"Teologia de ganso": a arte de formar presbíteros impermeáveis à realidade. Artigo de Eliseu Wisniewski

Foto: Partha Narasimhan/Unplash

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17 Dezembro 2025

"Pastoralmente, as consequências são significativas. A 'teologia de ganso' tende a gerar futuros presbíteros incapazes de lidar com a ambiguidade humana: têm dificuldade de ouvir relatos de pessoas quebradas e machucadas, de aproximar-se de famílias em conflito, de sustentar a fé de pessoas fragilizadas. São ministros cujo repertório doutrinal é amplo, mas cuja capacidade de presença é limitada", escreve Eliseu Wisniewski, presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos), Província do Sul, mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).

Eis o artigo.

No âmbito da formação presbiteral, tem emergido, ora perceptível de modo sutil, ora claramente, um fenômeno que pode ser pedagogicamente e simbolicamente denominado “teologia de ganso”. A metáfora se refere a candidatos que, à semelhança da ave que se desloca nadando sobre águas profundas sem jamais permitir que suas penas se molhem, desenvolvem uma postura existencial e teológica marcada pela impermeabilidade afetiva, espiritual intelectual e pastoral. Trata-se de sujeitos vocacionados que atravessam o processo formativo mantendo-se impermeáveis, insensíveis e resistentes à interpelação da realidade, da Palavra e da vida pastoral/comunitária.

Do ponto de vista acadêmico, essa postura representa uma forma de teologia não performativa, no sentido empregado por pedagogos e teólogos: conteúdos são assimilados, mas não se tornam critérios de discernimento; doutrinas são repetidas, mas não se convertem em lentes para interpretar o mundo; textos sagrados são estudados, mas não produzem verdadeira conversão pastoral. A reflexão teológica, que deveria ser um lugar de encontro entre fé e vida, acaba sendo reduzida a um repertório de ideias de uso funcional, desconectado da experiência. Tudo escorre, tudo desliza. A água nunca penetra. É uma teologia que “paira”, mas “não encarna”.

Os documentos eclesiais referentes a formação sacerdotal, sobretudo após o Concílio Vaticano II (1962-1965) e à luz da Exortação Apostólica Pastores Dabo Vobis (1992), insistem na necessidade de integrar as cinco dimensões formativas: humana-afetiva, comunitária, espiritual, intelectual e pastoral-missionária. A “teologia de ganso” revela precisamente o enfraquecimento dessa integração. O candidato pode apresentar desempenho acadêmico eficiente, mas sem deixar que o estudo o transforme interiormente; pode cumprir práticas espirituais, mas sem permitir que a oração abra ou cure feridas; pode participar de estágios pastorais, mas mantendo-se protegido da vulnerabilidade e do encontro real com as dores humanas.

Essa impermeabilidade não é apenas um estilo pessoal; é um mecanismo de defesa. A antropologia vocacional e a psicologia da religião mostram que, muitas vezes, candidatos buscam proteção na instituição ou no papel clerical para evitar o enfrentamento de suas próprias fragilidades. Assim, a teologia se torna uma armadura e não um caminho de sabedoria. A espiritualidade se converte em rito de autoafirmação e não em espaço de esvaziamento para o encontro com Deus. A pastoral se reduz a observação distante e não à participação compassiva.

Pastoralmente, as consequências são significativas. A “teologia de ganso” tende a gerar futuros presbíteros incapazes de lidar com a ambiguidade humana: têm dificuldade de ouvir relatos de pessoas quebradas e machucadas, de aproximar-se de famílias em conflito, de sustentar a fé de pessoas fragilizadas. São ministros cujo repertório doutrinal é amplo, mas cuja capacidade de presença é limitada. Na prática pastoral, esse tipo de formação produz ministros que fogem da complexidade do real. São bons em repetir fórmulas, mas fracos em discernir situações pastorais; sabem sentar-se aos pés de São Tomás de Aquino, mas não sabem sentar-se ao lado de uma família destruída; dominam rubricas, mas não compreendem os dramas humanos que se escondem atrás de cada sacramento pedido. São presbíteros que conhecem as águas de longe, mas recusam-se a entrar nelas. A comunidade reconhece neles não pastores, mas administradores de ritos; não homens de Deus, mas gestores de agenda; não servidores da comunhão, mas representantes de uma função. As águas da vida passam, mas não deixam rastro.

Sob o ponto de vista eclesial, trata-se de um fenômeno preocupante, pois contradiz o paradigma de formação de discípulos missionários, tão enfatizado pelo magistério recente. A Igreja necessita de ministros que entrem na água, que conheçam a realidade por dentro, que se deixem tocar, converter e transformar. O modelo de Cristo Pastor, que mergulha na história humana e que carrega sobre si as fragilidades daqueles que acompanha, sugere precisamente o contrário da teologia impermeável. Jesus não ensinava a partir da distância, mas da convivência; não atuava a partir da pureza exterior, mas da compaixão interior.

Por isso, superar a “teologia de ganso” exige processos formativos mais robustos, capazes de integrar maturidade afetiva, elaboração de fragilidades, acompanhamento espiritual consistente e práticas pastorais que não sejam meros exercícios protocolares. É necessário cultivar um ethos formativo em que o seminário não seja um ambiente de blindagem, mas de exposição à verdade, a verdade de Deus, a verdade da Igreja e a verdade sobre si mesmo.

A formação presbiteral precisa suscitar não apenas bons estudantes, mas homens permeáveis ao Espírito, sensíveis à voz dos pobres, atentos às dores da comunidade e dispostos a deixar-se transformar pela realidade que servem. A vocação amadurece quando as “penas” deixam de ser escudos e se tornam canais por onde Deus pode agir. Só assim a teologia se converte em sabedoria pastoral, e o ministério em sinal de esperança para o mundo.

A formação presbiteral exige precisamente isso: permitir que a água do mundo, a água da Palavra e a água das lágrimas humanas nos transformem. Em última instância, a crítica dirigida à chamada “teologia de ganso” aponta para um imperativo essencial: a necessidade de formar presbíteros cuja fé seja encarnada, cuja teologia seja vivida e cuja pastoral seja expressão concreta da misericórdia divina. Molhar-se é condição para servir. E na tradição cristã, a água que transforma, seja a do Batismo, seja a das lágrimas humanas, nunca age sobre aquilo que insiste em permanecer impermeável. Quem deseja ser presbítero sem se molhar talvez ainda não entenda que, no cristianismo, a graça nunca cai sobre penas blindadas/impermeáveis. Ela só fecunda aquilo que se deixa atingir.

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