05 Mai 2021
Pessimista sobre a política mundial, o avanço do vírus e o de uma sociedade cada vez mais controlada, Gianni Vattimo, o intelectual que teorizou com maior profundidade os ecos das ideias de Nietzsche e Heidegger no mundo contemporâneo, aponta o “façam barulho” de Francisco como uma forma de rebeldia possível.
Ex-deputado europeu, define-se como “comunista hermenêutico”, uma posição distante tanto do stalinismo, como do governo chinês. Um dos intelectuais essenciais de nosso tempo se define como pessimista, mesmo antes da pandemia.
A entrevista é de Jorge Fontevecchia, publicada por Perfil, 01-05-2021. A tradução é do Cepat.
Nas últimas entrevistas, ainda nas que concedeu em 2019, você se mostrava pessimista. Disse naquele ano: “Espero morrer antes que arrebente tudo”. Tinha alguma intuição sobre a distopia que se aproximava?
Era pessimista antes, na realidade. Mas, em relação à pergunta, continuo tendo o sonho de não morrer primeiro. Não desejo morrer antes que o mundo acabe. A situação já era complexa. Não só em relação ao econômico. Havia muitas outras coisas. A verdade é que não acredito em progresso. Tendemos a uma sociedade controlada, hiperorganizada no tocante às relações de poder, e dominada por poucos.
Não gosto de pensar assim, me desagrada. Talvez sou pessimista também porque sou velho. Talvez os jovens encontrem a maneira de lutar para um mundo melhor para eles mesmos. Mas, nesta situação, e mesmo anteriormente, sim, sou pessimista.
Há um pessimismo vinculado à velhice? O passar do tempo, da própria vida, leva ao pessimismo?
Não acredito que produza isso, não é necessariamente assim. Para explicar, diria que sou pessimista porque muitos aspectos do mundo contemporâneo me parecem difíceis de aceitar. Mas admito que este pessimismo aumenta quando alguém vai envelhecendo, quando o espelho devolve a você essa imagem. É aí que também se espera que as novas gerações sejam diferentes. Mas a velhice não necessariamente implica pessimismo. Nesta situação, ser velho é particularmente difícil.
O ‘Nietzsche’ de Martin Heidegger, livro que marcou você, começa com uma citação do “Anticristo”. É a seguinte: “Quase dois milênios e nenhum deus novo!”. O coronavírus pode inaugurar uma nova forma de religiosidade? A distância social e o uso de máscaras são novos ritos?
Aquilo que Friedrich Nietzsche dizia sobre um novo deus, em minha opinião, foi parte do Nietzsche que debatia com a filosofia precedente, do Nietzsche do niilismo. É uma avaliação que tem a ver com o que acontecia em seu tempo. Em relação à pandemia, é verdade que pode representar, em algum sentido, uma oportunidade. A geração de uma necessidade de renovação.
Efetivamente, sabemos que estamos enfrentando um limite. Há turbulência social, porque há pessoas que não suportam o isolamento, nem a disciplina. Se se pensa nisto em comparação com outras regiões do mundo, como por exemplo África, onde faltam vacinas, entre outras coisas, há uma situação com muito de apocalíptico. E isso é também, de alguma maneira, verdadeiro. O tema de como apresentar alternativas resulta, de algum modo, um novo desafio dos tempos atuais. Infelizmente, sentimos que ainda resta muito a fazer.
Você disse que “com o aumento do controle coletivo se manifesta a necessidade de outro tipo de organização social, diferente em termos de ajuda recíproca e amor fraterno”. A ideia de “controle coletivo” pode ser relacionada ao que foi expressado por Giorgio Agamben e Slavoj Žižek?
Compreendo que estamos diante de um problema que é particularmente grave. Mas há certa forma coletiva de controle que é benigna neste momento. Penso que é necessário voltar a uma expressão social utilizada pelo Papa Francisco, que é “façam barulho”, a busca de certa desordem que seja estimulante.
Nesta situação, não se tem um projeto estável de ativismo político. Quase não existem formas de se opor a esse controle. Talvez a maneira mais concreta é por meio desse fazer barulho. Com isso, estaríamos estabelecendo algum limite ao controle coletivo, ainda que seja difuso.
Que reflexão faz a respeito do aumento da desigualdade que ocorreu em 2020 e que os megamilionários do mundo tenham aumentado sua fortuna mais do que qualquer outro ano?
É uma demonstração do capitalismo extremo. Um sistema que se desenvolveu em uma ordem econômica mundial que aumenta a riqueza de poucos e aumenta a pobreza de muitas pessoas. Karl Marx pensou que estas condições eram as que poderiam gerar um movimento revolucionário, uma situação prévia à transformação. Mas a experiência histórica demonstra que isso não foi o que aconteceu.
Aqui, há um ponto para refletir sobre as subjetividades coletivas. Pensar na razão pela qual o elástico da desigualdade pode ser esticado sem se romper. E isto é algo para pensar, sobre o qual há pouco a dizer, mesmo que seja difícil de compreender. Pode ser remediado com uma sociedade com nova visão sobre o religioso, sobre as religiões.
Não se trata apenas de olhar o que o cristianismo propõe, mas muitas religiões do mundo. É um ponto em que o Papa marcou sua posição, convidou a dar um novo lugar ao religioso, a partir do cristianismo. Não se trata apenas da morte de certa forma de religiosidade. É algo muito diferente de abraçar a religião em um sentido clássico. Como eu disse em alguma outra entrevista: só Deus pode nos salvar, alcançado este ponto.
No ano passado, você disse que “a única coisa que me interessaria, agora, seria escrever um livro sobre o cristianismo pós-metafísico, mas é mais complicado do eu que pensava”. Como seria esse cristianismo pós-metafísico?
Por exemplo, o pós-metafísico se refere a não ser um cristianismo baseado em estruturas necessárias. Por exemplo, quando se fala de moral, normalmente o cristianismo se refere a uma moral natural. Dessa maneira, o ser humano não poderia escolher ser homossexual. Porque, efetivamente, existem muitos mandatos e todo um discurso em torno disso. Mas existe a possibilidade de se enfrentar a própria morte porque se sofre muito. E isso vai além de qualquer lei natural.
Há uma visão sobre a vida que pode ser alcançada em certo ponto, sem pensar, por assim dizer, no que acontecerá em um futuro próximo. O cristianismo pós-metafísico pode ser definido como uma religião, um cristianismo fundado na palavra, que é respeitoso ao que é dito no Novo Testamento e não impõe um limite atrelado a estruturas metafísicas. E, aqui, cai um obstáculo do cristianismo.
Romper com questões como, por exemplo, a que os homossexuais não podem comungar. Por que não podem? Por uma espécie de mandato natural. Porque há uma prescrição sobre diversas questões. O discurso do cristianismo pós-metafísico rompe o aspecto dogmático e se estabelece sobre o princípio da caridade em relação à verdade. Não se trata de estruturas fixas. Trata-se de pensar que existe a caridade, que é o que conta como a base de uma moral.
A caridade é o que conta no vínculo com os outros. Mais do que uma moral absoluta, trata-se do amor ao próximo, do respeito a quem está próximo. Estes são momentos em que se produz um incidente particular. E, aqui, cresce a figura de Francisco. Porque, na minha opinião, o Papa fundamentalmente pensa assim. Acredito que há alguma semelhança com o seu pensamento.
Você disse: “Morrer é muito pesaroso pelo gato (que vemos que o acompanha, mesmo no momento desta reportagem) e por algum amigo. Mas não tenho uma grande imagem da morte”. Segue atual aquela ideia de que filosofar é “preparar-se para a morte”?
É uma ideia que bebe da antiguidade mais remota da filosofia. Acredito que se preparar para a morte, por exemplo no caso de Martin Heidegger, pensar na morte, significa assumir a própria historicidade como ela é. Pensar antecipadamente a própria morte não significa um convite a se suicidar, de forma alguma.
Trata-se de observar a própria vida relacionada à historicidade. A abertura para compreender o hoje, de acordo com a ideia de que é preciso vivê-lo pensando na finitude. Viver cada dia em função desta compreensão e compreender cada momento no sentido de uma continuidade. Estabelecer uma compreensão disso para, por sua vez, estabelecer uma relação com o resto das ideias.
Martin Heidegger também falou muito sobre a morte. Você disse que “falava disso pensando em não morrer... Todo o seu discurso se resume na ideia de que devemos assumir responsavelmente nosso lugar na história”. Qual seria a principal responsabilidade de um pensador no século XXI?
A grande responsabilidade do século XXI é compreender justamente o que significa pensar neste momento, neste século. Impõe-nos uma defesa da ideia de um humanismo, defender a relação humana direta, perceber a emoção em relação ao próximo. Não se trata de participar de uma escola, mas de uma defesa do humanismo, de uma cultura. Em minha opinião, esta é uma das responsabilidades que temos. Não perder de vista. Ter uma visão não só em relação à morte. Compreender a vida como valor, como proximidade. A responsabilidade é com o humano.
Na introdução do citado livro sobre Nietzsche, Heidegger se pergunta o seguinte: “Mas então Nietzsche não é tão moderno quanto parece pelo barulho que o cerca? Então, Nietzsche não é tão revolucionário como ele mesmo sinaliza ser?”. Como responde a essa pergunta?
O próprio Friedrich Nietzsche falava da destruição de todos os valores. Certamente, não pensava sobre algumas destas questões. De qualquer modo, havia uma reflexão sobre aquilo que havia herdado, sobre o pensamento anterior. Desse ponto de vista, certamente, tinha uma relação com o passado. E dessa relação, o passado podia ser repensado a partir dessa visão. Talvez não fosse tão revolucionário, sim. Mas concebeu uma forma de compreender inovadora.
Em uma entrevista ao “La Vanguardia”, você disse que pensava em um comunismo fraco, não dogmático. “Sem essências ou absolutos a se empreender a todo custo. Trata-se apenas de um ideal de sociedade equitativa, uma sociedade que enfraqueça progressivamente a violência como dialética”. E mencionou como exemplos “o Brasil de Lula, a Bolívia de Morales e a Argentina de Kirchner”. O que o populismo latino-americano ensinou à esquerda do resto do mundo, e em especial à europeia?
Para mim, a salvação da esquerda vem do sul. Trata-se de um modelo de conquistas sociais que pode ser imitado. Inclusive, aquilo que os povos latinos ensinam é algo que pode acontecer também na pós-modernidade. Se diz que o socialismo latino-americano não funcionou, mas os Estados Unidos funcionam? Quanta responsabilidade tem o externo pelo fracasso dos socialismos latino-americanos?
De certa forma, considero-me menos comunista no sentido soviético. Mas, sim, falo de um progresso econômico e científico em um contexto controlado e dentro da democracia. O comunismo soviético foi muito dogmático. Foi criado por Vladimir Lenin, mas sobretudo por Josef Stalin, pensado em um contexto bélico. Foi um comunismo de guerra, era um comunismo de violência. O comunismo hermenêutico é um comunismo que abandona o dogma hegeliano sobre a necessidade. O que busca é uma sociedade que poderia se enquadrar dentro do que chamaríamos de um comunismo cristão, para além de minha origem.
O comunismo latino-americano esteve condicionado por muitíssimos fatores. Hugo Chávez contou com o petróleo, ao passo que outros países não o tiveram. Houve condições internacionais que levaram a esta situação econômica difícil e complicada, especialmente na Venezuela e talvez também na Argentina. Situação diferente era a da Argentina no momento em que era um poderoso exportador de carne, especialmente nos momentos posteriores à guerra. Mas tanto um como outros sofreram condicionamentos internacionais que pressionaram o socialismo latino-americano o suficiente para pensar que fracassou em seu desenvolvimento histórico.
Fala-se muito do fracasso do socialismo real, da ex-União Soviética e da China de Mao Tsé-Tung. Você disse a respeito do comunismo hermenêutico: “Acredito que para o futuro é o único programa político possível, porque o desenvolvimento tecnológico e científico não é dirigido pela vontade popular e democrática”. A irrupção do significante “comunismo” no pensamento dos últimos anos pode ser uma forma de buscar novas respostas?
É o que espero. Mas se observa o mundo atual, durante a pandemia, a globalização, a interdependência. Tudo isto pode sobreviver. Mas através de um modo de compreensão comunista, de uma existência vital comunista. Se não é o modelo de livre mercado ou o modelo de crescimento indefinido que nos salvarão, é um modelo de tipo socialista, não qual as pretensões de alguns são limitadas em favor do conjunto, de todos. Como acontecerá, não posso afirmar. Mas tenho esperanças de que realmente aconteça.
No livro ‘De Heidegger a Marx’, escreveu que “Carl Schmitt compreendeu “o liberalismo como um sistema metafísico consistente e abrangente”, e Heidegger o viu como outro produto, junto ao fascismo, o capitalismo e o comunismo, da metafísica subjetivista”. Existe uma ontologia liberal e outra comunista?
A ontologia liberal é aquela que se funda a partir de Adam Smith. Funda-se em uma busca de um equilíbrio. Isto funcionou, historicamente, sobre a base na qual alguns estavam. A ontologia liberal é a do livre mercado e a concorrência. Eu não acredito nisso. Minha ideia é que certa forma de comunismo é uma opção.
Há uma inclinação mundial para o centro? A social-democracia se transforma na terceira via, o liberalismo em neoliberalismo e o comunismo em comunismo hermenêutico. A ideia de revolução se torna mais frágil e difícil?
Seria necessário pensar se isto acontece automaticamente ou provém de uma decisão. O comunismo hermenêutico não é fruto da secularização de um sistema político. O mesmo é possível pensar em relação a como o liberalismo se torna mais liberal. Há questões que não explicam mais como a história se dirige, como a luta de classes, por exemplo. A situação atual do mundo pode ser caracterizada como um aumento do domínio do homem sobre o homem, que pode ser contraposto por certa forma de comunismo, como forma de resistência popular a tal tipo de domínio. Tenho esperança de que existe certa forma de resistência das classes trabalhadoras.
Você escreveu: “A promessa comunista de uma sociedade ‘sem classes’ precisa ser interpretada como ‘sem domínio’, ou seja, mais uma vez, sem a imposição de uma verdade única e uma ortodoxia obrigatória”. Na verdade, esse comunismo hermenêutico desejável não tem certa semelhança com a política dos países nórdicos?
Não conheço muito sobre o que acontece nos países nórdicos. Tanto na Espanha como na Itália, nos países do sul, existe certa mitologia a respeito de como se vive nos países nórdicos, como se fossem um exemplo. Não estou certo de que seja totalmente assim. Parece-me exagero, em algum sentido.
Cada país tem a sua particularidade. Por exemplo, na questão das vacinas. Ainda não me vacinei, estou esperando minha vez. E é um assunto que, ao analisar, aparecem os níveis de igualdade e desigualdade que podem ser encontrados no mundo.
Que reflexão cabe quando países como o Canadá compraram vacinas em uma quantidade que é cinco vezes a de sua população e muitos países africanos têm pouquíssimas doses? O mesmo acontece com você, que ainda não foi vacinado porque não há doses suficientes para todos na Europa.
É o mercado. Por exemplo, porque as licenças das vacinas não foram liberadas? Seguem nas mãos das empresas farmacêuticas. Poderiam ter sido liberadas, mas as farmacêuticas fizeram o que era possível para que isso não ocorresse. Procederam do mesmo modo em todos os países: na Índia, na África. Em muitas nações.
Você escreveu que “Paul Krugman criticou a crença dos economistas em uma verdade absoluta, responsável pela crise atual do capitalismo, ou seja, a crença dos economistas em um âmbito no qual ‘o mundo todo é racional e os mercados trabalham perfeitamente’”. É uma ingenuidade do capitalismo acreditar que a economia é uma ciência exata?
Não é uma ciência exata. Busca estabelecer uma ordem de argumentação para explicar o mundo. É claro que os economistas podem fazer muito. Sobretudo, para compreender as contradições que o capitalismo produz, bem como para racionalizar a explicação do sistema. Mas de modo algum acredito que a economia seja uma ciência exata. Precisa de uma fundamentação histórica, mesmo quando se esteja de um lado ou de outro.
Em ‘Alrededores del ser’, escreveu: “Devemos lembrar, aqui, um verso de Hölderlin que Heidegger frequentemente cita: ‘Onde cresce o perigo, cresce também a salvação’”. A posição de Heidegger sobre a questão da ética e o niilismo explica suas posições políticas e ideológicas? É possível pensar na salvação em tempos de coronavírus?
O verso de Friedrich Hölderlin citado por Heidegger expressa que há uma esperança quando irrompe uma nova dialética. Talvez aí esteja a chave de nossa esperança.
No mesmo livro que você se refere à hermenêutica da indignação, escreve: “A própria ideia de revolução em um país ‘ocidental’, ou seja, em um de nossos países industrializados – precisamente os que conhecem a atual crise econômica –, tornou-se impensável. Imaginem os franceses do século XVIII que mataram o seu rei! Se fizessem isso hoje, a OTAN, a União Europeia, a ONU e o Fundo Monetário Internacional se lançariam para restaurar a ordem (ou, como na Líbia, para proteger com bombas os cidadãos contra a violência)”. O que diferencia o capitalismo do século XXI da Paris do ‘O 18 de brumário de Luís Bonaparte’, o célebre texto de Karl Marx?
Efetivamente, hoje, uma revolução em nível mundial não parece possível. Pode haver revoluções parciais em alguns lugares, como os processos que descrevíamos em certas regiões da América Latina. Mas quanto mais aumenta a integração internacional e se consolida certa forma de poder, é menos imaginável uma revolução internacional. Por isso, considero que existe uma esperança naquilo de “fazer barulho”.
Não é criar uma desordem absoluta de modo tal que seja impossível viver, mas, sim, manter uma situação efervescente, uma situação de manifestar o descontentamento geral, de contínua expressão dos setores populares. Parece-me que não é impossível. Há um elemento interessante na diversidade das organizações de base. Hoje, em plena situação de pandemia, são as pequenas revoltas que podem funcionar como uma forma válida de protesto. Tenho esperança neste sentido.
Em ‘Alrededores del ser’, um dos artigos menciona a ideia de Martha Nussbaum sobre o vínculo entre amor e justiça. Nussbaum é influenciada pelas ideias liberais de John Rawls sobre o tema. O liberalismo de Rawls perde de vista os aspectos “demasiado humanos” em seu racionalismo extremo?
Parece-me que Nussbaum tem razão em que uma sociedade justa não pode se sustentar no sentimento. Caso contrário, ninguém terá a sensação de viver em uma sociedade justa. O amor não pode ser objeto das leis. É preciso uma série de estruturas acompanhantes, que tornarão possíveis as relações humanas diretas, pessoais.
À luz dos ensinamentos de Friedrich Nietzsche e Martin Heidegger, que diferença há entre racionalidade e inteligência?
Como diz a própria palavra, a racionalidade tem relação com a razão, a medida, a proporção. A inteligência, ao contrário, é uma forma de empatia. Então, cabe dizer que é possível raciocinar com inteligência. Um homem inteligente age com racionalidade.
Um dos textos de seu livro se chama ‘Que (diabos) é o Iluminismo?’. Há algo diabólico nas políticas liberais? A razão é diabólica? É possível acreditar mais na existência do diabo do que na de Deus?
Alguém disse que o mundo foi criado pelo diabo, que a tarefa de Deus é a de limitar o dano. Somado tudo isso, este mundo, o mundo do capitalismo, o mundo da racionalidade, em sua própria mecânica, tem um pouco de diabólico. A inteligência é, em algum sentido, a participação de Deus em todo o processo. Porque, enfim, é melhor amar do que fazer o mal. Em definitivo, sempre é melhor ser amado que odiado.
A sociedade também não poderia funcionar se apenas se valesse da racionalidade pura ou do mero cálculo. Recorre-se à justiça como algo excepcional. Mas, na realidade, não se ama por justiça, mas por amor. A justiça é o que em algum sentido engloba, imprime. Penso que, aqui, aquela distinção entre inteligência e racionalidade também aparece em um sentido profundo.
Outra expressão sua foi: “Sempre digo que se eu não fosse cristão, não seria comunista. Se não fosse homossexual, não seria cristão”. Como viveu as últimas declarações de Francisco em relação à união civil das pessoas homossexuais?
Penso que não se pode pedir muito ao Papa. Francisco se referiu à homossexualidade quando em uma viagem foi questionado a respeito de duas pessoas, um homem e outro homem, uma mulher e outra mulher, que são amantes, qual seria sua opinião. E a resposta foi que era Deus quem poderia julgá-los. Não ele. Não Francisco. Não era ele. Não acredito que o Papa esteja em condições de produzir um escândalo na Igreja.
Se pode ser homossexual, mas o que realmente importa é que duas pessoas se amem. Quando o Papa escreveu a Declaração de Abu Dhabi, disse que não é necessário que as pessoas se convertam. Não é necessário convertê-las, mas levá-las ao espírito da religião. O que o Papa disse é preciso ser compreendido dentro da história da Igreja. E a partir daí, sua perspectiva abriu novas alternativas. Propõe visões novas, que têm a ver com os que estiveram antes. A partir daí, compreender o que ele propõe.
Também afirmou que é “determinante libertar a Igreja de dogmatismos, de uma moral obsoleta e preceitos rígidos sobre a mulher, a família e o sexo”. E acrescentou que “a Igreja sempre foi amiga dos governos”, é reacionária por natureza e responde aos poderes constituídos, “apesar de Francisco parecer determinado a não respeitá-los”. Se diz que o Papa é progressista no nível social e conservador no moral. É possível conciliar os dois níveis?
Não sei se realmente é tão conservador no social [obs. no texto original está conservador no social, mas, provavelmente, seguindo a lógica da pergunta, a expressão correta pode ser que seja conservador no moral, ou seja, no nível moral]. Não estou convencido. É verdade que há uma mensagem sobre não destruir a família.
Penso que muitos dogmatismos vão morrendo. O cristianismo tem uma história por trás. E o que estamos percebendo é uma secularização da fé. E, por exemplo, que a ideia de caridade, de amor ao próximo, é um conceito que vai crescendo.
O Papa não fala mais tanto do inferno. E há questões que têm a ver com as mudanças, especialmente com a ideia de sexualidade e de família. A família é uma ideia importante. As pessoas homossexuais também a desejam. Também é essencial que compreendamos que é um processo que ainda está ocorrendo, que está acontecendo.
Você escreveu: “A crítica mais frequente que se dirige ao Papa Francisco, vinda da direita e os conservadores, inclusive dentro da Igreja, é que é comunista. É preciso levar isso a sério, os conservadores são, em geral, muito realistas, percebem com exatidão tudo aquilo que coloca em perigo seu poder”. E acrescentou: “Se hoje pensamos na possibilidade de uma Internacional Comunista, a única direção para a qual podemos olhar é para a Igreja Católica do Papa Francisco”. Quem seriam os afiliados e adeptos dessa Internacional Comunista? Quem seriam os quadros e seus adeptos?
Não sei. A pregação de Francisco claramente é deste gênero. O Papa certamente é um comunista de outra maneira, de modo algum é um stalinista. Mas, sem dúvidas, a ética cristã tem muito disso. A ideia de comunidade nos faz pensar em um caráter comunista. Sua ideia sobre o papel do trabalho no humano também expõe uma perspectiva sobre o que é o capitalismo.
Qual é a sua visão sobre a evolução do Partido Comunista Chinês? Há algum ponto em comum entre a política de Xi Jinping e suas ideias? E entre Xi Jinping e Karl Marx? O capitalismo chinês está nas antípodas do comunismo hermenêutico?
Há elementos regionais no comunismo chinês que estão diretamente enraizados nas tradições locais. É verdade que o comunismo chinês não me agrada, porque é realmente autoritário. Assim como o socialismo latino-americano tem uma inserção em uma história, em algumas tradições, o comunismo chinês se explica por seu passado.
De qualquer modo, há alguns aspectos que não conheço com profundidade sobre o comunismo daquele país. E, além disso, existem coisas que não sabemos sobre alguns elementos de seu funcionamento interno. Está claro que também existe uma posição de enfrentar o autoritarismo que acompanho.
Como avalia as recentes declarações do economista francês Guy Sorman sobre os acontecimentos que envolvem Michel Foucault, na Tunísia, na Páscoa de 1969? Sorman comparou o comportamento do filósofo com as ações de artistas como o pintor Paul Gauguin, na Polinésia. Foucault, assim como outros intelectuais franceses, apoiou plenamente o sexo livre entre crianças e adultos, em uma declaração pública nos anos 1970.
Não tenho opinião formada. Ignoro o fato completamente. Você é a primeira pessoa que me fala sobre isso, sobre o que Michel Foucault fez na Tunísia. É um tema a respeito do qual realmente não sei nada.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“É necessário voltar a uma expressão social utilizada pelo Papa Francisco: ‘façam barulho’”. Entrevista com Gianni Vattimo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU