"A situação de insegurança alimentar que vivemos hoje no país está coexistindo com a questão da obesidade", diz a pesquisadora da Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis, da Universidade de São Paulo - USP
Obesidade, desnutrição e mudanças climáticas são três epidemias globais que, conjuntamente, são chamadas de "sindemia global", isto é, um conjunto de problemas que estão interligados e afetam o estado de saúde das pessoas. "Essas três pandemias são apresentadas de forma conjunta porque são muito sinérgicas, coexistem de forma generalizada no planeta, têm determinantes comerciais e sociais semelhantes que interagem entre si, e têm uma influência conjunta quando diz respeito aos impactos para a sociedade como um todo", disse Ana Paula Bortoletto na primeira conferência do "Ciclo de Estudos Sindemia Global. Obesidade, desnutrição e o novo regime climático - O (re)pensar das cadeias agroalimentares globais”, iniciado em 02-08-2022, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU em parceria com o curso de Nutrição da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos.
Na conferência a seguir, publicada no formato de entrevista, Ana Paula explica que a sindemia global é "fruto do modelo hegemônico e globalizado de produção e consumo de alimentos, do sistema de alimentação, transporte, organização urbana e uso da terra". Ela também chama a atenção para o aumento dos casos de obesidade no Brasil, especialmente em um contexto de aumento da insegurança alimentar e da fome. "Segundo dados brasileiros de aumento da obesidade, como os da Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico - Vigitel, que monitora fatores de risco e proteção para doenças crônicas nas capitais brasileiras desde 2006, a tendência da obesidade é aumentar e, inclusive, em 2021, o percentual de obesidade na população adulta das capitais brasileiras foi de 22%", informa.
Ana Paula Bortoletto (Foto: Idec)
Ana Paula Bortoletto é graduada em Nutrição pela Universidade de São Paulo – USP e mestre e doutora em Nutrição em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da USP. Foi coordenadora do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Idec de 2016 a agosto de 2020. É consultora técnica do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor - Idec e pesquisadora da Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis, da USP.
IHU – O que significa “sindemia global”?
Ana Paula Bortoletto – O conceito de sindemia global nos ajuda a olhar para os sistemas alimentares atuais e a pensar a partir de um ponto de vista do impacto desses sistemas na saúde humana e no meio ambiente e quais os caminhos para construir mudanças.
Sindemia global de obesidade, desnutrição e mudanças climáticas é um conceito que foi publicado pela primeira vez em 2019, elaborado por uma comissão do periódico The Lancet, com a intenção original de atualizar as evidências e abordagens sobre os contextos de obesidade. Mas, ao longo do trabalho, a comissão identificou que existiam conexões relevantes entre a pandemia de obesidade com as questões climáticas dos sistemas alimentares e também com a desnutrição, considerando a má nutrição em todas as formas.
O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – Idec traduziu o documento produzido pelo The Lancet, o qual está disponível na plataforma Alimentando Políticas, no site do Idec. A repercussão acadêmica das referências que têm sido produzidas a partir desse conceito vem crescendo exponencialmente. Neste contexto em que estamos, juntando as pandemias que já existiam com a de Covid-19, é necessário construir conexões e identificar como as pandemias interagem entre si a fim de pensar soluções que possam ser mais efetivas.
Essas três pandemias são apresentadas de forma conjunta porque são muito sinérgicas, coexistem de forma generalizada no planeta, têm determinantes comerciais e sociais semelhantes que interagem entre si, e têm uma influência conjunta quando diz respeito aos impactos para a sociedade como um todo. Além disso, o conceito foi construído porque essas são três pandemias que aumentaram muito e têm um impacto muito grande na população mundial. Elas são fruto do modelo hegemônico e globalizado de produção e consumo de alimentos, transporte, organização urbana e uso da terra. Esses quatro elementos identificam quais são os fatores de onde partem os problemas e as consequências desse ciclo.
A imagem (abaixo) é um exemplo do quadro que foi construído para exemplificar porque essas três pandemias interagem entre si. Na parte inferior da imagem é possível ver os níveis dos sistemas que foram identificados para explicar a sindemia: os sistemas naturais, as questões de governança e política, assim como os desenhos estruturantes da sociedade, as questões alimentares, de transporte, o desenho urbano e o uso do solo.
Destaco os sistemas de governança e o sistema macro porque são justamente nestes sistemas que a publicação da sindemia global propõe que devemos construir intervenções conjuntas e mais efetivas para lidar com essas três pandemias de forma conjunta.
IHU – Quais são as causas dessas três pandemias e que relações há entre elas?
Ana Paula Bortoletto – A interação entre essas três pandemias é consequência de fatores ligados a interesses comerciais que alimentam o modelo hegemônico dos sistemas alimentares globais, que estão conectados com uma inércia das mudanças políticas – que é um grande problema com o qual temos dificuldade de lidar e enfrentar de forma efetiva –, além de uma dificuldade de ação conjunta e coordenada da sociedade para pressionar por essas mudanças. O contexto dos países é muito diferente entre si e não necessariamente eles têm o mesmo peso quando olhamos para cada caso, como o dos países europeus e latino-americanos.
IHU – Como a sindemia é observada no Brasil e ocorre no nosso contexto?
Ana Paula Bortoletto – Olhamos para a sindemia como a sinergia das pandemias, conectando indicadores e elementos que vêm da Agenda da Alimentação e Nutrição com a Agenda da Sustentabilidade. Não temos um único indicador que explique de forma numérica a sindemia global e, portanto, precisamos buscar diversos elementos para compor esse conjunto de indicadores que pode representar como está a sindemia global. Entre eles, destacam-se as formas de má alimentação, conectadas com a Agenda de Sustentabilidade, incluindo a subalimentação, os diferentes níveis de insegurança alimentar, quando se tem uma alimentação insuficiente, ou a má alimentação, quando a alimentação é inadequada em relação à qualidade e à diversidade dos grupos de alimentos. Isso se reflete nas formas de má-nutrição, desnutrição e má-nutrição relacionadas a micronutrientes, sobrepeso e obesidade.
O documento da sindemia global apresenta uma perspectiva dividida em relação à desnutrição, à obesidade e à deficiência de macronutrientes. Outras reflexões, como a do pesquisador australiano Gyorgy Scrinis, que cunhou o termo “nutricionismo”, fazem uma crítica a esse entendimento de compreender a má-nutrição e todas as suas formas de modo a separar e segmentar a classificação de modo descontextualizado, sem considerar enquadramentos sociais e políticos que acabam levando a soluções insuficientes. Para dar um exemplo, na questão da deficiência de micronutrientes como ferro ou qualquer outro micronutriente, muitas vezes são oferecidas soluções para tratar a questão apenas oferecendo uma fortificação de forma isolada, sem considerar o tipo de alimentação e a cultura alimentar das pessoas, e isso pode trazer consequências insuficientes para o tratamento da questão, olhando apenas para um segmento dela.
Números e dados mostram como o atual modelo do sistema alimentar brasileiro é responsável por graves impactos no meio ambiente, em todos os níveis, tanto em relação ao uso excessivo das reservas de água, mudanças características do solo e poluição em diferentes instâncias. Além de haver uma relação entre a produção de commodities, o desmatamento, a redução da biodiversidade no mundo e a emissão de gases de efeito estufa, no Brasil, em especial, a agropecuária tem um papel muito importante e relevante em relação às emissões.
Além dos impactos diretos dos sistemas alimentares, também sabemos que os surtos epidêmicos que estamos sofrendo têm origem no desmatamento e na destruição dos ecossistemas e suas espécies, que acabam levando ao desenvolvimento de variações de novos transmissores de doenças e novos vírus, como é o caso do coronavírus. Há uma preocupação de que a degradação do meio ambiente e as mudanças climáticas também possam gerar impactos na saúde pública, com a emergência de outras doenças.
O Idec tem discutido sobre as conexões entre mudanças climáticas e sistemas alimentares e, nesse sentido, realizou estudos analisando a presença de agrotóxicos em produtos ultraprocessados. Muitas vezes, olhamos para o impacto da produção de alimentos e o uso de agrotóxicos, ou analisamos somente o processo dos alimentos in natura contaminados por agrotóxicos, mas, na verdade, há um conjunto de produtos ultraprocessados que passam por diferentes níveis de transformações na indústria e que, mesmo assim, carregam a presença de agrotóxicos.
Outro aspecto da sindemia global é a obesidade. No mundo todo esse é um problema crescente, com aumentos exponenciais, com destaque nos países em desenvolvimento, que ainda estão apresentando um aumento acelerado da obesidade, mesmo em uma situação como a que nos encontramos hoje, de insegurança alimentar e de fome.
Segundo dados brasileiros de aumento da obesidade, como os da Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico - Vigitel, que monitora fatores de risco e proteção para doenças crônicas nas capitais brasileiras desde 2006, a tendência da obesidade é aumentar e, inclusive, em 2021, o percentual de obesidade na população adulta das capitais brasileiras foi de 22%. O excesso de peso, que é um estágio anterior à obesidade – mas também preocupa, porque ao estar com excesso de peso as chances de ir para a obesidade são maiores –, já alcançou mais da metade da população brasileira adulta em 2021. Isso quer dizer que há um potencial grande de continuar aumentando a obesidade.
Esse é um tema ao qual o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde – Nupens tem se dedicado no sentido de entender o que explica o aumento da obesidade. Temos evidências muito robustas tanto no Brasil quanto em diversos países do mundo que indicam que o aumento da produção do consumo dos alimentos ultraprocessados é o que está diretamente relacionado às mudanças nos padrões alimentares e na pandemia de obesidade que tem trazido mudanças nestes padrões como um todo, provocando a própria obesidade. No Brasil, observamos pelos dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE que a tendência no consumo de ultraprocessados continuou crescendo até 2018. Esse é um dado mais antigo, mas que mostra o panorama representativo da população brasileira. O IBGE faz essa pesquisa abrangente que nos permite acompanhar grandes movimentações. O que sabemos da última pesquisa é que houve um aumento no consumo de ultraprocessados, inclusive, entre as pessoas de menor renda e em maior vulnerabilidade social. A situação de insegurança alimentar que vivemos hoje no país está coexistindo com a questão da obesidade.
No início do século XXI houve uma redução exponencial da desnutrição no Brasil. Analisando os dados globais de doenças atribuídas à desnutrição, no Brasil, observamos uma queda acentuada da posição da desnutrição em 2007, quando esse era o primeiro fator na carga mundial de doenças. Vários estudos documentam como o Brasil foi capaz de reduzir a desnutrição, conforme mostram os indicadores de desnutrição infantil, principalmente entre crianças maiores de cinco anos. Outros estudos mostram como as políticas públicas de proteção social, de transferência de renda e assistência à saúde contribuíram para a redução exponencial da desnutrição. Porém, como sabemos, atualmente, vivemos um contexto muito grave de aumento da insegurança alimentar e o Brasil voltou ao Mapa da Fome. Ainda existia insegurança alimentar em locais e territórios específicos, mas agora isso está atingindo a população brasileira como um todo.
O último dado do relatório da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional deste ano mostra o grave e absurdo número de 33,1 milhões de pessoas passando fome no Brasil. É um dado estarrecedor, que gera muita indignação e preocupação, mas também muita vontade de mudança. Não podemos mais nos conformar com uma situação de retrocessos tão grandes como os que estamos vivendo no Brasil hoje.
Sindemia Global: do que estamos falando?
IHU – Quais são os desafios e soluções nesse contexto?
Ana Paula Bortoletto – No relatório de sindemia global são feitas algumas propostas às quais podemos aderir para construir um caminho frente aos desafios e soluções do contexto brasileiro. Segundo o relatório, é fundamental construir ações de transformações políticas que tenham ações que sejam no mínimo duplas, mas, idealmente, triplas, considerando os casos de obesidade, desnutrição e mudanças climáticas.
As ações precisam ser convergentes e sinérgicas e reorientar os sistemas fundamentais de alimentação, transporte, desenho urbano e uso do solo, e gerar alavancas de governança. É dentro do espaço de sistemas e governança que é possível construir legislações, políticas públicas e mobilizações sociais que vão conseguir construir soluções conjuntas para essas três pandemias. Muitos exemplos foram destacados ao longo da proposta, mas vou citar apenas dois que poderiam trazer efeitos triplos.
Um deles é a restrição das influências comerciais no sentido de pensar em ter processos de garantir maior transparência em situações de conflitos de interesse, financiamento e influência econômica nas políticas públicas. Esse tipo de ação contribuiria para atuar nas três pandemias, visto que existem interesses comerciais tanto na redução da obesidade, com as políticas de combate às doenças crônicas, tanto na questão da pobreza e dos determinantes sociais da desnutrição, quanto nas políticas que têm sido construídas opostas à redução das emissões de gases de efeito estufa.
O segundo exemplo de ação de trabalho triplo seria em relação à elaboração de guias alimentares que tragam a promoção da saúde junto com a perspectiva da sustentabilidade para orientar as políticas dos países a fim de que sejam promovidas escolhas saudáveis e menos prejudiciais à saúde e que melhorem o acesso a alimentos saudáveis e evitem a desnutrição, contribuindo para escolhas alimentares que favoreçam a proteção do meio ambiente, como alimentos agroecológicos, ao invés de alimentos com agrotóxicos ou ultraprocessados.
Outro caminho importante de discutirmos é como superar a inércia política, que é a realidade que vivemos de forma mais intensa hoje. Um exemplo dessa situação é uma análise feita em uma pesquisa de doutorado sobre o avanço da discussão da agenda da nutrição no Congresso Nacional. A pesquisadora fez uma análise dos projetos de lei sobre alimentação que tramitaram no Congresso a partir de vários aspectos: rotulagem nutricional, produtos saudáveis e não saudáveis, composição dos alimentos, tributação.
Apesar de existirem vários projetos em andamento, observamos que não houve avanços e movimentações nas propostas. A maior parte delas não passou nem por uma comissão. O processo legislativo é longo e desafiador no país, mas para a agenda de alimentação há muitas barreiras e desafios. Claro que esse processo é um desafio no mundo todo e há a necessidade de ter movimentos sociais que sejam capazes de vencer essa inércia e enfrentar determinantes comerciais.
No Brasil, temos uma situação positiva de muitos atores e movimentos sociais de diferentes naturezas, desde movimentos de base até acadêmicos, que trabalham para defender políticas públicas que de fato protejam o interesse da população, mas também temos um contexto desafiador de retrocessos a direitos sociais. Diria que estamos em uma situação não só de inércia política, mas de uma política que está atrasando e trazendo mais retrocessos para o país. Mais do que reverter a inércia política, é preciso reverter o quadro de desmonte de políticas públicas. Sobre isso, o relatório aponta a necessidade de olhar essas três pandemias de forma conjunta, colocando fatores sistêmicos comuns e interações entre si, para contribuir para novas narrativas, para novas abordagens de disputar os espaços políticos que podem apoiar e acelerar a atuação da sociedade em defesa dos direitos sociais.
IHU – Como a Cátedra Josué de Castro tem contribuído para este debate?
Ana Paula Bortoletto – A Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis é um espaço recente de reflexão e discussão sobre sistemas alimentares que está repercutindo e trabalhando o conceito da sindemia global para juntar atores que nem sempre conseguem conversar entre si.
Sistemas alimentares é um tema tão complexo e desafiador e vários setores e áreas diferentes estão trabalhando na questão da produção, do abastecimento, das cadeias produtivas, do apoio aos pequenos produtores, do consumo alimentar, dos impactos na saúde. A ideia da Cátedra Josué de Castro é ter um espaço de confluência e proposição sobre o tema de forma multidimensional. É um espaço que foi criado no ano passado e tem sede na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, com a intenção de trazer reflexões e produzir conhecimento sobre sistemas alimentares, integrando as dimensões econômicas, sociais, culturais, jurídicas etc. A intenção é reunir atores e especialistas não apenas da academia para poder construir agendas comuns e cultivar ações que transformem o sistema alimentar brasileiro. A proposta também é olhar para os sistemas alimentares a partir de perspectivas não somente do cidadão, mas também da saúde do meio ambiente de forma conjunta, atuando em quatro principais eixos de trabalho: disseminação, formação, pesquisa e incidência.
Espaços de confluência e construção de diálogos como os da cátedra são apontados no relatório da sindemia global como necessários de serem fortalecidos para que possamos fomentar um pensamento sistêmico, soluções integradas, o fortalecimento de instituições democráticas, a participação social e o desenvolvimento de pesquisas que construam esse olhar sobre os determinantes da sindemia global em conjunto com pesquisadores, gestores e a sociedade civil. A ideia é ser mais um espaço de construção no Brasil, como muitos outros que já existem.
O último material produzido pela Cátedra foi um processo de discussão, considerando os 75 anos da publicação do livro Geografia da Fome, do Josué de Castro, nosso patrono. Organizamos no ano passado um ciclo de debates e, a partir dele, publicamos um livro intitulado “Da fome à fome. Diálogos com Josué de Castro”, que está disponível gratuitamente na forma online e impressa, e está à venda para quem tiver interesse. Esse trabalho é um exemplo de possibilidades de construção de diálogos e discussões multidisciplinares a partir dos olhares de atores da academia, da sociedade civil e de movimentos populares, de uma forma que consigamos entender como o Brasil saiu do Mapa da Fome e voltou a ele em um período de tempo tão curto, sem deixar de considerar a construção feita no período em que foi possível sair desse mapa e o contexto político e econômico estarrecedor que nos faz ser um país que é um dos maiores produtores de grãos do mundo, mas com uma população em situação de insegurança alimentar muito grave.