30 Mai 2020
O ritmo atual de desmatamento da Amazônia — que cresce sem parar pelo segundo ano consecutivo — é, além de um enorme problema ambiental, uma tragédia socioeconômica, afirma o ambientalista brasileiro Beto Veríssimo, fundador da consultoria Imazon, diretor do Centro de Empreendedorismo da Amazônia e pesquisador associado da Universidade de Princeton.
O discurso que põe em lados opostos o desenvolvimento econômico e a preservação da Amazônia, diz ele, é falso. "Desmatamento não gera desenvolvimento, não gera aqui e em lugar nenhum no mundo. E ele inibe investimento — que investidor sério vai querer investir na Amazônia, rodeada por ilegalidade?", diz, em entrevista à BBC News Brasil.
Veríssimo afirma que seria possível aumentar muito a produção agrícola na Amazônia sem desmatar um só hectare — aproveitando terras já degradadas em décadas passadas. No entanto, diz, é preciso ao mesmo tempo reforçar a fiscalização e punição de infratores.
"Não tem como contemporizar com desmatadores ilegais, ladrões de florestas públicas, extratores ilegais de madeira. Para a ilegalidade, a força da lei", diz ele.
Ele diz que "a presença do Exército é bem-vinda", ao comentar o decreto do governo que colocou, de maio a junho, as rédeas das ações de fiscalização e combate ao desmatamento nas mãos das Forças Armadas — tirando-as do Ibama, que passou a ser subordinado aos militares.
Mas diz que é cedo para avaliar o resultado das operações militares realizadas até agora. O governo anunciou que, até o dia 21/05, "26 pessoas foram presas por delitos ambientais e outros crimes durante as ações do Exército, e que foram aplicadas multas no valor de R$ 8,7 milhões". Além disso, foram apreendidos motosserras, tratores, caminhões e embarcações.
O fato de o Exército ter descartado a destruição do equipamento apreendido, entretanto, preocupou Veríssimo. "Se não usarmos essas medidas (destruição de equipamento apreendido), que são comprovadamente eficazes, eu tenho um pouco de dúvida se vão conseguir combater o desmatamento", diz.
Leia abaixo trechos da entrevista concedida à BBC News Brasil, em que pesquisador alerta para as graves consequências do aumento do desmatamento. Ele também comenta a fala do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, de que é preciso aproveitar a pandemia para "passar a boiada" na mudança de legislação ambiental.
A entrevista é de Leticia Mori, publicada por publicada por BBC Brasil, 28-05-2020.
O último boletim de desmatamento da Amazônia do Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD), de abril, registrou um aumento de 171% em relação a abril de 2019. O que explica esse aumento expressivo?
Apesar da diminuição da atividade econômica por causa da pandemia, o desmatamento esse ano, não só em abril, mas em todos os meses, tem se mantido em uma tendência de alta. E isso tem uma explicação dupla: uma é a menor presença da fiscalização no campo. O segundo fator é o fato de que governo não prioriza o combate ao desmatamento.
O calendário do desmatamento vai de agosto de 2018 até julho de 2019, então pega pouco do governo Temer. Mas neste ano, de agosto de 2019 até julho de 2020, vai ser totalmente na conta do governo atual. Ainda faltam dois meses para termos os números, mas toda a tendência é que a gente vai ter mantido esse crescimento, com um aumento seguido do desmatamento por dois anos. É bastante preocupante.
Como a mudança do comando das operações de fiscalização do Ibama para o Exército afeta esse cenário? As operações que o Exército tem feito estão tendo algum efeito no combate ao desmatamento?
As operações começaram em abril e maio. É cedo para dizer se vai ter impacto, nos dados de maio, que saem em junho, vai ficar mais claro se a ação das Forças Armadas está conseguindo. O que a gente sabe, historicamente, é que há um efeito positivo quando há uma operação de combate ao desmatamento ostensiva, com a presença de aparato policial — porque o Ibama não tem força policial, eles precisam do aparato da Polícia Federal, do Exército etc. Então a presença do Exército é bem-vinda, a gente está em uma situação muito complicada na Amazônia. Mas não dá para dizer ainda se vai ter efeito da maneira como eles estão fazendo.
Como você avalia o que eles têm feito até agora, como o comando da operação ter mudado para o Exército e essa decisão de não destruir os equipamentos dos criminosos ambientais pegos em flagrante?
O ideal nessas operações é contar com a parceria de todas as instituições, da Polícia Federal, do Ibama, do Exército — e o Ibama tem todo o know how de como fazer, esse conhecimento não pode ser ignorado.
A destruição dos equipamentos é recomendada. Tem duas maneiras de inibir o infrator, (que comete) o desmatamento ilegal. Uma é prendendo, mas o infrator normalmente não está lá, é um laranja, um funcionário. A outra, mais eficaz, é quando você penaliza o infrator, quando o crime é claramente configurado, destruindo o equipamento. É como quando há apreensão de droga, você tem que incinerar a droga. A carga, quando a madeira é ilegal, tem que ser apreendida. Não tem como contemporizar com desmatadores ilegais, ladrões de florestas públicas, extratores ilegais de madeira. Para a ilegalidade, a força da lei.
Se não usarmos essas medidas, que são comprovadamente eficazes, eu tenho um pouco de dúvida se vão conseguir combater o desmatamento (com as operações). A gente já observou no passado que o que de fato faz com que outros desmatadores, que estão nos arredores daquele local sendo fiscalizado, parem de desmatar, é quando você apreende e destrói equipamentos. Quando isso acontece, os infratores de fato diminuem sua atividade num raio expressivo com medo de prejuízos econômicos importantes. Eles não têm muito medo de ser presos, acabam sendo soltos.
O risco aos fiscais e ambientalistas aumentou também nesse momento de alto desmatamento?
A gente teve um episódio em que um fiscal do Ibama foi agredido na região do Pará, teve uma tentativa em Rondônia de emboscar fiscais... A gente não tem um levantamento, mas eu diria o seguinte: a gente está assistindo um aumento do desmatamento na Amazônia, isso é um fato, está observando que esse desmatando está acontecendo em regiões onde há pouca presença do Estado, onde há muitos crimes ambientais associados (extração ilegal de madeira, garimpo ilegal, invasão de florestas públicas). Isso tudo configura uma ambiente de ilegalidade nocivo e perigoso.
Existe um discurso, que é bastante encampado pelo atual governo, que contrapõe o desenvolvimento econômico à preservação da Amazônia, como se as leis de proteção fossem burocracias que atrasam o desenvolvimento. Existe alguma realidade nesse argumento?
Não. As pessoas confundem. O desmatamento da Amazônia não melhorou a economia da Amazônia. Nos anos 1970, quando 99% da floresta ainda estava em pé, a região participava do Produto Interno Bruto mais ou menos na mesma proporção que participa hoje. E nesse meio tempo você desmatou 20% da Amazônia, tem o dobro disso de degradação. Ou seja, o modelo baseado no desmatamento não gerou prosperidade na Amazônia, não gerou desenvolvimento econômico, não gerou progresso social — a gente está vendo agora o drama da saúde, que é um problema endêmico e se agrava com o coronavírus. Então, desmatamento não gera desenvolvimento, não gera aqui e em lugar nenhum no mundo. E ele inibe investimento — que investidor sério vai querer investir na Amazônia, rodeada por ilegalidade?
O desmatamento está acontecendo muito mais nesse caráter especulativo do que no caráter produtivo. Ninguém está expandindo o desmatamento para aumentar a produção de soja — está se desmatando onde a produção agrícola não está presente, em regiões afastadas. O que é uma tragédia pro Brasil. É um roubo de patrimônio público, você tem um prejuízo para os cofres, tem um prejuízo ambiental, tem um ambiente conflagrado de conflitos que impede bons investimentos econômicos.
Você tende a piorar a situação social daqueles territórios. Acaba criando municípios que são incapazes de ter uma arrecadação suficiente para ter serviços públicos, o que onera o contribuinte brasileiro... é o pior dos mundos. A situação do Amazonas com a pandemia é um exemplo dessa precariedade. Destrói recursos naturais, mantém pobreza, inibe investimentos e aumenta ilegalidade.
O desmatamento de fato é um problema ambiental, essa é a face que a gente conhece e a face que o mundo inteiro se preocupa. Mas o desmatamento é, sobretudo, uma tragédia socioeconômica, que beneficia grupos muito pequenos de setores que operam na ilegalidade.
Como promover o desenvolvimento sem destruir o meio ambiente?
É como se a gente tivesse três Amazônias. Existe uma, que tem 20% das áreas desmatadas, que corresponde ao leste do Pará, ao sul do Pará, centro-norte do Mato Grosso, penetra no meio de Rondônia, algumas faixas no sul do Amazonas e do Acre. Essa é uma área que de fato o governo deveria ter um foco no desenvolvimento, na assistência técnica, no aumento da produção agropecuária. A gente precisa de fato alocar os recursos escassos do governo para aumentar a produtividade com o uso das áreas que já foram desmatadas, apoiar produtores nessa área.
Se os recursos escassos fossem focados para esse território, a gente poderia ter um aumento de renda e produtividade sem desmatar um hectare. Nessa faixa toda existem muitas áreas que estão subaproveitadas. De cada dez hectares desmatados, apenas um tem produtividade agropecuária na média da produtividade brasileira. Seis têm produtividade abaixo (da média). E três não têm nada, o capim ficou áspero e cheio de espinho, nem o boi quer mais. São áreas que hoje não produzem mais nada.
Temos também uma segunda Amazônia, que corresponde a uns 40%, com municípios gigantes, como Altamira, no sul, centro-norte e centro-sul do Amazonas, grande parte da parte central do Pará — é uma área de floresta, que não faz o menor sentido desmatar. Com o desmatamento, estamos levando pobreza, crime organizado, não vai gerar riqueza para o país — nessa área temos que combater, temos que fazer um foco ostensivo de controle.
E temos ainda uns 40% de terras indígenas, de unidades de conservação, que estão ainda relativamente protegidas, quase que passivamente, porque não são alvo ainda de grandes ameaças. Não quer dizer que elas estão imunes, mas elas estão relativamente protegidas.
O que a gente precisa na Amazônia é uma agenda de uso inteligente dos recursos, de aproveitamento das áreas que foram desmatadas até 2008 e de proteção das áreas de floresta.
Como a aprovação da PL 2633/2020, sobre regularização fundiária de terras da União, que ganhou o apelido de PL da grilagem, pode afetar esse quadro?
A regularização é importante, mas precisa ser feita com cuidado, em área já consolidadas, com duas, três décadas de produção, onde o desmatamento aconteceu até 2008 (ano determinado como linha de corte pelo Código Florestal), onde há de fato produtores, não especuladores. Quem continuou desmatando depois dessa data, invadiu florestas públicas, é um movimento totalmente diferente, não pode regularizar áreas que foram griladas. E os produtores regularizados vão ter que respeitar o Código Florestal.
Então essa regulação depende de onde, com quais condições. É preciso que haja um grande debate para separar o interesse legítimo e o ilegítimo, e é algo que não tem condições de acontecer no meio de uma pandemia, precisa ser quando o país tiver com oxigênio para discutir isso.
Em um vídeo de uma reunião do presidente com ministros divulgado na semana passada, o ministro Ricardo Salles diz que é preciso aproveitar o "momento de tranquilidade" em que a atenção da mídia está voltada para o coronavírus para "passar a boiada" e aprovar diversas flexibilizações. Que tipo de medidas são essas, que poderiam ser aprovadas sem a atenção da mídia? Como você avalia as consequências dessa postura do governo?
Ele não diz quais são as medidas. O dever dele, inclusive constitucional, deveria ser de preservar. Mas o que a gente está assistindo desde 2019, quando houve a posse (do presidente) é que essas falas não são apenas falas, elas se traduzem em resultado. (O presidente Jair Bolsonaro) já dava (antes) sinais, mensagens, já dizia que não ia criar novas áreas protegidas, não ia criar reservas indígenas. A gente vê que sinais e mensagens se tornam políticas que acabam favorecem o aumento do desmatamento. E o perigo é que se tomem outras medidas que possam agravar ainda mais o problema.
Então houve um recrudescimento, esse governo na verdade não teve nenhuma proposta de preservação do meio ambiente, as falas são no sentido de que (eles não enxergam) o desmatamento como um problema.
A situação da Amazônia tem atraído muito a atenção da mídia internacional. Como está a imagem do Brasil no exterior quanto a isso? E como isso pode afetar o país?
A questão do coronavírus trouxe luz para como a destruição ambiental gera um impacto. Temos diversas doenças que vêm de animais que tiveram habitats destruídos, que vêm de florestas tropicais. E os impactos da destruição da Amazônia para o clima vão ser muito mais dramáticos do que um único vírus, então o mundo inteiro está muito preocupado com isso, muito preocupado com o Brasil.
Então, com certeza, conforme aumenta a destruição, aumenta também a pressão internacional sobre o país, não só de governos, mas empresas, corporações. Então "se é da Amazônia eu não compro", "se é da Amazônia eu não invisto", o impacto econômico pode ser muito grande.
A destruição da Amazônia pode parecer algo muito longe, muito distante da realidade do dia a dia das pessoas. Mas as consequências não são restritas àquela região. Como a destruição desse ambiente vai afetar alguém que está em SP ou em PE? Tem várias formas em que afeta, mas três principais.
Uma é essa questão da saúde — da possibilidade de pandemias vindas da destruição do ambiente, de problemas respiratórios que podem se agravar com as queimadas. A fumaça das queimadas não atinge muito o Nordeste, mas atinge o Sudeste, chega até o Paraná. E gera problemas respiratórios graves, piores ainda em momento de uma pandemia de uma doença que afeta o sistema respiratório como a covid-19.
Outro aspecto principal é como a destruição Amazônia afeta as mudanças climáticas, ela é enorme, tem muito carbono, ela é realmente um termômetro do mundo, afetas as chuvas, os ventos, o clima do país e do mundo inteiro. É um impacto tremendo, não estamos falando de milhares estamos falando de uma escala de dezenas de milhões de pessoas.
E afeta também a economia do país — grande parte do PIB brasileiro depende das águas da Amazônia, de um regime de chuvas que é afetado pelo desmatamento, então sua destruição é um risco enorme para a própria economia. E os agricultores, produtores agropecuários, a maioria têm consciência disso. Os agricultores podem ser aliados, o que não podemos é contemporizar com ladrões de florestas públicas, milícias, bandidos especuladores.
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“Agricultores podem ser aliados na proteção da Amazônia, o que não podemos é aceitar milícias e bandidos”, diz pesquisador - Instituto Humanitas Unisinos - IHU