A guerra comercial serve como metáfora para explicar a política econômica da Era Trump. Entrevista especial com Marta Fernández

“As tarifas são aplicadas de forma arbitrária, alcançando tanto aliados quanto rivais e convertendo-se em instrumentos de intimidação”, avalia professora de Relações Internacionais

Donald Trump | Foto: Casa Branca

18 Agosto 2025

Embora a guerra comercial de Donald Trump pareça confusa e desordenada, por trás dessa política econômica há uma estratégia, sinaliza a professora Marta Fernández, na entrevista a seguir concedida por e-mail para o Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Segundo a internacionalista, a lógica do tarifaço serve para criar “um esvaziamento sistemático das instâncias multilaterais, substituídas pela preferência por arranjos bilaterais, nos quais os EUA buscam maior poder de barganha”. Nesse contexto, diz ela, “as tarifas deixam de ser apenas instrumentos de proteção econômica e passam a funcionar como meio de calibrar o comportamento de outros Estados, borrando a fronteira entre política comercial e sanções propriamente ditas”, acrescenta.

A aplicação de tarifas, conforme aponta a pesquisadora, destrói a ordem global estabelecida pelos Estados Unidos no pós-Guerra, mas sem a formulação de alternativas. “As tarifas, usadas como armas de coerção, reforçam a substituição de qualquer tentativa de criar arcabouços legais ou normativos que limitem a busca desenfreada pelo poder e corrijam assimetrias”, pontua. 

Marta explica que os ataques da Casa Branca direcionados aos países integrantes do BRICS se dão “pelo fato de o grupo reivindicar uma ordem internacional alternativa, que aposta na multipolaridade cultural, econômica, financeira e monetária”. Já ao falar da ofensiva ao Brasil, a pesquisadora afirma que “as tarifas funcionam como mecanismos de disciplinamento político, travestidos de medidas comerciais, que buscam enquadrar o Brasil como ameaça e colocá-lo sob um regime simbólico de exceção”.

Marta Fernández (Foto: Arquivo pessoal)

Marta Regina Fernández y Garcia é professora do Instituto de Relações Internacionais (IRI/PUC-Rio), onde concluiu seu doutorado em Relações Internacionais. Bolsista de produtividade do CNPq e Cientista do Nosso Estado da FAPERJ, atua como diretora do BRICS Policy Center. Editora da série “Global Political Sociology” da Palgrave Macmillan, foi presidente da Associação Brasileira de Relações Internacionais (2021-2023) e diretora do IRI/PUC-Rio (2016-2020). É pesquisadora do Projeto Internacional GlobalGRACE (Global Gender and Cultures of Equality).

Confira a entrevista.

IHU – A atual Era Trump estabeleceu que tipo de lógica (se é que este termo é o mais adequado) para a ordem econômica global?

Marta Fernández – Apesar da percepção de que a política econômica da Era Trump é marcada pela imprevisibilidade, existe, sim, uma lógica que a sustenta. Trata-se de um esvaziamento sistemático das instâncias multilaterais, substituídas pela preferência por arranjos bilaterais, nos quais os EUA buscam maior poder de barganha. Nesse contexto, as tarifas deixam de ser apenas instrumentos de proteção econômica e passam a funcionar como meio de calibrar o comportamento de outros Estados, borrando a fronteira entre política comercial e sanções propriamente ditas. Além disso, essa estratégia vem acompanhada por uma ilusão nostálgica de que tais medidas seriam capazes de reconstruir o poder industrial norte-americano do pós-Segunda Guerra.

IHU – Como o caso do ataque terrorista do atirador de Nova York, que invadiu um prédio em Manhattan e disparou contra os trabalhadores de um andar do edifício, é uma alegoria ou sintoma para os ataques de Trump ao comércio mundial?

Marta Fernández – Como desenvolvi em artigo para o The Conversation, o ataque em Manhattan funciona como alegoria da política comercial da Era Trump. Assim como os disparos do atirador atingem indiscriminadamente, as tarifas são aplicadas de forma arbitrária, alcançando tanto aliados quanto rivais e convertendo-se em instrumentos de intimidação. Trump tende a enxergar a violência do atirador como algo distante, alheio a si, mas é essa mesma lógica insensata que orienta sua política tarifária. No limite, trata-se de uma estratégia suicida para os próprios Estados Unidos, pois corrói a confiança internacional e fragiliza a posição norte-americana na ordem econômica global.

IHU – Como a escalada tarifária de Donald Trump interfere na arquitetura econômica global?

Marta Fernández – A chamada arquitetura econômica global foi construída pelos Estados Unidos no pós-Segunda Guerra Mundial, dentro do que se convencionou chamar de ordem internacional liberal. O paradoxo é que, hoje, o objetivo declarado da Era Trump é justamente derrubar essa ordem, considerada obsoleta, como colocado pelo secretário Marco Rubio.

A questão central é que não há, no trumpismo, a formulação de uma alternativa ou projeto de nova ordem mundial. O que se observa é antes uma visão de caos: provocar e administrar o caos como método de ação. Nesse sentido, a escalada tarifária é exemplar, pois não busca reformar instituições nem propor novos mecanismos multilaterais, mas impor pela força relações bilaterais desiguais. As tarifas, usadas como armas de coerção, reforçam a substituição de toda tentativa de criar arcabouços legais ou normativos que limitem a busca desenfreada pelo poder e corrijam assimetrias — redes de regras e instituições que, ainda que imperfeitas, buscavam conferir estabilidade ao sistema. O resultado é um cenário em que a lógica da força suplanta a lógica das regras, fragilizando a própria ordem que os EUA um dia edificaram.

IHU – O que explica a ofensiva trumpista contra países do BRICS, como África do Sul, Brasil, Índia e Rússia, sem contar, a China, seu grande rival global?

Marta Fernández – A ofensiva trumpista contra países do BRICS se explica pelo fato de o grupo reivindicar uma ordem internacional alternativa, que aposta na multipolaridade cultural, econômica, financeira e monetária. O BRICS vem criando consensos e avanços práticos, como o fortalecimento do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) e o estímulo ao comércio em moedas locais — basta lembrar que mais de 95% do comércio bilateral entre Rússia e China já é liquidado em yuan ou rublo. Ainda que a ideia de uma moeda comum pareça distante, medidas como o anúncio de Dilma Rousseff de que 30% da carteira do NDB será em moedas locais até 2026 alimentam o imaginário de que está em curso um movimento contra-hegemônico. Para Trump, isso toca no ponto mais sensível: a hegemonia monetária do dólar.

Daí decorre uma lógica de “ataque preventivo”, em que tarifas passam a ser aplicadas como armas contra membros do BRICS, mirando sobretudo o país que preside o bloco neste ano (Brasil) e o que o presidirá no próximo (Índia). Essas ameaças se dirigem ao BRICS como conjunto, mas são operacionalizadas de forma bilateral, numa estratégia clara de dividir para dominar — como o próprio Trump afirmou, em sua “profecia”, de que o BRICS acabaria rapidamente. O caso da Índia é exemplar: foi alvo de sobretaxas por comprar petróleo russo, enquanto a China, que mantém um comércio muito mais robusto com Moscou, não sofreu sanções semelhantes.

No fim das contas, prevalece uma lógica pragmática em que “os grandes importam”. Trump mantém canais de diálogo abertos com atores estratégicos, como ficou evidente na reunião com Putin no Alasca, ao mesmo tempo que evita aplicar tarifas secundárias à China — maior importadora de petróleo russo. Já o Brasil, por outro lado, tem enfrentado o fechamento desses canais, tornando-se alvo privilegiado de intimidação.

IHU – O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tinha uma agenda para negociação do tarifaço de Trump com o secretário do Tesouro americano, Scott Bessent, para a quarta-feira, 13/08-2025, que foi cancelada dois dias antes da reunião. O que esse gesto sinaliza sobre a prioridade das relações internacionais dos EUA? É uma questão econômica de Estado ou parece ser uma questão política dos aliados de Trump?

Marta Fernández – O cancelamento da reunião sinaliza que, na Era Trump, as relações internacionais dos Estados Unidos deixam de ser tratadas como uma questão de Estado ancorada em racionalidade econômica, para se tornarem um instrumento político da extrema-direita transnacional. A diplomacia torna-se palco de uma disputa ideológica global, cujo propósito é corroer instituições multilaterais, fragilizar o Estado de direito e consolidar a lógica da força como princípio dominante. Essa dinâmica aparece de forma clara em dois exemplos.

No caso da África do Sul, enquanto o país recorre à Corte Internacional de Justiça para denunciar Israel pelo genocídio em Gaza, Trump inverte o sentido da pauta e difunde a narrativa de que haveria um “genocídio de fazendeiros brancos” naquele país — uma formulação que ecoa a ideologia da supremacia branca e mostra como a extrema-direita global manipula conceitos de direitos humanos para sustentar seus projetos. No caso do Brasil, um relatório oficial dos Estados Unidos acusou o país de violar direitos humanos, numa clara instrumentalização seletiva desse discurso.

O paradoxo é que as próprias tarifas impostas por Trump podem ser lidas como formas de violação de direitos humanos econômicos e sociais, na medida em que atingem indiscriminadamente trabalhadores, exportadores e setores produtivos inteiros. Mais grave ainda, essa ofensiva se estende ao sistema de justiça: ao colocar decisões do Supremo Tribunal Federal sob suspeita e apresentá-las como abuso de poder ou perseguição política, Washington não apenas aplica sanções, mas interfere diretamente na soberania brasileira. Nesse sentido, as tarifas funcionam como mecanismos de disciplinamento político, travestidos de medidas comerciais, que buscam enquadrar o Brasil como ameaça e colocá-lo sob um regime simbólico de exceção.

Essa política externa de Trump reatualiza a memória da América Latina tratada como quintal dos Estados Unidos, mas encontra no Brasil uma resposta afirmativa de soberania. O Plano Brasil Soberano, recém-lançado, destina recursos substanciais para proteger exportadores e trabalhadores das sobretaxas e, ao mesmo tempo, aposta na diversificação de mercados para reduzir a dependência em relação aos Estados Unidos. Soma-se a isso a postura do presidente Lula, que enfatiza a soberania nacional, recusa a lógica de confronto e reafirma a necessidade de negociação em bases multilaterais, deixando claro que o Brasil não aceitará pressões externas que violem sua autonomia.

IHU – Na prática, estamos testemunhando uma renúncia ao liberalismo econômico que vige há décadas no contexto global e onde os EUA sempre foram um carro chefe. Como entender neste contexto que a China “comunista” defenda o multilateralismo econômico e os EUA capitalista defenda o protecionismo? Qual a chave para desembaralhar as cartas desse jogo político e econômico?

Marta Fernández – O que estamos vendo não é exatamente uma contradição entre uma China defendendo o multilateralismo econômico e uns Estados Unidos capitalistas praticando o protecionismo. Trata-se, antes, do reflexo do declínio da hegemonia norte-americana. Como escreveu Antonio Gramsci, “o velho está morrendo e o novo não pode nascer; nesse interregno, surgem os mais variados sintomas mórbidos”. O protecionismo agressivo dos EUA é um desses sintomas: ao mesmo tempo que revela a perda de centralidade, mostra também a tentativa de frear, de forma coercitiva, a ascensão de novos polos de poder.

Vale lembrar que os Estados Unidos moldaram as instituições multilaterais em um contexto no qual boa parte do chamado Sul Global nem sequer havia conquistado independência. À medida que esses países passaram a ter soberania, começaram a reivindicar, dentro desses espaços, uma ordem mais justa e equitativa — das resoluções da Assembleia Geral da ONU sobre uma Nova Ordem Econômica Internacional, nos anos 1970, às vitórias concretas no sistema multilateral de comércio. O Brasil, por exemplo, derrotou os EUA em disputas na OMC sobre o algodão e o suco de laranja, deixando evidente que o liberalismo pregado por Washington nunca foi universal: valeu como disciplina para os outros, mas não como regra para si mesmo.

A China, por sua vez, não busca reproduzir uma hegemonia liberal à moda norte-americana. Sua defesa do multilateralismo — seja na OMC, seja no BRICS ou no Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura — está associada a uma visão de mundo mais descentralizada, na qual múltiplos polos de poder podem coexistir.

IHU – Qual tem sido a postura dos países do Sul Global em relação às chantagens de Trump? Qual a força desses países para resistir às investidas autoritárias de um país como os EUA, que ainda têm papel muito relevante na economia mundial?

Marta Fernández – Os países do Sul Global têm adotado uma postura estratégica diante das chantagens de Trump, evitando confrontos diretos e preferindo agir pelas frestas do sistema internacional. Trata-se de um aprendizado histórico: conscientes da assimetria de poder, esses países desenvolveram a habilidade de se mover de forma pragmática, explorando brechas e diversificando parcerias em vez de bater de frente com a potência hegemônica.

No caso brasileiro, essa lógica aparece no Plano Brasil Soberano, que prevê mais de R$ 30 bilhões para proteger exportadores e trabalhadores das sobretaxas norte-americanas, mas também para reforçar a resiliência interna diante das turbulências do comércio global. Ao mesmo tempo, o Brasil tem apostado na estratégia da diversificação comercial, articulando-se com outros países do Sul Global — por exemplo, via BRICS — para recentrar instâncias multilaterais como a OMC e a ONU.

Cresce também a preocupação com o redesenho das cadeias produtivas globais. As tarifas impostas pelos Estados Unidos evidenciaram os riscos da dependência excessiva de poucos mercados, estimulando países emergentes a buscar novas rotas comerciais e ampliar sua autonomia em setores estratégicos.

Esse conjunto de movimentos mostra que a resposta do Sul Global às pressões norte-americanas não se dá pelo enfrentamento aberto, mas por uma diplomacia que combina defesa interna, diversificação comercial e valorização do multilateralismo. Trata-se, em última instância, de ampliar margens de manobra em um sistema internacional em transição, no qual o poder está mais disperso e as estratégias de adaptação tornam-se decisivas.

IHU – Pode explicar o que é a “Declaração do Rio de Janeiro”, adotada pelo BRICS em julho de 2025? Que saídas o documento aponta contra a ofensiva autoritária de Trump no comércio global?

Marta Fernández – Na Declaração do Rio de Janeiro de 2025, os países do BRICS reforçam o compromisso com um sistema multilateral de comércio aberto, previsível e inclusivo, contrapondo-se às medidas unilaterais e desleais que caracterizam a política tarifária de Trump. O documento enfatiza a necessidade de restaurar a credibilidade da OMC e, ao mesmo tempo, aponta para caminhos práticos que buscam ampliar a autonomia dos países do grupo. Entre eles, destaca-se o incentivo ao comércio intra-BRICS e à facilitação do comércio e dos investimentos, reduzindo barreiras logísticas e regulatórias. Esse esforço se articula com a ampliação do uso de moedas locais, que não significa a criação de uma moeda única, mas sim uma estratégia para reduzir a dependência do dólar, cuja centralidade no sistema internacional remonta ao pós-Segunda Guerra.

A declaração também menciona a importância de fortalecer sistemas de pagamento regionais e de avançar na construção de uma rede de segurança financeira entre os países membros, reforçando sua resiliência coletiva. Além disso, traz iniciativas concretas, como o projeto de uma Bolsa de Grãos do BRICS, que visa reduzir vulnerabilidades no comércio agrícola e garantir maior segurança alimentar. Em conjunto, essas medidas mostram que a resposta do BRICS à ofensiva protecionista norte-americana não se dá pelo confronto direto, mas por meio de uma diplomacia de diversificação, de fortalecimento do multilateralismo e de construção de instrumentos que ampliam margens de manobra e preparam o grupo para um sistema internacional em transformação.

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