28 Junho 2025
"Francisco ainda teve forças para concluir o seu pontificado na presença do povo, ali na Praça São Pedro. Na bênção urbi et orbi, o que se ouviu de Francisco foi apenas um leve sopro, mas era o sinal vivo da presença do Espírito", escreve Faustino Teixeira, teólogo, professor emérito da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF e colaborador do Instituto Humanitas Unisinos – IHU
Ao terminar a leitura do novo livro de Marco Politi, La rivoluzione incompiuta – A igreja depois do papa Francisco (2025) –, a sensação que restou é de tristeza e inquietação. São 247 páginas que nos revelam os passos difíceis percorridos por Francisco ao longo de seu pontificado, e todo o tempo cercado por adversários e lobos, interessados e empenhados em atacar e denunciar o seu trabalho de renovação da igreja.
Marco Politi talvez seja hoje o maior vaticanista, com larga experiência nas análises sobre a igreja católica. Trabalhou por quase vinte anos no jornal La Repubblica, e depois assumiu o cargo de editorialista do jornal Il Fatto Quotidiano, onde agora tem um blog muito importante. É autor de várias obras singulares envolvendo a conjuntura eclesiástica, entre os quais: Sua santidade. João Paulo II e a história oculta de nosso tempo (Rio de Janeiro: Objetiva, 1996 – o original é de 1996), um livro realizado com a contribuição de Carl Berstein; Joseh Ratzinger. Crisi di un papato (Bari: Laterza, 2011); La solitudine di Francesco. Um papa profético, uma chiesa in tempesta (Bari: Laterza, 2019); Francesco tra i lupi. Il segreto di uma rivoluzione (Bari: Laterza, 2014); Francesco. La peste, la rinascita (Bari: Laterza, 2020).
O novo livro de Marco Politi vem dividido em 12 capítulos: Uma estação incerta (1); O colapso de um poderoso (2); Grandes limpezas (3); O enigma jovem (4); Mulheres cansadas e irritadas (5); O anoitecer da cúria (6); Buracos negros (7); No olho do ciclone (8); O outono do descontentamento (9); Qual papa, qual igreja (10); O Sul bate na porta (11); Contra o vento (12).
No capítulo 1, Politi aborda o tema da estação incerta na igreja católica.A seu ver “o outono do pontificado de Jorge Mario Bergoglio vem atravessado pela desorientação”[1].A igreja católica vem tomada, assim, por “ventos de tensão e incerteza”. Francisco inicia seu pontificado recusando as regalias pontifícias, como no caso do palácio apostólico. Prefere um caminho mais simples, e escolhe viver na Casa Santa Marta. Inicia seu pontificado num tempo difícil, marcado por grandes desigualdades. Como sublinha Politi, a fatia de 1% dos mais ricos do planeta apropria-se, sem receio, de 63% das riquezas do planeta (p.12). A Itália que recebe Francisco também passa por mudanças difíceis, com o reforço da direita e o rechaço de ajudas fundamentais que eram destinadas aos mais pobres (p. 13). Em âmbito mundial, os conflitos na Ucrânia e no Oriente Médio também significam golpes duros para Francisco.
A rica relação da igreja católica com os judeus se vê abalada pelos posicionamentos críticos de Francisco com respeito à Faixa de Gaza. Inúmeras críticas são lançadas contra o papa por parte da comunidade judaica, inclusive pela assembleia dos rabinos italianos, que o acusam de “gélida equidistância” ao lidar com o que ocorre em Gaza com respeito aos ataques do Hamas em outubro de 2023 (p. 16).
No campo da vida eclesial, são inúmeros os desafios colocados para Francisco, sobretudo no campo da “desafeição religiosa”. O que ocorre na igreja católica é um verdadeiro êxodo dos fiéis: “Fogem os jovens, fogem as mulheres, fogem os que aspiram ao sacerdócio. Os fiéis desertam dos sacramentos” (p. 17). Não há mais, como antes, uma frequência regular nas missas dominicais e na vivência da eucaristia. Nenhum dos três últimos papas, Wojtyla, Ratzinger e Bergoglio, conseguem inverter essa tendência de refluxo eclesial. Politi recorre a uma dura expressão para retratar o momento da igreja católica. Ele fala em “guerra civil” que lacera o tecido eclesial, e que se agrava com os dois sínodos sobre a família, em 2014 e 2015 (p. 17). Na visão de Lucetta Scaraffia, ensaísta católica, próxima a Ratzinger, Francisco significa uma “uma catástrofe para a igreja na Europa e no mundo” (p. 18). Assim como ela, outros tantos estudiosos não hesitam em fazer críticas abertas ao pontificado de Francisco. Politi lembra também os insultos ferozes por parte de Javier Milei da Argentina. Durante seus comícios visando a presidência da Argentina, o então candidato definia o pontífice como um “representante do mal na casa de Deus”. Ele não poupava adjetivos violentos contra Francisco, nomeando-o como “imbecíl (...), jesuíta que promove o comunismo e políticas eclesiais de merda” (p. 18).
No âmbito da cúria, as resistências a Francisco estiveram sempre presentes. Já em seu livro anterior, Francisco entre os lobos, Politi sublinha que as resistência da cúria contra Francisco já começaram na noite de sua eleição. Para tais segmentos, o pontificado de Francisco significou, em verdade, uma desorientação para a igreja católica, numa experiência que se mostrou carente de consistência doutrinal[2]. O sentimento predominante na cúria romana com respeito a Francisco é de “enfado”, de aborrecimento (p. 19)
As resistências mais profundas ocorreram no âmbito moral, nos posicionamentos de abertura de Francisco com respeito a determinados temas como o celibato, a ordenação de homens casados, a cidadania das mulheres na igreja etc. Em janeiro de 2020, como sublinha Politi, ocorreu um ponto de ruptura, quando Francisco mostrou-se sensível à hipótese da ordenação de homens casados para situações de emergência, como na Amazônia brasileira (p. 25). Foi quando veio a reação oposta de Ratzinger e o cardeal curial, Robert Sarah, com um livro em que reiteravam a imprescindível ligação entre o sacerdócio e o celibato (p. 25). No documento pós-sinodal, Querida Amazônia, sob grande pressão, Francisco acaba prorrogando uma posição mais definida sobre o assunto, que era um tema requerido pelos bispos da Amazônia (p. 26).
Um dos críticos mordazes de Francisco foi o secretário particular do papa Bento XVI, o monsenhor Georg Ganswein. Ele lançou em 2023 um livro em que faz críticas à dinâmica de abertura na igreja católica, que também envolve Francisco. Trata-se da obra: Nien'altro che la verità. La mia vita al fianco de Benedeto XVI (Milano: Piemme, 2023). Há no livro uma firme defesa das posições ratzingerianas, como a Fides et Ratio, que para ele consistia numa suma sobre o tema da verdade; a Dominus Iesus, e a crítica à relativização, presente em eventos como a Jornada Mundial pela Paz em Assis (1986)[3]. Ainda em 2023, o livro do cardeal Gerhard Muller - ex-Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé - In buona fede, retoma críticas pesadas ao ventos de abertura suscitados por Francisco. Para ele, o que estava em curso era um “tendência geral de dispersar o patrimônio de fé em razão de uma difusa confusão doutrinal”[4]. O cardeal Muller reage igualmente contra o “círculo mágico” dos consultores de Francisco, que gravitavam em torno da Casa Santa Marta, que para ele não estavam preparados “do ponto de vista teológico”[5].
O posicionamento de Francisco com respeito a Georg Ganswein foi bem firme, suspendendo suas funções na Casa pontifícia em janeiro de 2020 e enviando-o para sua diocese de origem, em Friburg, na Bresgóvia. Uma das motivações para o gesto de Francisco foi uma entrevista concedida por Ganswein no jornal católico alemão, Tagepost, onde sublinhou que a decisão de Francisco de limitar o recurso da missa em latim teria “partido o coração de Bento XVI” (p. 27).
Politi sublinha que a liberdade de ação de Francisco começou mesmo em 2023, quando pôde dar seus primeiros passos na linha de uma renovação da cúria, com as indicações de Robert Prevost para o dicastério dos bispos e o teólogo argentino, Victor Manuel Fernández, para a Congregação para a Doutrina da Fé (p. 28).
No capítulo 2, Politi aborda o tema do colapso de um poderoso. O tema desenvolvido no capítulo refere-se aos trâmites que levaram à condenação de Becciu Giovanni Angelo[6], com a interdição perpétua de seus ofícios públicos, em 2023. Além do caso Becciu, Politi aborda igualmente a posição crítica de Francisco frente ao núncio de Santo Domingo, Józef Wesolowski, em razão de denúncias de abuso contra menores (p. 32). É sobre o caso Becciu que Politi se estende mais, destrinchando todo o delicado processo que envolveu sua condenação, em razão dos escândalos financeiros em que esteve envolvido.
No capítulo 3, Politi aborda o tema da “limpeza” realizada no Vaticano, envolvendo o tema da missa em latim. É o momento onde o autor trabalha todos os desdobramentos da reação de Francisco ao moto proprio de Ratzinger sobre a missa em latim: Summorum Pontificum (2007). Nesse documento, Ratzinger cede aos nostálgicos do pré-concílio, e indica que o antigo missal romano nunca foi abrogado. A reação de Francisco veio com a Traditionis custodes (2021), onde defende com rigor a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II. Indica que somente os bispos podem autorizar as celebrações com base no missão romano de 1962 (p. 50-51). A decisão de Francisco foi um golpe duro nos tradicionalistas católicos, sobretudo na França e nos Estados Unidos, onde a tradição antiga é mais vivenciada (p. 52). Foram inúmeros “protestos” contra a decisão de Francisco, e que abalaram o seu itinerário pastoral. Dentre os críticos, enfileiraram-se vários cardeais como Robert Sarah, Raymundo Burke, Ludwig Muller e Walter Brandmuller (p. 53).
A severa restrição à missa em latim não foi o único posicionamento de Francisco que provocou reações críticas. Sua decisão de colocar em ordem os novos movimentos eclesiais também suscitou reservas. Isso ocorreu com a regulação do movimento Comunhão e Libertação, mas sobretudo com a Opus Dei. Segundo Politi, Francisco tinha consciência da vitalidade de tais movimentos, que em casos específicos, favoreceram um novo respiro eclesial, mas que em verdade acabaram fixando-se em si mesmos, transformando o catolicismo numa “conferência de tribos” (p. 62). Com respeito à Opus Dei, Francisco toma a decisão, em 2022, de destituir os privilégios conferidos até então ao organismo. Dentre os privilégios adquiridos pela Opus Dei, o mais delicado ocorreu em 1982, no pontificado de Wojtyla, quando a organização foi transformada em prelazia pessoal (p. 63). A Opus Dei, com todo o seu aparato financeiro, levava à frente um duvidoso projeto de reevangelização.
No capítulo 4, vem abordado o tema do enigma dos jovens. Com base num trabalho publicado pelo conhecido sociólogo Roberto Cipriani, em torno da “desafeição religiosa”, Politi revela dados preciosos envolvendo a “crise” na participação eclesial. Há uma nítida queda na frequência às missas dominicais em vários países do Ocidente, sobretudo na Europa: na França, a participação dominical caiu para 3 a 4%; na Alemanha para 5-6%, na Espanha para 10%. Na Itália, o alarme também vem soando forte: uma presença de 10% entre jovens de 16 a 34 anos e um pouco maior dos adultos até 44 anos. O que vem prevalecendo, também em outras partes do mundo, é o avanço da “religião do eu”, tecida pelos recursos de cada um em suas peregrinações particulares (p. 74). Sãos dados inquietantes para os bispos e também para a cúria romana, que demonstram a volatização da crença tradicional. Como sinaliza Politi, no tempo atual, “qualquer um encontra seu jeito particular de lidar com Deus sem necessidade de padres ou da igreja” (p. 75). A participação eclesial fica mesmo por conta dos ritos de passagem, exercida como uma “participação emotiva”. Como mostra Politi, são ventos impetuosos, de desertificação, que operam hoje no Ocidente (p. 79).
O tema das mulheres vem desenvolvido no capítulo 5 do livro. A análise de Politi parte de um episódio ocorrido numa liturgia eucarística, com a presença de uma mulher, Monika Schmid, concelebrando o ritual. A celebração, ocorrida em agosto de 2022, suscitou grande reação nas autoridades eclesiásticas. Monika foi convocada e advertida pelo bispo Joseph Marie Bonnemain, da Opus Dei. Foi proibida de realizar qualquer outro rito na mesma direção (p. 84). Politi lembra que a presença de mulheres em celebrações na Europa é um dado comum, e cita o caso da Suiça. Podemos também observar isso aqui no Brasil em tantas pequenas comunidades eclesiais. Enquanto vemos crescer a presença das mulheres no judaísmo, no islamismo, nas igrejas reformadas e no anglicanismo, a igreja católica continua exercendo o seu poder de resistência e veto contra tal cidadania eclesial. Segundo Politi, “o veto da igreja católica tornou-se agora socialmente e culturalmente insustentável” (p. 87). A barreira doutrinal veio firmada com rigor por Wojtyla com a carta apostólica Ordinatio sacerdotalis, de 1994. Na carta se diz claramente que a igreja não pode conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, e cessa qualquer outra discussão... (p. 88).
Com o pontificado de Bergoglio algo se fez na linha de um movimento em favor da cidadania das mulheres na igreja, mas ainda é tímido diante dos desafios que se levantam hoje. As mais fortes reivindicações em favor das mudanças acontecem a partir das bases, nas igrejas da América Latina e da África (p. 94). Segundo Politi, Francisco busca agir estrategicamente, mas seus passos ainda foram “de tartaruga”, privilegiando as “situações de fato” e “redesenhando a cúria romana” (p. 97). Conseguiu incluir algumas mulheres em postos importantes: Francesca Di Giovanni, na secretaria de estado; a irmã Alessandra Smerilli no dicastério para o desenvolvimento integral; a irmã Simona Brambilla, no dicastério dos institutos da vida consagrada e a irmã Nuria Calduch-Benages, no secretariado da Pontifícia Comissão Bíblica. No sínodos dos bispos, atuou também em papel de importância a irmã Nathalie Becquart, com direito a voto (p. 98). Mas ainda é bem árdua a tarefa de realização de uma presença mais substantiva das mulheres na vida da igreja, que permanece bem masculinizada.
No capítulo 6, Politi volta a falar sobre a cúria romana e o papel exercido por Francisco em lidar com questões delicadas como a da pedofilia na igreja. Cita o exemplo do empenho realizado pelo cardeal Reinhard Marx, na época presidente da Conferência Episcopal Alemã, na criação de uma comissão independente para tratar do tema dos abusos da igreja católica na Alemanha. Os resultados foram impactantes, para não dizer devastadores. Num arco de quase setenta anos, entre 1946 e 2014, os abusos de menores por parte do clero chegou a 3677 casos (p. 104).
Politi aborda também o trabalho realizado por assembleias sinodais de igrejas particulares, como na Alemanha, no empenho a favor de avançar no “aggiornamento” conciliar. Momentos difíceis acontecem, de ousadia eclesial em segmentos setoriais, que podem acionar dissidências que são delicadas e problemáticas (p. 108). O vaticanista assinala também o impacto causado pela declaração da Congregação para a Doutrina da Fé, em dezembro de 2023, que teve como título: Fiducia supplicans. O documento avança na reflexão, concedendo a possibilidade bênção aos chamados “casais irregulares” e os casais homossexuais (p. 118).
As resistências ao documento foram fortes e violentas, abalando os sentimentos tradicionalistas do episcopado católico (p. 121). Politi lembra ainda o papel exercido pelo teólogo argentino, Victor Manuel Fernandez, na redação de dois importantes documentos do pontificado de Francisco: a exortação apostólica Evangelii gaudium e a exortação pós-sinodal Amoris laetitia (p. 119). Essa última exortação abre um campo novo na reflexão sobre o exercício de comunhão para os casais divorciados e recasados.
No capítulo 7 de seu livro, Politi fala de temas delicados no pontificado de Francisco que apontam para limites no trato dos abusos sexuais. São abordados os casos do bispo Gustavo Óscar Zanchetta, considerado amigo de longa data de Bergoglio, e que foi nomeado bispo alguns meses depois de sua eleição para papa. Outro caso delicado está ligado ao processo movido contra o artista Marko Ivan Rupnik, animador do ateliê de arte espiritual do centro jesuíta Aletti. Foi outro episódio difícil que se deu durante o pontificado de Francisco. Para Politi, o caso Rupnik permanece ainda sob “névoa”. Ele veio excomungado em 2020, e depois readmitido pela igreja poucos meses depois. Em junho de 2023, Rupnik vem expulso da ordem dos Jesuítas. Outro caso abordado por Politi no capítulo é o do jesuíta alemão Hans Zollner, docente da Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Em gesto de protesto, ele se demite da comissão pela tutela dos menores, movido por indignação diante da ineficácia da mesma comissão. Na comissão estava também presente o cardeal Sean O´Malley.
No capítulo 8, cujo tema é “no olho do ciclone”, Politi trata da situação internacional que envolve o papa Francisco. Os tempos são difíceis em âmbito mundial. Francisco chega a falar em “terceira guerra mundial em pedaços”. O papa tem que lidar com questões delicadas como a da guerra envolvendo a Rússia e a Ucrânia. Nesta complexa questão, Francisco tem que buscar um discernimento preciso, que às vezes o coloca em posição de contraste com a NATO. A posição de Francisco vem expressa na Via Crucis, em 2022, quando coloca duas jovens mulheres levando a cruz, uma da Ucrânia e outra da Rússia. Foi uma decisão que gerou protestos (p. 156-157).
O tema do outono do pontificado de Francisco, e dos descontentamentos que acompanham sua atuação missionária, é tema do capítulo 9. Politi sublinha que o clima do Vaticano nesse período de outono não é dos mais tranquilos. A tendência em curso é marcada por silêncio, sobretudo diante do fato de um pontificado que se aproxima do fim. Os curiais ou bispos mais resistentes previnem-se de qualquer exposição pública.
As resistências contra Francisco acabaram surtindo efeito: o catecismo da igreja católica não sofreu mudanças, assim como o Código de direito canônico não foi revisto. Tudo ficou meio em suspenso, numa revolução incompleta. Em razão de resistências, a própria Congregação para a Doutrina da Fé só sofreu mudança em 2023, quando Francisco pôde escolher um nome de sua confiança. Na visão de Politi, a visão difundida no Vaticano era a de que a reforma da cúria, com a constituição Praedicate evangelium, de 2022, não produziu de forma efetiva uma “mudança de qualidade no governo” de Francisco (p. 181).
O caso Viganò foi também outro passo complicado vivido no pontificado de Francisco, quando críticas tremendas foram realizadas contra as mudanças promovidas por Francisco, e tudo de forma clara... O ex-núncio Viganò firma-se como uma voz cada vez mais agressiva, e chega mesmo a definir o papa Francisco como um herético, um tirano, um “servo de satanás” (p. 190). Em verdade, o que estava ocorrendo no seio da igreja católica, segundo Politi, era uma verdadeira “guerra civil” (p. 189).
No capítulo 10, que trata o tema, “qual papa, qual igreja”, Politi analisa a dinâmica particular que moveu Francisco em seu pontificado. Ele inaugura um jeito peculiar de presença junto ao povo, e também junto aos outros bispos, com quem convive amigavelmente na Casa Santa Marta. Já no outono de sua atuação no Vaticano, correm as vozes sobre sua possível renúncia ao cargo, motivada também pela fragilização de sua saúde. A situação da igreja universal é marcada por polarizações, como no caso da igreja católica nos Estados Unidos, que rema na contra-mão de Francisco. O cardeal Timothy Dolan exerce um papel importante nesse momento difícil, inclusive nas reflexões sobre um possível sucessor de Francisco. O cardeal Robert Prevost, também americano, é visto por Politi com alguém destinado a fazer ecoar sua voz. De certa forma, Politi conseguiu antever a força dessa presença (p. 199).
Ao final do capítulo, Politi menciona a reflexão do monge-teólogo Bianchi, que aponta três novos desafios para uma nova arquitetura eclesial: a existência de minorias tradicionalistas; as questões antropológicas relacionadas com a sexualidade, que divide o mundo dos crentes; e a questão da reforma do papado (p. 205-206).
Marco Politi retoma o tema dos lobos que estão sempre por perto, em sua ofensiva ultraconservadora. Ele cita o cardeal Rufini, sobre a resiliência de Francisco diante de tantas intempéries: “Não sei que outro papa poderia resistir a tantos ataques”. Num tempo de forte presença das redes, de comunicação acelerada, as mensagens agressivas correm com velocidade inesperadas. Sublinha Politi: “Hoje as mensagens agressivas do ex-núncio Viganò transitam de Nova Iorque à África e chegam no smartphone de um bispo latino-americano, assim como de uma mãe de família numa aldeia da Umbria” (p. 207). Não é apenas a voz do papa que alcança os extremos do mundo católico, mas igualmente as vozes de conservadores empedernidos.
Politi sublinha que os ultraconservadores já preparam há tempos a sua estratégia de ação (p. 207). É muito viva a presença dos conservadores na igreja católica no momento atual, com presença crescente entre os seminaristas e sacerdotes jovens, assim como na cúria romana. É como uma nuvem de descontentamento que avança sem cessar (p. 209). Tendo em vista o clima de “guerra fria” existente, é possível, diz Politi, que o próximo papa tenha a tarefa de “recuperar e restabelecer a verdade”, como apontou o memorando Demos, de 2024 (p. 209).
Em tempos difíceis na vida da igreja, acendem-se vozes que vêm do Sul, como diz Politi no capítulo 11 de seu livro. Francisco busca captar os ecos que buscam uma transformação no caminhar da igreja, visando uma estrutura eclesial menos monárquica e mais comunitária. Tais reverberações já se faziam sentir com a exortação apostólica Evangelii gaudium, de 2013. A Assembleia sinodal ordinária de 2023, tinha como moto a ideia de uma igreja sinodal, e desta vez tinha uma participação mais viva das mulheres, com direito a voto. Para os conservadores, o momento era de risco, e logo se apresentaram para reagir contra o que reconheciam como ameaça de erros e confusões (p. 213). Para Francisco, o sínodo era sobretudo uma experiência do Espírito. Era igualmente o espaço de realização de seus esforços em favor da transformação da igreja. No sínodo fizeram-se sentir as vozes do terceiro mundo, das igrejas da África, América Latina e Ásia. Estava em jogo a proposta do diaconato feminino. O documento final, mais moderado, não atendeu às expectativas mais vivas presentes na assembleia, mas reconheceu a importância da presença feminina em papeis decisivos na vida da igreja (p. 223). Na visão de Politi, o sínodo apontou dois sinais: a abertura para o debate do acesso às mulheres no ministério diaconal e a compreensão de igreja como “comunhão de igrejas”, com valorização singular das igrejas locais (p. 225).
Por fim, no capítulo 12, Politi reflete sobre a opção feita por Francisco em favor das igrejas das periferias do mundo. Ao recusar participar da reinauguração da igreja de Notre Dame em Paris, Francisco mostra que o seu caminho vai na linha das periferias do mundo, como já tinha demonstrado no início de seu pontificado, ao escolher como ponto de partida de sua missão a ilha de Lampeduza. As igrejas na Europa estavam vivendo momentos difíceis, de grande esvaziamento, como em tempos de “terra queimada”. O panorama político internacional não facilitava igualmente, com um ciclo de guerras ferozes e impiedosas, como as guerras na Ucrânia e em Gaza, e uma grande e maior ameaça estava no horizonte: de uma guerra mundial sem limites.
A avalanche da direita mostrava sua fisionomia populista de direita em países como a Holanda, França, Alemanha, Itália e Inglaterra. Na Argentina, vimos a vitória do extremismo anarco-capitalista de Javier Milei (p. 230). Foi nesse cenário que Francisco viveu o seu outono. Com sua saúde bem debilitada, Francisco ainda conseguiu mostrar forças para traçar o seu sonho de uma igreja fraterna e solidária.
Segundo Politi, Francisco continuou a brilhar, entre os polos de sua fragilidade e tenacidade, com o firme propósito de “lutar até o fim em favor de uma “fé inspirada na misericórdia e esperança” (p. 236). Francisco convidava a todos para uma celebração especial do Jubileu da esperança, ainda que numa igreja “lacerada, esgotada pela longa guerra civil interna, e de incerteza com respeito ao caminho a ser trilhado” (p. 237).
Como indicou Politi, os anos do pontificado de Francisco não foram férteis na irradiação de movimentos renovadores, seja na experiência dos fieis, seja na presença de teólogos e bispos de empenho público expressivo, como nos tempos do Concílio e do pós-Concílio. O panorama era nebuloso, com “bispos hesitantes, padres entrincheirados e fiéis incertos” (p. 238). A realidade da polarização acabou enfraquecendo a igreja, lembra o cardeal português, Tolentino de Mendonça.
O testamento final de Francisco foi testemunhado no texto da Via Crucis, no Coliseu, em abril de 2025. Francisco não estava presente, em razão de sua saúde debilitada, mas deixou uma mensagem preciosa, que pode ser reconhecida como seu testamento. Mais uma vez o papa recordou a todos da importância fundamental dos últimos, dos excluídos da história, daqueles que são invisíveis e sem voz. Lembrou em seu texto que diante de um mundo ferido, em pedaços, e também de uma igreja que aparece com “veste laceradas”, há que fazer brotar lágrimas sinceras que busquem uma profunda regeneração (p. 244).
Francisco ainda teve forças para concluir o seu pontificado na presença do povo, ali na Praça de São Pedro. Na bênção urbi et orbi, o que se ouviu de Francisco foi apenas um leve sopro, mas era o sinal vivo da presença do Espírito. Concluindo o seu livro, Politi lembra uma reflexão feita pelo teólogo de Praga, Tomás Halík, que imaginou como sucessor de Francisco um papa de nome Rafael, cujo significado em hebraico expressa de forma sublime uma boa nova para o nosso tempo: “Deus cura”.
[1] Marco Politi. La rivoluzione incompiuta. La chiesa dopo Francesco. Milão: Il Milimetro, 2025, p. 9. Todas as cirtaçõe no corpo do texto referem-se a este livro.
[2] Marco Politi. Francesco tra i lupi. Bari: Laterza, 2014, p. 176 e 188.
[3] Georg Ganswein. Nient´altro che la verità, p. 46, 48-49, 174-175.
[4] Gerhard Muller. In buona fede. Milano: Solferino, 2023, p. 11.
[5] Ibidem, p. 46.
[6] O cardeal Becciu ocupou vários cargos importantes no Vaticano: no serviço diplomático, na secretaria de estado. Foi também prefeito da Congregação para a Causa dos Santos.