02 Junho 2017
Os ventos que sopram forte os postes eólicos na fronteira sul da Nicarágua não alteram a expressão do casal Ortega, cujas imagens estão estampadas a poucos metros, em um grande painel. A propaganda ostensiva é a estratégia de um governo marcado pela força acumulada após onze anos no poder.
A reportagem é de Murilo Matias, publicada por CartaCapital, 02-06-2017.
O ciclo está longe de terminar, garantido na presidência até 2020. Daniel Ortega, em seu terceiro mandato consecutivo como presidente, tem como vice Rosario Murillo, sua esposa e figura forte da Frente de Libertação Sandinista Nacional (FSLN).
A atual fase do movimento, iniciada com a vitória nas eleições de 2006, que encerrou 16 anos de gestões neoliberais, é marcada por contradições. Elas levantam debates sobre o quanto a “revolução sandinista” de fato transfigurou-se um uma transformação social.
Não faltam defensores da administração reeleita no ano passado com 70% dos votos. Por outro lado, o triunfo foi relativizado pela alta abstenção, interpretada como um castigo ao governo. Enquanto o Conselho Supremo Eleitoral apontou 35% de ausência, a oposição fala em 75% de não votantes.
"A única forma de a esquerda que luta contra o neoliberalismo, mas está inserida nesse ambiente, manter-se no poder é a reeleição. As condições exigem isso para não se ter um retrocesso de 20 anos. Mantemos nossa independência, que é um valor, com o perdão da redundância, que não se valora e isso permite soberania em nossas decisões", afirma o sandinista Carlos Álvarez, dono de uma livraria no mais antigo centro comercial da capital, Manágua.
Ex-deputado da Frente Renovadora Sandinista, uma cisão da FSLN, Enrique Saenz apresenta outra leitura acerca dos acontecimentos recentes. "Em 1979, o sandinismo tentou romper o atraso secular com uma proposta revolucionária, mas acabou naufragando. Em 1990, houve a transição para uma democracia representativa. Esse ciclo acabou em 2016”, diz Saenz.
“Ortega sintetizou os vícios da história: caudilhismo, messianismo, concentração de poder, cooptação e aniquilação do contrário. Isso permitiu que estabelecesse uma aliança com a oligarquia colonial, com banqueiros, enquanto dá migalhas à população, acompanhado de um discurso exotérico, místico e messiânico", afirma.
Em suas vidas diárias, os nicaraguenses seguem fazendo da frase "se não trabalho, não como" a síntese da nação de quase dez milhões de pessoas, das quais 70% encontravam-se abaixo da linha de pobreza, de acordo com levantamento divulgado pela Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal) há dois anos.
A redução dessa miséria nos últimos anos está amparada em programas sociais como o bônus produtivo, que prevê a distribuição de galinhas e porcos, sobretudo em áreas rurais, e a provisão de materiais de construção para as classes populares.
Em contrapartida, o crescimento do produto interno na base de 5% nos últimos quatro anos, combinado à baixa inflação e à estabilidade da moeda, são diretrizes que impulsionam a liberação de crédito a pequenos empreendedores e o financiamento e expansão de escolas técnicas em que jovens recebem ajuda de custo para estudar.
Os índices econômicos, que atraem investimentos estrangeiros, e a valorização do salário mínimo, próximo aos 250 dólares, são estratégias que buscam dar dinamismo à atividade econômica. Na área rural, a regularização fundiária crescente tem ajudado a manter os campesinos na terra e, em consequência, regular o preço de muitos alimentos, ainda que a cesta básica, incluindo despesas de moradia, transporte, vestuário e alimentação, alcance os 500 dólares, o dobro do salário base.
Os esforços não impedem o desemprego nem a migração de parte dos jovens para a Costa Rica, em busca de oportunidades. Estima-se que exista uma população flutuante de um milhão de nicaraguenses no país vizinho, a maioria em áreas pobres e em condição de exploração empregatícia. O subemprego, por seu turno, é a forma encontrada por muitos para manterem-se. É grande a quantidade de pessoas que disputam espaço em mercados populares, ônibus e ruas para vender seus produtos.
A pequena rodoviária da cidade de Nandaime, de 10 mil habitantes, sugere uma imagem do que ocorre nacionalmente. Os baixos preços do transporte público – é possível viajar longas distâncias por menos de dois dólares – contrastam com a falta de qualidade e segurança dos chamados chicken buses (ônibus galinhas), veículos escolares norte-americanos usados como principal meio de locomoção. A estrada de terra e a carência de iluminação são barreiras diárias para muitos.
"Agora há chances para trabalhar", relata Sônia Echaverri, que traz produtos para revender na feira local, enquanto outra informal vendendo sucos por um real oferece sua mercadoria. "Atualmente está muito melhor do que quando fui embora há mais de 20 anos, mas ainda assim gostaria de sair novamente daqui", compara Carmen Rosas, que em 2016 voltou ao país depois de viver duas décadas anos nos Estados Unidos, onde permanecem seus dois filhos.
Como quase todos os países da América Latina, a Nicarágua foi duramente afetada pela Guerra Fria. Nos anos 1980, o país foi controlado pela Frente de Libertação Sandinista Nacional, que derrubou a ditadura da família Somoza após uma sangrenta guerra civil e instaurou um regime nos moldes do existente em Cuba. Como resposta, os EUA passaram a financiar os Contras, grupo guerrilheiro de direta responsável por inúmeros ataques. "Lembro de caminhar horas pela cidade com minha família e não encontrar nada para comer. Era tempo de uma tensão que não se explica, você nunca estava tranquilo, nem mesmo dentro de sua própria casa", afirma Vera Pérez, de 75 anos.
Fatores externos e internos levaram o país a uma situação aterradora. O bloqueio promovido pelos Estados Unidos ocasionou o desabastecimento de itens básicos, agravando a crise herdada pelos sandinistas. No âmbito interno, o autoritarismo do novo governo, simbolizado pela obrigatoriedade do serviço militar, alienava uma população que acabara de vivenciar conflitos armados.
Nesse cenário, as propostas de políticos direitistas ganharam respaldo no eleitorado. Assim, por três vezes consecutivas, os conservadores foram eleitos para a presidência.
Atualmente, é muito difícil encontrar elogios aos neoliberais da década de 1990 e metade dos anos 2000. A exceção é Violeta Chamorro (1990-1997), considerada por muitos como fundamental para negociar tratados de pacificação à época e até hoje a única mulher a chegar ao poder máximo na Nicarágua. "Aqui há um problema de antropologia política. Nós temos um passado brutal, estamos sempre brigando, mesmo dentro das famílias. Essa divergência se reproduz nas demais esferas e nunca permite chegar a um ponto de consenso para que haja desenvolvimento", opina Jorge Ayala, secretário de comunicação do Partido Liberal Constitucionalista, maior sigla da oposição.
A comparação com os períodos anteriores favorece o novo momento do sandinismo. Na fase atual, a proximidade com a China, que apresentou um consórcio para a construção do canal da Nicarágua, tem potencial para transformar o país em um núcleo comercial para toda a região, rivalizando com o Canal do Panamá. A cooperação petrolífera com a Venezuela, por sua parte, converteu-se em moeda valiosa para o desenvolvimento em muitos campos. Em Manágua, a praça chamada Hugo Chávez – com um grande emblema do líder venezuelano – dá mostra do apoio que o presidente falecido estendia à Nicarágua.
O apoio externo tem avalizado o investimento em obras estruturais com significativos reflexos sociais. Neste ano, a capital inaugurou o novo Hospital Fernando Paiz, com 300 leitos e capacidade para até mil atendimentos diários de urgência, atenuando a deficiência no número de unidades de saúde. A redução da mortalidade infantil e a expectativa de vida em 73 anos, de acordo com a Organização Mundial de Saúde, são números comemorados pela gestão, que investe em média 8% do orçamento na pasta anualmente.
Em áreas urbanas, as melhorias no parque Luis Velázquez, uma estrutura modelo que oferece quadras desportivas e internet gratuita aos frequentadores, tem sido replicada em outras áreas de convivência país afora. A duplicação da estrada ligando Manágua a León, as duas maiores cidades do país, e a construção de um novo estádio nacional são outros exemplos de realizações recentes.
O contexto educacional, por sua vez, não foge à dicotomia entre avanços e estagnação. O analfabetismo em 16% é uma questão grave a ser enfrentada. De acordo com a Comissão Econômica para América Latina (Cepal), a Nicarágua direciona menos de 5% de suas receitas para a educação, situando o salário médio dos professores na faixa dos 800 reais, valor complementado por um bônus anual – também estendido aos profissionais da saúde, policiais, militares e trabalhadores com rendimento abaixo dos 600 reais.
Como resposta, a atuação das comunidades tem sido valiosa para auxiliar o Estado nas instituições de ensino. Um dos exemplos envolve as mães de alunos, que de forma alternada recebem provisões de alimentos e trabalham voluntariamente como cozinheiras para garantir a merenda dos estudantes. Muitas dessas mulheres espelham-se em gerações passadas de professoras, que dentre outros marcos foram protagonistas em campanhas de empoderamento popular.
"Em 1980, junto à estrutura do Ministério da Educação, caminhamos pelo interior e periferia em uma ação nacional de alfabetização promovida pela Frente Sandinista. Foi um momento único de nossa história e do qual tenho muito orgulho. Atualmente, há interesse do governo em qualificar a educação, ainda que alguns resultados estejam longe do que precisamos para avançar", relata a professora aposentada Pérez.
Enquanto a tradição sugere que todos tornam-se igualmente nicaraguenses ao entrar no país, a realidade demonstra que os setores alinhados à Frente Sandinista estão mais próximos de garantir suas demandas. O domínio da Assembleia Nacional, com um bloco de quase 70 deputados, e a supremacia no controle de 90% das prefeituras comprovam o quanto o projeto está estabelecido em todo o território.
Esses prefeitos reúnem-se quinzenalmente com a vice-presidenta Murillo para receber diretrizes do poder central. "Não imaginava ver a instauração de um novo regime autoritário quando toda uma geração deu sua vida para acabar com uma ditadura. Parece que a sociedade não assimilou a magnitude da parede que tem em cima e não sei em quanto tempo vão tomar consciência. Pode ser um dia, um ano ou nunca, contra Somoza foram 40 anos. As liberdades e direitos são atropelados, nenhuma prefeitura foge ao controle dos Ortega, estamos falando de nenhuma democracia", critica o ex-sandinista Saenz.
As contradições da Nicarágua estão em todos os lugares. A presença de Rosário Murillo como uma vice com funções de primeira-ministra levanta a discussão de que a nação estaria caminhando para uma nova dinastia. Ao mesmo tempo, é a expressão maior de uma lei que determina a obrigatoriedade de chapas mistas de homens e mulheres para todos os cargos eletivos.
Apesar disso, a maior presença feminina nem sempre se traduz em avanço sobre pautas sensíveis às mulheres. O aborto segue proibido em todos os casos, sustentando pelo discurso pró-vida elaborado pela Igreja Católica e seguido pelos sandinistas, ignorando abusos e a gravidez dramática de muitas jovens. O lema da revolução "Cristã, socialista e solidária" estabelece a proximidade entre governo e religião e reflete-se em templos cheios nas periferias e centros.
O controle da informação compreende mais um ponto crucial para analisar as especificidades nicaraguenses. As principais emissoras são gerenciadas pelos sandinistas, o casal presidencial está onipresente no material institucional e nas mensagens governistas constantemente veiculadas, compensando as raras aparições públicas de Daniel Ortega. O vermelho e negro da bandeira da Frente está permanentemente perfilado ao lado do azul e branco do emblema nacional.
Na outra ponta, o contato junto a lideranças e congressistas, que podem ser destituídos caso descumpram as decisões do partido, é absolutamente truncado. Para esta reportagem, não houve resposta a nenhuma mensagem eletrônica enviada aos deputados da base. A tentativa de acesso à Assembleia Nacional foi negada pela chefia de imprensa.
"Os meios digitais e as informações são controladas pelos sandinistas, isso é uma necessidade, mas temos uma política de buscar o consenso em tudo, esse é o fundamento das decisões públicas. Somos comprometidos com os pobres, a direita diz que fazemos por imposição, mas não é verdade. O partido tem adesão da juventude e da sociedade", contextualiza Álvarez, o dono da livraria em Manágua.
Uma forma de manter essa base de apoio se dá através dos conselhos populares existentes em praticamente todos os bairros e pensados para fazer a interlocução entre a população e governo para auxiliar na formatação de programas. Por outro lado, há manifestações contidas de que as estruturas servem para espionar os cidadãos e concentrar as decisões nas mãos de caciques regionais.
Para atuar nos conselhos ou trabalhar em algum órgão do Estado, que raramente realiza concursos públicos, exige-se a validação do aval político sandinista, um documento relacionando bons serviços prestados ao partido ou à causa revolucionária. A medida reproduz, na esfera civil, o domínio que a Frente exerce também nas Forças armadas e no Judiciário.
É esse quadro que a oposição pretende abalar nas eleições municipais marcadas para novembro. "Estatisticamente, as pessoas estão melhores, mas nas ruas segue o desemprego e a vontade de sair do país, sentimos o descontentamento. Além disso, os piores adversários da FSLN estão dentro do partido e querem sair dele. A Frente transformou-se em uma organização empresarial e por isso o combate à corrupção vai ser capitalizado como nossa mensagem nacional", aponta Ayala, do opositor PLC.
À beira da estrada Panamerica, José Reyes, mecânico de 50 anos espera o ônibus sentado em um banco com as cores da revolução e sintetiza com picardia as tantas contradições que colorem sua terra. "É o único governo que olha para os mais necessitados, mas há acúmulo de riqueza por figuras conhecidas e muitos problemas silenciados por um certo receio de como as críticas serão recebidas por Ortega”, diz. “Mas ainda assim estamos na Nicarágua livre", conclui.
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O novo domínio sandinista na Nicarágua - Instituto Humanitas Unisinos - IHU