugal pode ser caracterizado, nesse período, como uma talassocracia, na medida em que sua economia dependia diretamente da exploração dos seus domínios ultramarinos. Nesse primeiro período de dominação portuguesa da Amazônia oriental a partir de Belém, a empresa colonial começa uma guerra com a sociedade chamada por eles de Tupinambá, a fim de estabelecer o domínio da rota comercial de exportação das chamadas drogas do sertão. Para tanto, a empresa colonial precisava estabelecer a escravização da população local, que servia de mão de obra para extração dos produtos.

Nesses primeiros cem anos de colonização, essa empresa colonial portuguesa precisou “decretar falência”, dado que a guerra com os povos originários parecia não ter fim e já faltava mão de obra em razão do genocídio perpetuado para a garantia do domínio comercial. Assim, a empresa colonial precisa mudar a sua mão de obra escravizada para a escravização africana, o que se consolida com a fundação da Companhia de Comércio do Maranhão e Grão-Pará em 1755. Essa segunda tentativa, igualmente, não foi bem-sucedida, visto que os comerciantes locais não tinham capital suficiente para a compra de mão de obra africana necessária para a extração dos produtos e comércio. A guerra com os povos originários ganha um novo capítulo com a resistência dos povos africanos.

Assim, como se pode ver, a Amazônia brasileira nasce sob a égide de um Estado neoliberal e, talvez, salvo no período do governo cabano, nunca deixou de ser pensada à luz desse modelo. O Estado na Amazônia sempre se fez presente como uma empresa. Desde o início do que hoje chamaríamos de genocídio da sociedade Tupinambá em 1616, o Estado português e, depois, brasileiro nunca teve a vocação de “Estado educador, de garantia de saúde e da educação”, como dito na pergunta. O Estado sempre foi pensado como empresa na Amazônia, buscando escravizar a sua população com o objetivo de lucro para a capital imperial, antes Portugal e agora o sudeste-sul do Brasil.

A meu ver, outro exemplo claro disso é a recente condenação judicial da empresa alemã Volkswagen por ter escravizado a população paraense entre 1974 e 1986 em Santana do Araguaia no sudeste do Pará. Essa condenação exemplifica um dado importante para o meu argumento: a Amazônia, em especial, o Pará, segue sendo o território brasileiro com mais trabalhadores resgatados do trabalho escravo e, diria eu, não há sinal de redução desses números desde que o Brasil passou a implementar uma política pública federal de combate ao trabalho escravo em 1995. Logo, desde que a escravidão moderna começou na Amazônia com a escravidão indígena, todos os grandes ciclos econômicos da região só foram possíveis em razão do amplo uso de mão de obra escrava, sempre com suporte estatal.

IHU – Quais as consequências desse tipo de mentalidade na vida das pessoas que vivem na Amazônia?

Saulo de Matos – Certamente, como diz Violeta Loureiro, a Amazônia continua sendo colônia do Brasil e isso tem um impacto importante na forma como as pessoas da região compreendem a sua subcidadania. Não me atrevo a falar sobre a mentalidade do povo amazônida, porque isso exigiria uma discussão complexa e eu, provavelmente, não conseguiria apresentar uma análise adequada.

Mesmo assim, destaco que as consequências dessa prática neoliberal na Amazônia oriental são ambíguas. Isto é, a Amazônia brasileira continua sendo um território de resistência política de diversos povos e movimentos sociais. É a região brasileira que, historicamente, mais resiste ao avanço do Estado neoliberal desde o século XVII. Há diversos fatos que comprovam isso, mas, para não voltar muito na história, basta lembrar que em fevereiro deste ano o movimento indígena paraense conseguiu revogar a lei estadual n. 10.820/2024, que implementava o ensino à distância nas escolas indígenas. Isso foi feito por meio de diversas ações, entre elas estando a ocupação da Secretaria de Educação do Estado do Pará. No fim, com apoio amplo da sociedade civil e do sindicato dos professores, o governador Helder Barbalho e a Assembleia Legislativa do Pará foram obrigados a revogar a lei.

Resistência política

A resistência política ao avanço do neoliberalismo é feita na Amazônia desde a invasão portuguesa no século XVII. Há um acúmulo de experiência muito importante por parte dos povos, movimentos sociais e instituições da Amazônia que convivem com um Estado-empresa cada vez mais agressivo ao longo dos séculos. Não à toa o estado do Pará é o estado brasileiro que mais gerou condenações do Brasil por violação aos direitos humanos na Corte Interamericana de Direitos Humanos e, também, que o principal movimento de resistência ao neoliberalismo no Brasil, hoje, é o movimento indígena, com ampla presença e articulação na e da Amazônia.

IHU – No âmbito jurídico, quais são as alternativas práticas para fazer frente ao neoliberalismo na Amazônia?

Saulo de Matos – O direito dificilmente tem um papel transformativo. Na melhor das hipóteses, ele tem um papel afirmativo. Isto é, dificilmente será possível transformar ou alterar as relações sociais por meio da juridificação dos conflitos. Com isso quero dizer que o papel da juridicidade é sempre ambíguo. De um lado, o direito pode, em muitos casos, ter um papel negativo, de evitar o pior, quando, por exemplo, o Judiciário determina o cumprimento dos direitos fundamentais para proteção de indivíduos ou grupos em casos específicos. É possível, portanto, por meio da juridificação dos conflitos sociais buscar uma proteção provisória e precária das pessoas e grupos.

Assim, é sempre importante o papel de entidades que pensam estratégias jurídicas de litígio, a fim de criar obstáculos ao avanço da humilhação, degradação e desumanização das populações mais subalternizadas. Por outro lado, ao mesmo tempo o direito atua, muitas vezes, como forma de consolidar as relações de exploração na sociedade. Isso acontece, por exemplo, quando o direito legitima essas mesmas formas de desumanização, ou quando, via procedimentos jurídicos, a dominação se estabelece de forma naturalizada.

IHU – Como avalia a proposta dos Direitos da Natureza como forma de resistência ao neoliberalismo ou ferramenta para superar o neoliberalismo? Ela tem sido e pode ser efetiva?

Saulo de Matos – Para mim, ainda é difícil avaliar o quão efetivo é o reconhecimento feito por alguns países, como Bolívia e Nova Zelândia, dos direitos da natureza. Como disse acima, sou pessimista quanto ao papel transformador do direito em sociedades como a nossa. Mas, tentando ser otimista, é possível pensar em estratégias de litígio que envolvam o reconhecimento dos chamados direitos da natureza, a fim de ampliar o escopo de proteção dos territórios de populações tradicionais.

De toda sorte, não é o reconhecimento de direitos subjetivos à natureza que fará com que a forma de exploração da Amazônia ou em qualquer outro lugar se modifique. O verdadeiro dilema em que estamos inseridos é como podemos estabelecer uma relação diferente com a natureza, a fim de que possamos viver bem.

IHU – Que formas de enfrentamento do neoliberalismo estão em discussão na Amazônia? Quais alternativas são propostas pelos movimentos locais?

Saulo de Matos – Há muitas formas de enfrentamento ao Estado-empresa na Amazônia. O movimento indígena é o grande modelo de enfrentamento ao neoliberalismo no mundo. Contudo, quando consideramos os diversos movimentos sociais e grupos organizados politicamente, é difícil identificar uma gramática comum mais elaborada de reivindicação. Penso que o grande desafio que estamos vivendo em nosso tempo é a ausência de uma pauta unificada por parte dos grupos subalternizados. E essa situação gera um espaço amplo para o avanço de pautas conservadoras, que se valem dessa deficiência para fragilizar a articulação entre os movimentos. Um exemplo recente é a reivindicação de parte minoritária do movimento LGBTI+ para a exclusão de pessoas transgêneras do movimento unificado.

Há diversas tentativas teóricas de construção de uma gramática comum de reivindicação. Uma das mais elaboradas, mas ainda de forma insuficiente, é a do chamado comum. Além da dificuldade de união entre os diversos grupos e movimentos sociais, uma questão importante é até que ponto essas alternativas são viáveis no capitalismo contemporâneo.

IHU – Como o senhor pensa que deveria acontecer o desenvolvimento na Amazônia?

Saulo de Matos – Essa é uma questão a que não me sinto à vontade para responder. Acredito que o mais importante não seja o desenvolvimento na Amazônia, mas, sim, o viver bem na Amazônia. A questão posta à população amazônida é como as pessoas querem viver nessa região; como podemos viver com qualidade em uma região tão rica como a nossa, mas com uma desigualdade abissal.

IHU – A COP30 reforça a lógica do neoliberalismo na Amazônia ou pode ser uma oportunidade para a afirmação de alternativas ao neoliberalismo no enfrentamento às mudanças climáticas? O que espera do evento que será realizado em Belém no mês que vem?

Saulo de Matos – De modo geral, a COP30 foi construída sem a população amazônida e ela será realizada sem ela. Um exemplo disso é a chamada crise de hospedagem em Belém. A opinião pública pouco considera o fato de que o preço exorbitante das hospedagens em Belém é fruto, em grande medida, do modo como os governos estadual e federal e os organismos internacionais se comunicaram com a população sobre a COP.

O evento foi apenas comunicado para a população como uma oportunidade de geração de lucro para uma das regiões mais desiguais do mundo. Várias reuniões foram feitas com apoio estatal, em que a COP foi vendida como um grande negócio para quem presta serviços em Belém. A população foi incentivada a colocar seus apartamentos e quartos para alugar como mera forma de geração de receita durante o evento. Não houve nenhuma discussão pública e comunicação efetiva no sentido de que a COP é, também, uma oportunidade de acolher pessoas de diversos países e locais do Brasil, de participar de um debate público sobre as mudanças climáticas e o futuro da Amazônia, e de mostrar a Amazônia de uma outra forma para o mundo. Perdeu-se uma grande oportunidade de incluir a população no evento.

Penso que esse é mais um capítulo da mesma lógica empresarial que conduz as ações de intervenção estatal na região desde o período colonial. A população amazônida sempre permanece alijada do debate sobre a sua própria realidade.

IHU – No livro “Teoria negativa da dignidade humana”, o senhor chama atenção para um dos principais lemas dos movimentos sociais na Amazônia: ‘Nada sobre nós, sem nós!’. Como a teoria negativa da dignidade humana contribui para pensar alternativas à participação política e promoção dos direitos humanos dos povos amazônicos?

Saulo de Matos – Como digo no prefácio, o livro é uma obra teórica, que debate modelos de justificação dos direitos humanos. Ao mesmo tempo, ele pretende ser uma contribuição para a luta dos movimentos sociais. A razão disso é que a teoria que apresento é uma explicitação daquilo que os movimentos sociais já fazem em suas práticas reivindicatórias de direitos humanos. Toda a minha teoria se baseia na ideia de que a justificação dos direitos humanos deve ter por base a experiência das pessoas que tiveram sua dignidade negada, como é o caso das pessoas que sofrem tortura em nossas instituições estatais, das mulheres que são estupradas diariamente nas ruas e da população indígena que sofre práticas genocidas no seu dia a dia.

Assim, minha ideia não é propor um modelo novo para pensar os direitos humanos, mas tornar explícita a forma como esses movimentos atuam em uma prática político-jurídica de reivindicação de direitos como resistência à exploração dos seus bens e territórios.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Saulo de Matos – Como venho dizendo em minhas palestras sobre o livro, para alguém como eu que escreve da colônia do Brasil, poder falar para a metrópole é sempre fruto de muita luta e de uma conquista coletiva de todos os meus colegas da UFPA e da sociedade civil paraense.

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