Lula não é mais que um Biden brasileiro. Artigo de Bruno Cava

O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva e o vice-presidente eleito Geraldo Alckmin. Foto: Ricardo Stuckert

31 Outubro 2022

“A saída para a profunda crise em que o Brasil mergulhou na última década poderia ser um New Deal brasileiro que impulsione as tão necessárias mudanças estruturais no direito do trabalho e no mercado, apoie o papel criativo das minorias e abrace a centralidade da agenda política ambiental global, algo que Lula parece estar longe de ser capaz de liderar, já que escândalos de corrupção e retórica populista desgastada quebraram seu feitiço. Mas sua eleição pode pelo menos oferecer uma oportunidade de buscar a reconciliação e reconstruir pontes entre segmentos polarizados da sociedade. Seu retorno pode abrir caminho para a construção de alternativas políticas muito necessárias”, escreve Bruno Cava, graduado em Engenharia pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica – ITA e em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, pela qual também é mestre em Filosofia do Direito, em artigo publicado por Al Jazeera, 30-10-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis o artigo.

 

O tema do “retorno” dominou a campanha eleitoral presidencial no Brasil. Muitos pensam que o país vai ver o retorno de Luiz Inácio Lula da Silva, marcando uma segunda onda rosa de governos sul-americanos progressistas e o retorno do Partido dos Trabalhadores (PT), afastado do poder após o impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016.

Ou enfrentará a tomada do governo por forças associadas à ditadura militar (1964-1985) – defensores de direita da família, tradição e propriedade e apologistas da violência política e tortura de opositores políticos.

Pode haver um elemento de verdade nessa interpretação, mas às vezes recorrer ao passado para dar sentido ao presente pode tornar mais difícil discernir as principais diferenças entre eles. De fato, com a vitória de Lula na corrida presidencial, o Brasil não voltaria aos anos 2000; tampouco a tomada militar liderada por seu oponente, o presidente em exercício Jair Bolsonaro, voltaria ao que se propõe.

 

O voto: os pobres contra os mais pobres

 

Enquanto muitos viram os resultados das eleições de 2 de outubro como uma clara vitória de Lula e da esquerda brasileira, um olhar mais atento revela uma realidade diferente. Lula obteve 57 milhões ou 48% dos votos válidos – menos do que muitas pesquisas previam – o que o levou a um segundo turno com Bolsonaro.

O presidente em exercício obteve 51 milhões de votos, dois milhões a mais do que no primeiro turno das eleições presidenciais de 2018. Isso apesar de seu governo ter falhado em suas políticas econômicas, na gestão da pandemia, no combate à corrupção e na agenda de mudanças climáticas, especialmente no que diz respeito à contenção do desmatamento na Amazônia.

Nas eleições parlamentares e para governador, que também aconteceram em 2 de outubro, os partidos de direita e, em particular, a extrema-direita, tiveram um desempenho muito melhor do que as previsões apontavam. Conquistaram mais representantes nas duas casas do parlamento do que o PT e seus aliados.

Entre os eleitos para o parlamento estavam o ex-juiz Sérgio Moro, que liderou a investigação anticorrupção que levou Lula à prisão; Damares Alves, a maior defensora da teoria da conspiração da “ideologia de gênero”, que afirma que os valores da família estão ameaçados; e o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, que administrou mal a resposta à pandemia. Todos foram ministros do governo Bolsonaro.

As eleições não viram uma migração massiva de votos dos pobres para Lula e seu partido, como era esperado à luz das políticas a favor pobres em seus dois primeiros mandatos (2003-2010). Nesse período, o país experimentou um crescimento econômico extraordinário combinado com medidas bem-sucedidas de distribuição de renda, que geraram apoio maciço de brasileiros empobrecidos a Lula em sua candidatura à reeleição em 2006. Ele terminou seu segundo mandato com 80% de popularidade e um PIB crescimento de 7,5%.

Parte do motivo pelo qual Lula não conseguiu reunir todo o seu ex-eleitorado pode ser que os programas de auxílio de renda para famílias desfavorecidas introduzidos por Bolsonaro para enfrentar a crise econômica durante a pandemia foram estendidos.

Segundo Giuseppe Cocco, professor de ciência política da Universidade Federal do Rio de Janeiro, outro motivo pode ser que o efeito do antibolsonarismo tenha sido até certo ponto mitigado pelo antilulismo – o sentimento negativo desencadeado pelos casos de corrupção contra Lula e o PT que contribuíram para levar Bolsonaro ao poder em primeiro lugar.

Além disso, a pesquisa de Cocco mostra que Bolsonaro atraiu mais votos dos “precariados” do que Lula – isso é, dos brasileiros que estão acima da linha da pobreza, mas, mesmo assim, enfrentam constante insegurança econômica. São pessoas que são microempreendedores, que estão em relações de trabalho uberizadas (gig economy), pequenas empresas ou são autônomos. Eles lutam economicamente e buscam a estabilidade que a extrema-direita promete.

As tendências de direita dessa camada da sociedade brasileira ficaram aparentes antes das eleições de 2018, quando ocorreu uma greve de caminhoneiros. O protesto começou devido a um aumento dos preços dos combustíveis, mas terminou com pedidos de alguns participantes por intervenção militar para “resolver os problemas” do Estado. Bolsonaro apoiou a greve, que aumentou sua popularidade antes da votação.

Lula, por outro lado, recebe apoio das camadas mais pobres, aquelas que estão no limiar da subsistência. Eles foram os beneficiários de seu programa social de assinatura, o Bolsa Família, que distribuiu transferências condicionais de renda.

A linha entre os dois grupos é tênue, mas a tensão entre eles sobre renda e oportunidade econômica parece fornecer uma explicação melhor dos resultados eleitorais do que uma análise mais simplista que pinta Lula candidato dos pobres e Bolsonaro das elites e dos ricos.

 

Um Biden brasileiro

 

A retórica de campanha adotada por Lula também foi bem diferente das eleições anteriores. Diferentemente do passado, quando se confrontou abertamente com as elites, desta vez o petista se apresentou como candidato do sistema, como um “Biden brasileiro”, por assim dizer, pondo fim a um interlúdio trumpista.

Ele reuniu uma frente extraordinariamente ampla, que incluiu quase toda a oposição de esquerda, mas também os principais representantes do poder econômico de diversos setores, socialdemocratas, liberais-conservadores, a ambientalista de esquerda Marina Silva, e ex-presidentes e ex-ministros, como o liberal socialdemocrata Fernando Henrique Cardoso, e outros.

Sua campanha também não foi dominada por mobilização de rua ou facciosismo acentuado. Ao contrário, havia orientações explícitas aos apoiadores para não confrontar os eleitores do outro candidato, e até mesmo para menosprezar a tradicional cor vermelha do PT em eventos de campanha.

Embora sua coalizão tenha elaborado um programa político de esquerda, Lula o ignorou nos debates, evitou-o em discursos aos eleitores e à mídia, e ressaltou em várias ocasiões que não assumiria posições divisivas, principalmente quando se trata de seus planos para a economia. Ao longo da campanha, ele construiu uma imagem de promotor da paz, indicando a necessidade de resolver os conflitos que se multiplicam nos e entre os diferentes segmentos sociais.

Bolsonaro e as forças bolsonaristas, por outro lado, ocuparam plenamente o espaço político antissistêmico. O titular passou a campanha eleitoral fazendo ataques verbais contra a mídia corporativa – especialmente contra a maior rede de TV, a Globo – o Supremo Tribunal Federal e universidades.

Em um país que tradicionalmente vive intimidações, chantagens e assassinatos de opositores eleitorais nas periferias urbanas e no interior, a retórica de Bolsonaro coloca o Brasil em risco de violência generalizada com motivação política. Vários assassinatos foram atribuídos a brigas entre simpatizantes dos dois candidatos, e um vídeo de um apoiador de Bolsonaro lambendo o cano de uma espingarda se tornou viral.

 

Diminuição do apetite por um golpe

 

Apesar do incitamento de Bolsonaro e do aumento do medo de violência, é improvável que uma vitória de Lula no segundo turno seja contestada pelos militares. Até a perspectiva de uma invasão do prédio do Congresso em Brasília – como a que aconteceu em janeiro de 2021 nos EUA – parece menos provável.

Os principais generais do Exército deram sinais claros de que quem vencer nas urnas assumirá a presidência. Além disso, potências estrangeiras, como o governo Biden, indicaram que não apoiariam empreendimentos antidemocráticos.

Bolsonaro tem sido ambíguo ao aceitar os resultados. No entanto, o fato de partidos de direita e políticos de extrema-direita terem conquistado a maioria dos assentos no parlamento diminuiu o apetite por conversas golpistas.

Independente do resultado da eleição, a luta pela garantia dos direitos das minorias, melhoria dos serviços públicos, ampliação dos programas sociais, proteção do meio ambiente e adoção de um paradigma de segurança que não seja pautado pela violência estatal contra populações carentes continuará difícil. Uma vitória de Bolsonaro, o que é bastante improvável, consolidaria a tomada do Estado pela extrema direita, levando a mais políticas destinadas a desmantelar os serviços públicos, destruir o meio ambiente e sabotar sistematicamente as proteções das minorias e as instituições acadêmicas.

Uma vitória de Lula, que parece mais provável, também representaria grandes desafios. Dado o domínio da direita no parlamento, seria difícil promover políticas progressistas. Movimentos sociais, coletivos e ativistas teriam que se concentrar na defesa do governo, o que tiraria energia e recursos das lutas em curso, como aconteceu durante o processo de impeachment de Dilma em 2016. O PT e seus apoiadores enfrentariam uma oposição radicalizada e armada no terreno, comprometida com a defesa do “verdadeiro cristianismo”, dos “valores da família” e dos papéis tradicionais de gênero. Nesse contexto, uma vitória de Lula não significa uma volta ao “Brasil feliz” dos anos 2000, como sugeria sua campanha.

A saída para a profunda crise em que o Brasil mergulhou na última década poderia ser um New Deal brasileiro que impulsione as tão necessárias mudanças estruturais no direito do trabalho e no mercado, apoie o papel criativo das minorias e abrace a centralidade da agenda política ambiental global, algo que Lula parece estar longe de ser capaz de liderar, já que escândalos de corrupção e retórica populista desgastada quebraram seu feitiço.

Mas sua eleição pode pelo menos oferecer uma oportunidade de buscar a reconciliação e reconstruir pontes entre segmentos polarizados da sociedade. Seu retorno pode abrir caminho para a construção de alternativas políticas muito necessárias.

 

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