Trump e seu governo representam uma fusão de relações pessoais e interesses privados, afirma o pesquisador italiano
“O governo Trump é a primeira presidência estadunidense da história completamente pós-liberal”, disse Mattia Diletti, professor da Universidade de Roma La Sapienza, na videoconferência “Sociedade e política no trumpismo. Ideologia, capitalismo nacional e nostalgia”, promovida pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU na semana passada. Para o pesquisador, o segundo governo Trump é decorrência de uma revolução iniciada em 2016, ao mesclar componentes da crise populista em curso em vários países e com elementos de disputa por ampliação dos direitos sociais e culturais estadunidenses desde a década de 1960. “Eu abraço a hipótese (…) de que ainda estamos dentro de um conflito que começa nos anos 1960, nos Estados Unidos, e que tem a ver com a questão racial e a ampliação dos direitos e das diferenças sociais, das subjetividades sociais e políticas que pedem representação, direitos e poder. Desde a década de 1960, estamos como num pêndulo de vai e vem entre ações de conflitos avançados por direitos e uma contrarreação por parte da maioria silenciosa”, explica.
Mattia Diletti estuda os EUA desde a década de 1990 e acompanha as principais transformações internas no país desde o 11 de Setembro, passando pela crise financeira de 2007 e 2008, a gestão Obama e a emergência de Trump em 2016. Na avaliação do pesquisador, o país está “atravessando uma crise democrática de proporções desconhecidas”, marcada por uma estratégia de “fortalecimento constitucional do poder Executivo”, que visa “limitar os direitos constitucionais dos opositores”. Exemplos disso, menciona o pesquisador, “são as prisões, as ações judiciais, as perseguições, as intimidações direcionadas e promovidas pelo governo contra a sociedade, associações e indivíduos”.
O governo Trump, alerta o professor, não pode ser reduzido à figura do presidente. Ao contrário, representa ideologias que desejam “estabelecer uma nova ordem política”.
A videoconferência de Mattia Diletti, intitulada “Sociedade e política no trumpismo. Ideologia, capitalismo nacional e nostalgia”, integra o Ciclo de estudos: A gramática do poder global. Desocidentalização, tecnoautoritarismos e multilateralismo no século XXI e está disponível na íntegra aqui. A seguir, publicamos os principais pontos da palestra no formato de entrevista.
Mattia Diletti (Foto: Pandora Rivista)
Mattia Diletti é professor do Departamento de Comunicação e Pesquisa Social da Universidade de Roma La Sapienza. Integra o Observatório Político Mediamonitor, criado em 1994, para refletir sobre a relação entre comunicação, política e sociedade.
IHU – Como avalia o acordo sobre as tarifas entre EUA e Europa?
Mattia Diletti – Foi bastante humilhante para a Europa. Há uma discussão contínua sobre o papel dos Estados Unidos na Itália e na União Europeia, além do papel estadunidense na questão iraniana e palestina. Obviamente, há outras questões que interessam aos europeus, como a situação da Líbia e da Síria, da guerra entre Rússia e Ucrânia, uma guerra que está acontecendo no coração da Europa.
IHU – O que explica a segunda eleição de Trump?
Mattia Diletti – Busco entender como chegamos até aqui, como os Estados Unidos se tornaram uma democracia pós-liberal, pós-constitucional, onde tem um grau real de consenso em relação a um regime menos democrático e mais autoritário. Cabe a todos nós tentar entender o que isso quer dizer em relação aos nossos próprios países. Os EUA estão atravessando uma crise democrática de proporções desconhecidas. Os primeiros meses do governo Trump representam uma espécie de tempestade perfeita de um processo que tem raízes estadunidenses antigas, mas também elementos parecidos com as crises das democracias mundiais dos últimos trinta anos.
As causas dessa crise democrática estão aí e ainda são parciais; é difícil ver e entender até onde os efeitos dessa crise irão chegar. Trump está no governo somente há seis meses, os quais foram bem diferentes dos quatro anos em que ele esteve no poder. Agora, temos uma espécie de classe dirigente nativa trumpista, que resolveu ocupar o Estado com uma postura completamente diferente daquela adotada em 2016. Para todos os governos, os primeiros seis meses são uma espécie de lua de mel. São os meses em que há um trabalho mais intenso, com mais capacidade, mais eficácia. Mas é claro que, diante do futuro, poderá haver momentos de crise, recuos, derrotas eleitorais do trumpismo e derrotas judiciais. A Suprema Corte está atuando de forma bastante linear, mas poderá haver conflitos internos. Nesse sentido, poderá haver recuos em relação à força trumpista.
Nos primeiros meses do governo, Trump usou muita força e causou muito impacto. Há uma crise constitucional em andamento porque o seu governo adota, sistematicamente, práticas ilegais que ignoram as leis estadunidenses. Há escolhas de classe nesse sentido. O governo também adota práticas corruptivas inconstitucionais que dizem respeito à relação entre uma parte do governo mesmo e os interesses privados. Além disso, há formas de ameaças e intimidação bastante evidentes, que se tornaram uma modalidade de interação com os opositores.
Podemos dar muitos exemplos sobre isto: as intervenções nas universidades, nos meios de comunicação, nos escritórios de advocacia que querem entrar com ações legais, além do uso deliberado e estratégico de notícias falsas por meio das redes sociais. Somente sobre o perfil social do presidente, poderíamos falar por horas e fazer muitas pesquisas. Depois há também o encerramento, o desfinanciamento e a perda de independência das agências federais que controlam e monitoram as ações do Executivo, as políticas públicas e os mercados. Ou seja, estamos falando de ações importantes, todas acontecendo ao mesmo tempo.
IHU – Qual é a melhor chave de leitura para compreender o governo Trump?
Mattia Diletti – Podemos interpretar Trump a partir da fase populista das duas últimas décadas, em chave comparada, ou podemos lê-lo numa dimensão histórica de longo prazo, que contém também a fase populista da década de 2010. É importante entender essa fase populista recente. Na Europa, quando falamos de fase populista, todos nós nos lembramos de 2016, ou seja, o populismo tem a ver com a vitória inesperada de Trump – nosso aliado na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) –, mas também com a vitória do Brexit, a saída do Reino Unido da União Europeia em 2016, e com o surgimento de outros líderes políticos populistas, muitas vezes de direita, como na Hungria, na Itália (com Giorgia Meloni). Também recordamos o Movimento Cinco Estrelas, na Itália,, que na década passada alcançou quase 30% dos eleitores como movimento populista.
Mas antes de pensar nos EUA e nessa dimensão histórica, eu abraço a hipótese, como alguns historiadores fazem, de que ainda estamos dentro de um conflito que começa nos anos 1960 nos Estados Unidos e que tem a ver com a questão racial e a ampliação dos direitos e das diferenças sociais, das subjetividades sociais e políticas que pedem representação, direitos e poder. Desde a década de 1960, estamos como num pêndulo de vai e vem entre ações de conflitos avançados por direitos e uma contrarreação por parte da maioria silenciosa. Essa é uma periodização interessante e, parcialmente, estamos sempre dentro da mesma guerra cultural, do mesmo conflito.
Alguns historiadores e sociólogos americanos enxergam, na década de 1960, uma espécie de fratura entre o conservadorismo e o progressismo americano, que ainda hoje determina as formas da polarização social, cultural e material das elites e do eleitorado norte-americano.
IHU – Em que sentido a fratura entre o conservadorismo e o liberalismo americano determina as formas da polarização social, cultural e material das elites nos EUA?
Mattia Diletti – Entre os anos 1930 e 1960 houve um consenso nos EUA em torno das políticas do New Deal, de Roosevelt. Apesar da ruptura entre as elites políticas federais, houve uma convergência entre uma parte do Partido Republicano e uma parte do Partido Democrata acerca de alguns pilares do progressismo americano. De certa forma, o conservadorismo presente na sociedade norte-americana ficou segregado na dimensão estadual, especialmente no Sul.
A coalizão do New Deal é composta pelo Norte operário industrial e pelo Sul agrícola segregacionista, que votava para Roosevelt em troca de investimento público. Ou seja, teve uma espécie de aliança garantida em Washington pelo consenso em torno do New Deal. Num certo momento, o governo começou a se ocupar de algumas questões, como aquela que diz respeito à educação, à moral, às relações entre as raças, questões que, do ponto de vista legislativo, eram delegadas aos estados locais.
Quando, na década de 1960, o governo federal começou a promover políticas de abertura a esses movimentos de direitos civis dos afro-americanos, o antigo equilíbrio se quebrou dentro da política estadunidense. Um exemplo é o marco da história legislativa americana: o Civil Rights Act foi votado por 153 deputados democratas e 136 deputados republicanos. Noventa e um democratas do Sul dos Estados Unidos – região racista e segregacionista – se opuseram. O conservadorismo que estava sendo esmagado em nível local se transforma em uma força política em busca de um unificador federal.
Em 1968, quando Richard Nixon ganhou as eleições, George Wallace, democrata e governador do Alabama, se apresentou sozinho às eleições presidenciais, com uma plataforma política contra os direitos dos afro-americanos e ganhou em cinco estados. A partir daí, os republicanos entenderam que tinham uma janela de oportunidades para lançar uma estratégia que chamaram de Estratégia do Sul, que consistia em conquistar o voto republicano no Sul. Se hoje olharmos o mapa eleitoral estadunidense, podemos ver que o Sul é sempre vermelho, ou seja, republicano. O eleitorado conservador sulista abraçou plenamente o partido Republicano nas eleições presidenciais desde a década de 1970, com duas exceções significativas: Jimmy Carter e Bill Clinton, os dois ex-governadores de estados do Sul.
No início da década de 1990, começam a desaparecer os antigos deputados democratas que ainda tinham uma base de referência racista e segregacionista da antiga coalizão do New Deal e chegam ao Congresso representantes republicanos que se tornam maioria no Sul. Ou seja, teve uma plena transformação da classe parlamentar.
IHU – O que essa mudança significou?
Mattia Diletti – As batalhas pelos direitos civis inspiraram novos protagonismos políticos. Os primeiros movimentos da década de 1960 apontaram uma incongruência nos EUA: se este é o país da oportunidade, todos precisam participar sem distinção, cultura, gênero ou cor da pele. Começavam a surgir grupos com uma cultura distinta, baseada na diferença, que queriam colocar mais atenção nas questões étnicas e culturais dos específicos segmentos culturais para os quais não era suficiente uma ampliação dos direitos civis e políticos. Esse foi um período de questionamento do sonho americano, da ideia de nação americana.
Para muitos, a finalidade da política era não reconduzir as subjetividades para dentro de uma narrativa unitária no acontecimento histórico dos Estados Unidos. Por outro lado, alguns líderes das comunidades afro-americanas, nativas ou chicanas se percebiam vítimas do americanismo como ideologia dominante. Os líderes, que deveriam lutar para diminuir a distância entre a promessa americana e a própria realidade existencial, geraram uma conflitualidade inédita por causa da afirmação da diferença.
Talvez essas questões possam parecer banais para vocês, mas essa conflitualidade inédita foi percebida como uma ameaça cultural por parte da sociedade estadunidense que reagiu em 1968 apoiando Nixon nas eleições. Há, então, um contramovimento conservador, com uma demanda forte. Em 1968, a conflitualidade crescia, surgia o movimento pacifista por causa da guerra do Vietnã e de movimentos ligados à questão racial, que organizavam manifestações e protestos urbanos. Também tinha uma demanda por um novo orgulho nacional por parte das forças conservadoras, para restabelecer uma ordem, uma hierarquia social que pudesse lembrar os EUA tranquilos dos anos 1950 e 1960. Para cada passo ou pedido de transformação se produzia uma contrarreação. Isso é visível hoje também. Tem sempre esse pêndulo entre movimento e contramovimento.
Essas reações conectam historicamente a vitória eleitoral de Nixon em 1968 com a vitória de Trump em 2016, abrindo, novamente, uma polarização ideológica forte, pois nascem conflitos sobre o que quer dizer ser estadunidense. Quem está acompanhando as questões políticas envolvendo a figura do prefeito de Nova York, que é um político democrata que há seis anos tem cidadania estadunidense, percebe que se discute que ele nem poderia ser candidato a prefeito porque nem deveria ser estadunidense.
Há autores que associam os anos da fratura do governo Nixon ao início das guerras culturais entre dois grandes grupos nos EUA, que estão lutando pela própria definição de alma da nação. Para alguns historiadores, a polarização política e ideológica americana deve ser inserida numa dinâmica de conflito entre segmentos sociais e elites políticas, que nasce no fim da década de 1960, com o início do protagonismo de novos atores na sociedade estadunidense, como mulheres, minorias e jovens. Em reação a isso, teve uma contraorganização da maioria silenciosa.
IHU – Como a eleição de Trump é interpretada nesse contexto de conflitos e guerras culturais?
Mattia Diletti – Alguns sociólogos interpretaram a eleição de Trump como parte de uma contrarrevolução branca. O que precisa ser destacado é que nesse jogo um papel essencial é o da nova geração de nativos trumpistas, aquela geração de políticos que nasceu trumpista ou que se converteu imediatamente ao trumpismo. Existem empreendedores da polarização política, sem os quais esses deslizamentos sociais não poderiam ter se transformado em consenso social e em políticas de governo.
Fatores como o retorno aos direitos dos estados, as relações entre raças, o tema da comunicação, são todas questões utilizadas para não falar da raça, mas discutir questões que dizem respeito à raça. Nos anos seguintes que sucederam a crise de 2007, as ansiedades econômicas, muitas vezes racializadas, as mudanças demográficas e as ansiedades identitárias, consolidaram uma reação contra a eleição de Obama, porque existiam ansiedades na sociedade estadunidense, especialmente no que diz respeito à parcela branca da população. Eram ansiedades que diziam respeito ao futuro, à mudança, ao medo.
Teoricamente, há a previsão de que até 2045 os EUA se tornarão um país em que os brancos serão apenas a minoria. Hoje, como na década de 1960, também existem ansiedades identitárias, como o medo de uma desamericanização da sociedade estadunidense. Isso explica a reação dura contra a imigração e tudo que o atual governo tem feito, sobretudo com cidadãos de origem latino-americana. Se pensarmos nisso, é fácil observar como ocorre uma volta a temas específicos, como manter o inglês como língua oficial e, portanto, a eliminação do espanhol como segunda língua oficial.
Vendo fisicamente um presidente afro-americano, na época de Obama, esse sentimento de perda de status aumentou na população branca. Então, empreendedores políticos do medo e do saudosismo politizaram essa nostalgia. O mesmo acontece na Europa. O elemento da nostalgia é aproveitado por empreendedores políticos que conseguiram construir uma aliança em torno dos ressentimentos, que encontraram fácil ressonância após a vitória de Obama. Isso porque a crise financeira determinou um sentimento de desconfiança contra as instituições, as universidades, os intelectuais, os especialistas, a mídia, e contra os processos de globalização, somente para fazer uma lista sumária dos inimigos típicos desse populista.
Ou seja, trata-se de uma aliança multifome, interclasse, que começou a se criar nos primeiros anos da presidência de Obama no movimento do Tea Party, que nasceu contra a reforma da saúde de Obama – os conservadores estavam chefiando esse movimento – e com as novas ansiedades da redução da carga tributária. A reforma da saúde de Obama, que ampliou o acesso à saúde a milhões de americanos, foi interpretada como o anúncio de uma nova era de apoio público às camadas mais desfavorecidas da sociedade. Ou seja, é outra maneira para tratar do tema sem falar seu nome: minorias raciais. Por trás do movimento de massa contra a reforma tinha o medo do aumento da despesa pública e do potencial aumento da arrecadação tributária. Nestes anos eu fui aos Estados Unidos muitas vezes e me lembro dessas críticas contra o presidente Obama. Diziam que ele era um presidente à moda europeia.
O ano de 2007 foi a passagem decisiva para a eleição de Trump, pois havia movimentos favoráveis aos direitos sociais e o contramovimento do Tea Party, que foi a base que levou à vitória de Trump em 2016.
IHU – A crise financeira de 2007-2008 também preparou o terreno para a eleição de Trump?
Mattia Diletti – Algo que precisamos ter em mente é que a crise de 2007-2008 gerou uma enorme desconfiança contra as instituições e a classe política nos Estados Unidos e na Europa. O Congresso hoje é impopular. Mas existe igualmente um ceticismo generalizado que atinge também a Itália, a ciência, as mídias, as grandes empresas. A novidade mais relevante para mim é o fato de que esse ceticismo diz respeito a uma instituição que antes não estava envolvida nisso: a Suprema Corte. Mas, nesse momento, a Suprema Corte está alimentando a polarização.
2007-2008 marca um ponto de virada significativo em relação à projeção americana na economia mundial e o seu papel de superpotência solitária. Na primeira fase do governo Obama, o presidente conseguiu evitar o colapso econômico, mas a crise financeira expôs as fragilidades e as contradições inerentes à globalização também nos Estados Unidos.
A crise revelou o rosto obscuro de um processo. Começou-se a discutir o que poderia significar o fato de que o déficit comercial estadunidense em relação à China passou de 83 para 268 bilhões de dólares entre 2001 e 2008, ou seja, em apenas sete anos. Debateu-se o significado disso para alguns setores industriais dos Estados Unidos, que foram atingidos por um processo de deslocalização industrial. A economia norte-americana mostrou como o grande crescimento nos EUA nos anos 2000 aconteceu especialmente em algumas regiões e não em outras, onde era mais forte a capacidade de produzir riqueza graças à economia digital, como o Vale do Silício, enquanto em outras áreas havia uma piora da condição da qualidade de vida.
Em 2008, pensava-se que a resposta à crise fosse um novo governo que pudesse dar voz a uma América pós-racial, com mais atenção em relação ao sofrimento econômico, com políticas de redistribuição que foram iniciadas por Obama nos primeiros dois anos. Na realidade, ninguém esperava que a contrarreação do Tea Party fosse o início de uma força política no estilo trumpista, de um outsider que conseguiria anular o establishment republicano.
Naqueles anos se afirmou um antiglobalismo de direita, que progressivamente conquistou uma posição hegemônica no debate público, partindo da primeira administração Trump, em que a globalização foi associada à esquerda liberal e cosmopolita. Aquela crise colocou em crise – desculpe o jogo de palavras – a narrativa positiva construída nos anos anteriores. Trata-se de um nacionalismo radical que se configurou como antinacionalista. O que aconteceu internamente foi algo interessante de observarmos hoje: estamos destruindo o que restava da antiga ideia de capitalismo com rosto humano, de Roosevelt.
Nessa nova relação entre capital e política, surge a ideia de que o poder deveria ser centralizado num Executivo cada vez mais forte, que se deveria enfraquecer e, possivelmente, eliminar as agências governamentais federais independentes que, a partir de Roosevelt, constituíram um dos motores do estado administrativo americano. Os aparelhos do governo Trump têm este objetivo: querem realizar o que foi anunciado no Projeto 2025, redigido pelo governo Trump. Como vemos, as agências americanas estão passando por um processo de desmonte, desfinanciamento e alinhamento ideológico com o governo. A máquina burocrática foi politizada.
Estamos assistindo a uma fusão, com base em relações pessoais de interesse, entre o governo Trump e interesses privados. A ideia é que a junção de diversos poderes poderá garantir a possibilidade de contrabalançar o crescimento chinês. Para competir com a China, os EUA precisam ter campeões globais, com enormes investimentos, aliados não com o governo, mas diretamente com Trump.
IHU – O que isto significa em termos de remodelagem do capitalismo?
Mattia Diletti – Estamos agora numa modalidade de desenvolvimento do capitalismo estadunidense que é de grande recuo e atraso. Pensando no capitalismo americano, estamos voltando muitas décadas atrás.
IHU – Que modelo ideológico acompanha essa mudança?
Mattia Diletti – Trump não é apenas Trump; é uma série de trumpismos, de formas ideológicas, que pensa lidar com antigas elites, tanto moderadas quanto liberais ou democratas, com a vontade de estabelecer uma nova ordem política. O governo Trump é a primeira presidência estadunidense da história completamente pós-liberal. Essa é uma revolução que começou em 2016, pois questiona o pilar da separação dos poderes, da independência da burocracia e também busca, estrategicamente, o fortalecimento constitucional do poder Executivo, além de pretender limitar os direitos constitucionais dos opositores. Exemplo disso são as prisões, as ações judiciais, as perseguições, as intimidações direcionadas e promovidas pelo governo contra a sociedade, associações e indivíduos. Trump realiza uma espécie de guerra contra as pessoas, atacando um para punir cem, mostrando os danos econômicos para que outros aprendam a lição.
Um cenário geral de crise, como foi o de 2007-2008, não poderia desfavorecer as novas elites, os outsiders que estão se transformando em novas elites de governo. A hipótese de alguns especialistas é que estamos observando a uma tentativa racional de saída da ordem neoliberal de natureza nacional capitalista. Essa é a definição que o economista italiano Roberto Tamborini deu, falando tratar-se de uma organização socioeconômica de tipo capitalista enquadrada em um sistema ideológico, político, institucional, centrado na nação e no interesse nacional, em contraposição à extinta social-democracia europeia e à terceira via de Clinton. Para Tamborini, um elemento decisivo de transformação é a mudança do pacto social entre as forças de governo e os partidos políticos nessa nova direita e a sua base social de referência. Segundo Tamborini, o objetivo central da troca política é restituir um conjunto de benefícios materiais, econômicos, sociais, individuais, de identidade cultural e religiosa, que foram perdidos.
Como veremos, a produção desses benefícios exige uma organização distinta dos poderes estatais e de seu papel na economia, tanto em relação ao modelo liberal quanto ao social democrático. Os líderes nacionais capitalistas apresentam uma proposta política interclassista, voltada à recomposição de uma sociedade polarizada, dirigida tanto por aqueles que detêm o controle dos meios econômicos quanto pelos que deles dependem. O ponto de convergência é a ideia da nação, a defesa da sua soberania e de seu interesse, apresentados como soberania e interesse de todos.
Outro momento incrível é aquele que diz respeito à capacidade de reconstrução de um ecossistema ideológico, em que esse tipo de projeto, de ideologia ou de sentimento comum compartilhado pelas elites tem um impacto viral na mídia social. Ou seja, tem uma capacidade absurda de juntar coisas que são produzidas em ambientes intelectuais e em think tanks, e que depois acabam viralizando no YouTube, em podcasts e nas redes sociais.
Agora, é preciso ver as consequências de tudo isso. A grande dúvida que surge é o que Trump conseguirá fazer, apesar das fortes oposições ao seu governo: ele adotará a estrutura dessa nova ordem política? Ou esse conflito que descrevi vai continuar?