02 Novembro 2022
É possível ser fiel e ao mesmo tempo lutar pelo direito à indefinição sexual: é o que diz Michela Murgia em seu último livro “God Save the Queer” (Einaudi Stile Libero, 152 páginas).
Nesse livro, a autora – analisando o Credo, a Trindade e algumas parábolas – propõe um “catecismo feminista” e define Jesus como uma “figura do limiar”, ou seja, uma figura queer.
O jornal La Republica, 29-10-2022, publicou um trecho da obra. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em 2017, o pop star Harry Styles, nascido em 1994, respondendo a uma pergunta direta sobre sua orientação sexual, disse que não sentia a necessidade de se rotular – “not labeling” – e que o próprio ato de pedir a alguém que se defina de maneira unívoca era algo superado, na opinião dela.
Ele não estava dizendo que, entre o homem e a mulher, ou o gay e o hétero, ele podia decidir ser um pouco de cada, dependendo do humor ao acordar. Mais a sério, ele queria dizer que usar certas categorias, ou seja, as do binarismo de gênero e de orientação, é algo obsoleto. Sua resposta não era uma resposta terceira à pergunta costumeira, mas sim a afirmação muito mais radical de que a pergunta não fazia mais sentido.
Eu não podia deixar de lhe dar razão, porque eu tinha visto a criatura limiar que era David Bowie vivendo toda a sua vida felinamente, entrando e saindo continuamente das fronteiras dos gêneros e das orientações. As palavras de Harry, aos 23 anos de idade – proferidas, aliás, a partir da posição privilegiada de quem, no mundo do espetáculo, pode transgredir o que lhe parece ser julgado demais –, não revolucionavam nada em mim, mas me agradavam: eram prova de que os resultados das lutas pelos direitos que eu também tinha travado haviam chegado a quem havia nascido depois, e eu esperava que o fato de ele não querer ser catalogado fosse tão libertador para as pessoas de sua geração quanto o jeito de Bowie de ser Bowie tinha sido para a minha.
Ao longo dos anos, vi Styles usar o aparato simbólico do genderless com grande desenvoltura, desde o fato de empunhar bandeiras do arco-íris até o fato de usar roupas e acessórios “femininos” em eventos públicos, até a célebre capa da Vogue America, na qual, primeiro homem a aparecer sozinho nela, ele posou com um vestido de babados da Gucci, que fez os comentaristas trumpianos espumarem de raiva, nostálgicos de um Estados Unidos feito de “homens fortes”, homens pioneiros e rudes caubóis.
Essa mobilidade simbólica, porém, tornou-o objeto de uma acalorada discussão também dentro do mundo arco-íris, onde, por um lado, há quem se compraza com sua recusa em ser inserido em uma caixa e, por outro, quem classifique essa relutância como um rainbow washing, um truque inteligente para agradar comercialmente a comunidade LGBTQIA+, mas sem nunca pagar o preço da discriminação que deriva do fato de pertencer a ela.
Na realidade, o que Harry Styles está fazendo ao evitar as categorias de homo, hetero e bissexual é uma prática queer. Quando Bowie fazia o mesmo, o ato não tinha nome, porque Eve K. Sedgwick ainda não tinha escrito o precioso livro “Private Rooms”, que lançaria as bases teóricas de um novo modo de olhar a identidade das pessoas, sexual ou não. É preciso ter cuidado ao nomear as coisas, porque elas mudam as condições da relação.
A recusa de ser definid* por dentro e por fora – que neste livro eu chamarei também de “prática do limiar” – hoje tem o nome de queerness, e a mera existência da palavra abre a possibilidade de que uma indefinição pessoal possa se tornar um fenômeno socializável, porque as coisas que têm um nome compartilhado já estão ao poder de tod*s: os conceitos de homossexualidade e bissexualidade são e continuam sendo categorias do binarismo heterossexual, até porque devem se afirmar em contraposição a ele.
A desconfiança em relação à queerness por parte da comunidade LGBTQIA+ que ainda tem a necessidade vital de se definir com categorias claras deve se somar à resistência muito mais radical das pessoas conservadoras. Estas, no dia da máxima abertura mental, poderiam até chegar a admitir que os homossexuais, as lésbicas e as pessoas em transição tenham direitos iguais, mas não poderão aceitar a existência da obscura categoria do queer, que é inclassificável, móvel, ontologicamente incerta, elusiva e, portanto, perigosamente fora de controle.
O problema está claro: como nos relacionamos socialmente com quem não têm uma forma que possa ser remetida às existentes? Como é possível normalizar quem rejeita o próprio conceito de norma? Tais perguntas são pistas de pesquisa sociológica, mas são também perguntas teológicas, pois – extraídas do contexto – são aplicáveis ao Deus cristão na sua acepção de ser “Totalmente Outro” em relação a nós.
Embora eu não simpatize com a teologia negativa – aquele filão que sustenta que só se pode dizer o que Deus não é –, acredito que a categoria teológica do Totalmente Outro (anteriormente agostiniana e, depois, parte do século XX) ainda pode ser útil na contemporaneidade para desmontar as tentativas de limitar Deus a uma única forma e a uma única definição.
Por isso, as páginas que se seguem se apresentam como uma reflexão sobre fé e feminismo abordadas a partir de uma perspectiva queer, ou seja, evitando se relacionar com Deus a partir de definições – pai/mãe ou masculino/feminino, mas também extensíveis a preto/branco, jovem/velho e outras dicotomias excludentes – que, para as pessoas, estão se revelando insuficientes ou ultrapassadas.
A queerness, como prática do limiar, é adequada para raciocinar sobre um Deus trino que, na Pessoa de Cristo, disse aos seus: “Eu sou a porta” (Jo 10,7-10). A partir dessa perspectiva de método, seria muito engraçado se eu, como feminista fiel, me apresentasse diante de Deus com perguntas que até Harry Styles já se recusa a responder.
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Apontamentos para uma teologia queer. Artigo de Michela Murgia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU