Estar em casa no mundo como esforço ético e político. Entrevista especial com Nuno Castanheira

Habitar a Terra não é diferente de habitar nossa própria casa, por isso é preciso cuidar do planeta e reativar o espírito revolucionário que reafirma a vida comunitária

Foto: Pexels

Por: Márcia Junges | 04 Junho 2025

Não há outra Terra. Não há um fora. Não há cálculo cujo resultado dê certo em uma equação na qual uma economia com demandas ilimitadas se valha de recursos limitados, em um planeta finito. Por isso, é preciso repensar o significado de “estar em casa no mundo”, propõe o filósofo português Nuno Castanheira nesta entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

“Estar em casa no mundo significa fazer do mundo um lugar apropriado para habitação. A palavra-chave é 'fazer', ou seja, compreender esse 'estar em casa no mundo' como uma prática constante, um esforço ético e político que exige uma ação concertada e responsável”. E acrescenta: “As catástrofes climáticas, enquanto parte da crise ecológica, devem ser vistas como um sintoma da nossa condição de cada vez mais extrema alienação, um grito por parte da Terra e dos seus sistemas que se transformou numa espécie de último resquício daquele estranhamento que é condição da própria liberdade e que agora se encontra sob ameaça existencial, não só em termos políticos, mas até, poderíamos dizer, ontológicos”.

Discutindo o significado do Antropoceno, Castanheira observa que este sua tese fundamental reside no “fato de os impactos da atividade da humanidade sobre a Terra e os seus diversos sistemas serem de tal modo significativos – em particular nos últimos três séculos – que atingiram uma dimensão geológica, ou seja, conseguiram alterar o comportamento do sistema-Terra de tal modo que se estendem para um futuro imprevisível, possivelmente na ordem dos milhares de anos”.

Por isso, pesquisadores sustentam que saímos da época geológica do Holoceno para outra, do Antropoceno, quando “a humanidade deixaria de ser considerada apenas mais um agente entre outros, cujos impactos eram mais ou menos reversíveis no quadro dos processos terrestres, passando a ser considerada uma força geológica poderosa, determinante e consequente para os processos do sistema-Terra”. Por estarmos frente a condições absolutamente novas, o pensador propõe que retomemos o “espírito revolucionário, reafirmando uma vida comunitária baseada na liberdade e na pluralidade de perspectivas e de possibilidades que se adicionam, ao invés da monocultura política e econômica em que temos vivido, administrados e dominados por um regime com elementos totalitários, alienante, reificante e niilista”.

Nuno Miguel Pereira Castanheira (Foto: Arquivo pessoal)

Nuno Miguel Pereira Castanheira é graduado em Filosofia, especialista e doutor em Filosofia Política pela Universidade de Lisboa. É professor visitante no Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal de Pelotas  UFPel, do qual é membro permanente. Das inúmeras obras que organizou coletivamente, destacamos. Questões ecológicas em perspectiva interdisciplinar. Vol. 4 (Editora Fundação Fênix, 2024) e Bioética, neuroética & ética de IA num mundo pós-pandêmico (Editora Fundação Fênix, 2022).

Em 26-06-2025, ele ministrará a conferência de encerramento do evento Justiça climática e responsabilidade ecológica na programação do III Simpósio Internacional de Ética, Política e Direito  Justiça ambiental e crise climática: dilemas ético-políticos do antropoceno, organizado pela Filosofia Unisinos, cujas inscrições são gratuitas e podem ser feitas aqui.

Confira a entrevista.

IHU – Como podemos compreender o que é o Antropoceno, suas raízes e seus desdobramentos?

Nuno Castanheira – O Antropoceno (anthropos – humano; ceno – recente, novo) é a proposta de uma nova época geológica, apresentada num curto texto publicado na Global Change Newsletter, em 2000, por dois cientistas – o holandês Paul J. Crutzen (1) (químico ambiental) e o estadunidense Eugene Stoermer (2) (ecólogo) –, a qual sucederia ao Holoceno, a época geológica atual, caracterizada, entre outras coisas, pela estabilidade climática, por temperaturas amenas, pelo recuo glacial, e pela expansão humana pela Terra. No fundo, o Holoceno designa a época caracterizada pelas condições básicas favoráveis à vida na Terra, tal como nós a conhecemos, com início há cerca de 11.600 anos.

O Antropoceno, por seu turno, tem como tese fundamental o fato de os impactos da atividade da humanidade sobre a Terra e os seus diversos sistemas serem de tal modo significativos – em particular nos últimos três séculos – que atingiram uma dimensão geológica, ou seja, conseguiram alterar o comportamento do sistema-Terra de tal modo que se estendem para um futuro imprevisível, possivelmente na ordem dos milhares de anos. Assim, segundo os referidos cientistas, tais mudanças, resultantes da atividade humana, teriam ocasionado a transição de uma época geológica, o Holoceno, para uma nova época geológica, o Antropoceno, na qual a humanidade deixaria de ser considerada apenas mais um agente entre outros, cujos impactos eram mais ou menos reversíveis no quadro dos processos terrestres, passando a ser considerada uma força geológica poderosa, determinante e consequente para os processos do sistema-Terra.

Antes de prosseguir, é preciso lembrar que esta proposta foi avaliada pelo Grupo de Trabalho Antropoceno, constituído pela Comissão Internacional de Estratigrafia, da União Internacional de Ciências Geológicas, sobre a qual recai a responsabilidade de validar eventuais alterações à escala de tempo geológico. Em 2024, a recomendação do GT Antropoceno foi no sentido de recusar a proposta de formalização do Antropoceno como época geológica.

Não obstante a relevância científica desta decisão e os inevitáveis debates que dela resultarão no contexto das ciências naturais, penso que ela não torna o conceito de Antropoceno menos importante como eixo de análise da crise ecológica e climática que vivemos. De fato, o conceito de Antropoceno revelou-se decisivo para reavivar e trazer para o debate público, quer nas universidades, quer na sociedade em geral, duas questões fundamentais e interligadas para a compreensão do significado e das implicações da crise ecológica contemporânea, a saber:

a. Será ainda possível sustentar a separação estrita, claramente aprofundada pelo dualismo e pela tecnociência característicos da Modernidade ocidental, entre sociedade e natureza, que se tornou globalmente hegemônica nos seus diferentes aspectos e abordagens – científicos, epistemológicos, éticos, políticos, econômicos, ontológicos, entre outros?

b. A que anthropos – ser humano – nos referimos quando falamos de Antropoceno e da humanidade como força geológica, responsável pela atual crise ecológica? Quais os seus pressupostos, implicações e possíveis consequências?

Na cultura ocidental, e mais marcadamente na sua manifestação moderna – tecnocientífica, matematizada, capitalista e dualista –, a separação entre natureza e sociedade foi considerada evidente por si mesma. Em tempos pré-modernos, a natureza era vista, no Ocidente, como cíclica e imutável, como uma ordem cósmica sempiterna que servia de cenário mais ou menos indiferente às comunidades humanas e às suas atividades. Em tempos modernos, a natureza tornou-se uma reserva sempre disponível e sempre abundante de material para propósitos humanos, sem finalidades próprias e desprovida de valor intrínseco. Num e no outro caso, a natureza é ética e politicamente indiferente, o Outro relativamente às sociedades humanas e às relações humanas.

Relação entre sociedade e natureza

A crise ecológica mostra-nos que a separação entre natureza e sociedade não pode ser mais tomada como evidente, tendo-se tornado, bem pelo contrário, um campo de acesa disputa ética e política. De fato, se a atividade humana se mostra cada vez mais capaz de transformar irreversivelmente a natureza e os seus processos, então a natureza foi “trazida” para a sociedade, tornou-se uma entidade ético-política e, nesse sentido, uma entidade cujas reivindicações – direta ou indiretamente consideradas – tomaram um lugar central nas disputas políticas contemporâneas.

No nosso tempo, e devido à atividade humana, os processos que decorrem entre sociedade e natureza mostram uma tal codependência que uma distinção clara entre ambas parece quase impossível de ser obtida. Longe de ser algo negativo, esse reabrir da questão acerca da relação entre sociedade e natureza é extremamente positivo, pois o reequacionar da relação pode ajudar-nos não só a compreender e, quem sabe, a resolver a crise ecológica, mas também a reavaliar a nós próprios enquanto comunidade ética e política com responsabilidades mais alargadas. E essa é uma questão que a proposta do Antropoceno ajudou a trazer a um público mais vasto.

É certo que o conceito de Antropoceno não inaugurou as reflexões críticas a respeito do dualismo sociedade/natureza e suas implicações, reflexões que estavam já presentes na área da filosofia em geral, em particular ao longo da segunda metade do século XX. Nesse período, estabeleceram-se ou ampliaram-se áreas acadêmicas como a bioética, a fenomenologia e a ética ambiental, ou perspectivas políticas como o ecofeminismo e o ecossocialismo, entre muitas outras, com nomes como Hans Jonas (3), Aldo Leopold (4), Arne Naess (5), Val Plumwood, Vandana Shiva (6), só para citar alguns, que contribuíram decisivamente não só para a crítica do dualismo, mas também para a crítica de pressupostos estruturantes da sociedade atual, exigindo a sua superação e a integração de perspectivas alternativas àquela que é, ainda hoje, a hegemônica. Não obstante, a proposta do Antropoceno como época geológica veio não só dar nova vida a esse debate no âmbito da filosofia e das ciências humanas, alargando os seus horizontes, mas também tornar mais explícito esse debate no campo das ciências naturais e do público em geral.

Universalidade abstrata da humanidade

Isto conduz-nos à segunda questão que referi antes, a questão relativa ao anthropos que constitui o Antropoceno. São conhecidas e muito variadas as críticas que o conceito de Antropoceno tem recebido ao longo dos quase 25 anos da sua existência, algumas delas que me parecem bastante justas. Uma das mais relevantes parece ser a sua contribuição para a propagação de um dos preconceitos fundadores da Modernidade ocidental, um preconceito que teve e continua a ter consequências desastrosas: a referência à humanidade como se se tratasse de um todo abstrato, politicamente neutro, indiferenciado, universal. Tal preconceito exclui ou apaga o fato de a comunidade humana ser plural nas suas manifestações políticas, históricas, culturais, éticas, econômicas, tecnológicas, nas suas formas de vida. Assim, também as responsabilidades da pluralidade constituinte da comunidade humana perante a crise ecológica são igualmente plurais e desiguais, não podendo ser tratadas como relativas a um todo homogêneo.

A pretensa universalidade abstrata da humanidade omite alguns elementos significativos. Talvez o mais relevante desses elementos seja a sua fundação numa imagem eurocêntrica, racista, classista e patriarcal do humano (masculina, branca, burguesa, etc.). O conceito de Antropoceno é acrítico relativamente a essa perspectiva despolitizada da humanidade moderna, críticas que estão espalhadas na literatura filosófica e política pelo menos desde a segunda metade do século XX até hoje. Tais críticas assinalam, em minha opinião, acertadamente o contributo significativo dessa despolitização e naturalização de uma certa imagem do humano para a legitimação e a justificação da afirmação da superioridade da cultura ocidental relativamente a outras culturas, o que conduziu à dominação colonial e imperialista, à exploração, ao racismo e, nos casos mais extremos, à escravização e mesmo ao extermínio.

Se juntarmos as mulheres e a própria natureza a essas exclusões e subalternizações constitutivas da humanidade abstrata moderna, facilmente anteveremos os riscos presentes numa adoção acrítica do conceito de Antropoceno. Certamente sem essa intenção e deixada tal como está, a humanidade referida no conceito de Antropoceno pode contribuir não só para apagar esse histórico de dominação, exploração e exclusão, mas também reproduzir os seus efeitos de forma surda e indireta, nomeadamente colocando no mesmo patamar de responsabilidades relativamente às consequências da atividade humana, por exemplo, os países do Norte Global e os países do Sul Global ou, para dar outro exemplo, o capitalismo – o modo de produção hegemônico – e formas mais tradicionais e sustentáveis de organização social e econômica. Foi no quadro dessas e de outras críticas que surgiram noções alternativas como capitaloceno, necroceno, chthuluceno, só para mencionar algumas, cujos contornos não cabe apresentar aqui, mas que contribuíram significativamente para o aprofundamento do debate sobre a proposta de uma nova época geológica e sobre as origens da crise ecológica que a subjaz.

Relevância conceitual

Uma das consequências da renovação do debate em torno da relação entre natureza e sociedade ou natureza e humanidade foi e continua a ser a necessidade de recolocar a questão: “quem é (o) humano? Quem somos nós?”, que eu já havia mencionado antes. E essa é uma questão em aberto cujo caráter político é inegável. A politização da natureza trouxe consigo a necessidade de desnaturalizar uma concepção abstrata de humanidade feita de preconceitos e exclusões (de gênero, raciais, étnicas, da natureza etc.), colocando-nos em face, nesta sociedade globalizada, da comunidade que hegemonicamente somos e, possivelmente – sublinho aqui o possivelmente –, abrindo algum espaço para um debate sério, profundo, informado e matizado sobre a comunidade que podemos, queremos, e devemos ser.

Como é óbvio, e como referi antes, não foi a proposta do Antropoceno como nova era geológica que originou tudo isto. Mas tem funcionado como um eixo de debate e disputa intelectual e política que não se esgotou ainda, não obstante a decisão da União Internacional de Ciências Geológicas. E isso mostra, em minha opinião, a continuada relevância do conceito.

IHU – Qual é a aproximação entre o Antropoceno e a noção arendtiana de ação na natureza (acting into nature)?

Nuno Castanheira – Esta seria uma resposta que exigiria uma incursão nos escritos de Hannah Arendt e algum aprofundamento não só dos seus conceitos principais, mas também um desenvolvimento interpretativo de algumas das suas teses, em particular da metodologia fenomenológica que preside às suas análises. Isso é algo que não é possível realizar neste contexto, pelo que indicarei apenas alguns dos seus elementos. Também é necessário sublinhar que, embora se trate de uma aproximação, não é mais do que isso, como espero ser capaz de mostrar seguidamente, pois as teses de Arendt (6) contêm possibilidades que nos permitem lidar com todas as críticas dirigidas ao conceito de Antropoceno e ir muito além dele.

No livro A Condição Humana, de 1958, Hannah Arendt afirma que o ser humano começou a agir na natureza, querendo com isto dizer que a ação humana, apoiada na experimentação e na tecnologia, viu alargadas de tal modo as suas capacidades que começou a desencadear processos naturais sem precedentes, imprevisíveis e irreversíveis na Terra. Traduzido em termos do conceito do Antropoceno, poderíamos dizer que a humanidade se transformou numa força geológica cuja atividade e respectivos efeitos se projetam para um futuro indeterminado.

Mas a aproximação possível da ação na natureza apontada por Arendt e o Antropoceno fica-se por aí, por diversas razões. Em primeiro lugar, embora possa parecer que Arendt subscreve o conceito abstrato de humanidade implícito no conceito de Antropoceno, a verdade é que a sua concepção de comunidade humana é, desde logo, política, plural e existencialmente concreta, e nunca deixa de o ser (não há o Homem, mas homens, diz a autora). Arendt toma o conceito abstrato de humanidade ocidental como um fato, mas não para o subscrever ou para o reproduzir acriticamente. Pelo contrário, Arendt assume-o como um fato, constituído histórica e politicamente, que nos serve de condição e com o qual temos necessariamente de lidar, dada a sua hegemonia global. Em conformidade, a pensadora procede à sua desconstrução crítica por intermédio de uma genealogia que mostra não só as suas origens e os seus limites, mas também o conjunto de exclusões sobre os quais assenta, desnaturalizando-as, apontando o caráter eminentemente político do seu processo de constituição e, assim, os fundamentos e as possibilidades da sua destituição.

Pluralidade, condição existencial e de liberdade humana

Em segundo lugar, para Arendt, a pluralidade é uma condição existencial do ser humano e da liberdade humana, liberdade que ela equipara à ação, a capacidade de começar de novo, de iniciar processos sem precedentes. A comunidade humana deve ser compreendida como o espaço aberto pelo encontro paradoxal de entes singulares, únicos, livres e irrepetíveis. Como esse espaço de encontro – esse mundo – se constitui por intermédio de atos discursivos pelos quais cada um de nós aparece a outros, tudo aquilo que é descoberto no mundo é já atravessado de perspectivas, de interpretações, de significados. Cada um só é livre na medida em que a sua perspectiva ou interpretação pressupõe implicitamente a pluralidade de perspectivas ou interpretações que funda o mundo como lugar de encontro, como espaço de liberdade. Ser livre é, para cada ser humano e implicitamente, uma exigência de abertura aos outros, de deixar que sejam livres, uma reivindicação de reconhecimento de uma liberdade compartilhada, efetiva ou possível.

Assim, a noção de ser humano em que Arendt baseia as suas teses assenta numa condição de pluralidade existencialmente concreta e vivida de entidades livres, não numa abstração. Além disso, ela recusa, como contradição performativa que nega a própria liberdade, qualquer pretensão de uma perspectiva abstraída dessa condição de pluralidade existencial a impor-se sobre as outras. Dito de outro modo, qualquer tentativa de despolitizar a comunidade humana plural, naturalizando-a numa humanidade abstrata, homogênea, indiferenciada, corresponde a um ato de dominação sobre e exclusão de outros cujo resultado é a alienação do mundo e, por último, um atentado contra a integridade e dignidade próprias e alheias enquanto entidade livre.

Imprevisibilidade da ação humana

Em terceiro lugar, a tese de Arendt acerca da liberdade como sendo manifestada e articulada nos atos discursivos, num contexto existencialmente plural, implica que tudo aquilo que se dá, é descoberto, ou é encontrado nesse contexto – no mundo – é atravessado de interpretação, incluindo a natureza. Assim, a natureza é descoberta no interior do mundo, isto é, ela não é criada pelo ser humano, mas dá-se, deixa-se ver nas mais diversas interpretações ou narrativas. Ao tentarmos substituir essa espontaneidade de doação da natureza pela sua “produção” através da dominação pelo experimento e pela tecnologia, isto é, de a forçarmos a aparecer em função das imposições tecnocientíficas, homogeneizantes, excludentes e antropocêntricas da humanidade moderna, alienamo-nos das nossas próprias condições mundanas e terrestres e passamos a estar envolvidos num processo ensimesmado, autorreferencial, monocultural, protagonizado por uma interpretação abstrata que tudo quer dominar. Mas isso é apenas uma ilusão, pois o caráter imprevisível da ação humana não é aniquilado e as suas consequências deixam-se ver, mais cedo ou mais tarde.

Assim, podemos dizer que a crise ecológica – essa aparente incapacidade de estarmos em casa no mundo e na Terra, de estarmos deles alienados – é uma das consequências imprevisíveis desse processo de fechamento da humanidade de matriz ocidental sobre si mesma, de negação performativa da sua própria liberdade, um processo que, devido à sua implementação globalmente hegemônica, não só produz e reproduz um conjunto de exclusões, mas põe em risco as condições básicas de vida na Terra.

Abertura de horizontes

Por último, também é fácil de ver que, compreendendo a natureza como dada no interior de um mundo humano fundado na pluralidade de interpretações, a tese de Arendt a respeito da constituição fundamentalmente política da comunidade humana abre espaço para a constante atualização através da inclusão de perspectivas tão diferentes como aquelas que foram e são alvo dos processos de exclusão da humanidade moderna: as mulheres, os grupos racializados ou perseguidos em razão da etnia, as cosmovisões dos Povos Originários, os historicamente e politicamente desfavorecidos etc.

Resumindo, a noção arendtiana de ação na natureza, embora tenha como ponto de partida, tal como o conceito de Antropoceno, o equívoco moderno relativo à nossa capacidade de “produção” da natureza, não descansa nele, abrindo os horizontes da nossa compreensão da política e de quem somos, queremos e devemos ser enquanto comunidade de potenciais habitantes da Terra.

IHU – Qual é o nexo geral entre a crise ecológica e a alienação das diferentes sociedades? Nesse sentido, qual é a colaboração de Marcuse (8) para pensarmos essa relação?

Nuno Castanheira – Alguns dos aspectos dessa alienação já foram mencionados anteriormente, mas tentarei explicitá-los um pouco melhor. Inspirado por Arendt, costumo usar uma definição de trabalho de “crise ecológica” como o índice de uma experiência de crise multidimensional envolvendo a ética, a política, a economia, o direito, o conhecimento, das instituições, do ambiente, do clima, da natureza, normativa etc. No fundo, trata-se da experiência de uma crise generalizada e indefinida, com manifestações nos mais diversos quadrantes da vida humana. Trata-se de uma aparente incapacidade de estarmos em casa, de habitarmos de forma equilibrada, não destruidora e mais ou menos estável, um mundo que nós mesmos criamos e que está enraizado na Terra como sua condição mais essencial.

Como referi antes quando falei sobre a alienação do mundo e da Terra, a alienação refere algum tipo de relação entre termos que copertencem, mas que se encontram problemática e mesmo patologicamente separados. A crise ecológica é, no meu entender, a manifestação contemporânea dessa patologia social na sua forma globalizada. Mais concretamente, a crise ecológica é a manifestação de uma recusa patológica da dependência do ser humano (de matriz ocidental) relativamente a condições dadas – sejam essas condições a presença de outros, a natureza, ou a Terra como oferecendo as condições básicas para a vida tal como a conhecemos, a humana incluída. Como procurei explicar antes, reconhecer-se como entidade condicionada, dependente de algo que não foi criado pelo ser humano ou mesmo por coisas humanamente criadas, não significa perda de liberdade, mas justamente o contrário: é o reconhecimento da pluralidade que funda a nossa liberdade e que se constitui como vínculo não só entre humanos e o mundo humano, mas também com a própria Terra como condição de todas as condições.

Não posso entrar aqui em muitos pormenores, mas essa alienação marca particularmente a sociedade de matriz ocidental, encontrando a sua expressão patologicamente mais significativa no capitalismo compreendido não só como forma econômica, mas como modo de produção, organização e reprodução de vida que se tornou autorreferencial, se autonomizou e se transformou num sujeito totalizante e desvinculado da vida humana concreta. Basta vermos o modo como somos governados pelos “estados de espírito” do mercado para termos noção da sua transformação num sujeito autônomo, com aparente vida própria, para o qual as restantes vidas são meras funções reificadas da sua subsistência.

De fato, o capitalismo relaciona-se com a Terra e com tudo o que nela encontra – incluindo pessoas – como recursos inesgotáveis de matéria-prima para o processo de produção de riqueza, isto é, de sustentação de si mesmo, tratando todos os limites ou condições como barreiras a serem ultrapassadas. Ou seja, trata-se de um processo de assimilação de tudo aquilo que é outro, ocasionando a sua exclusão ou mesmo destruição, consumindo-o. E isso é, como já vimos, altamente problemático, pois a pluralidade e alteridade são condições constitutivas de tudo o que existe, incluindo o humano, e o seu reconhecimento é uma exigência que deve acompanhar toda a atividade humana.

Alienação sistematicamente produzida

Uma das múltiplas manifestações dessa alteridade que escapa ao controle, à assimilação e à dominação total é a “natureza”, esse Outro que não criamos, que nem sabemos bem o que é, que é objeto de interpretações divergentes, mas do qual inevitavelmente dependemos, seja qual for a interpretação que tenhamos dele. Assim, o sucesso total na dominação danatureza” só se obtém por via da sua destruição total, resultando paradoxalmente na destruição do próprio ser humano.

Há um óbvio niilismo em tudo isto, um processo patológico de destruição que se revela absurdo e que, no entanto, está bem presente nas disputas sociais e políticas contemporâneas. Por exemplo, todos os acordos políticos estabelecendo metas para redução da temperatura global, em face da ameaça existencial posta pelas mudanças climáticas, são imediatamente acompanhados por racionalizações que adiam ou mesmo cancelam medidas significativas de combate ou mitigação em nome das demandas da economia e do mercado, não obstante as suas consequências desastrosas. Olhar para este processo como resultado exclusivo da mera ganância de uns poucos – o que também é – é não atender ao fato de operar contra todo e qualquer interesse na própria sobrevivência, é menosprezar o seu caráter patologicamente niilista e autonomizado.

Tal como Arendt, Herbert Marcuse assinalou que todos partimos de condições dadas ou de pré-condições e que isso não é necessariamente problemático, constituindo o ponto de partida de qualquer processo crítico e emancipatório. O problema não é tanto uma certa dose de alienação (que é um fato da existência humana, o fato de sermos condicionados por uma situação que não criamos e que nos é estranha), mas aquilo a que ele chama, numa tradução livre, “excesso de alienação”, a alienação sistematicamente produzida e imposta pelos processos autônomos de preservação de si da sociedade existente, visando manter o status quo à custa da repressão, da desumanização, da exploração, e da destruição sistemáticas. É contra essa que devemos dirigir os nossos esforços críticos e a nossa ação coletiva.

IHU – O poder público que assiste inativo ou com adesão subdimensionada e insuficiente às catástrofes climáticas como a enchente de 2024 no Rio Grande do Sul é o mesmo que é responsável pelo bem-estar das comunidades que o elegeram. Qual é a sua percepção sobre o papel dos entes públicos sobre outras formas de condução da relação ser humano/meio ambiente?

Nuno Castanheira – Bom, parece-me evidente que o poder público contemporâneo – internacional, nacional, estadual etc. – parte dos pressupostos da perspectiva hegemônica, isto é, da perspectiva de humanidade moderna e abstrata que referi antes, pois é ela que serve de base não só às democracias representativas e às suas instituições, mas à própria ordem internacional e suas normas de alcance global também.

Antes de prosseguir, eu desejo esclarecer uma coisa: quando me refiro criticamente à modernidade ocidental, não pretendo dizer que tudo o que saiu dela é ruim e que deve ser descartada sem reservas. As coisas são mais complexas: somos entidades finitas, quer em tempo de vida, quer em conhecimento, e isso implica que são raras as coisas em que estamos envolvidos que não sejam, pelo menos potencialmente, entrelaçamentos do bom e do mau. Assim, a tarefa é tentar não jogar o bebê fora com a água do banho, o que nem sempre é fácil e raramente se obtém sem esforço significativo.

Dito isto, parece-me que a racionalidade econômica, de matriz capitalista, e todas as suas ramificações constituem a interpretação hegemônica daquilo a que podemos chamar, na falta de melhor termo, de interesse comum, seja ou não válida essa pretensão (não me parece que seja). O problema é que essa racionalidade há muito assumiu contornos ideológicos, em sentido arendtiano: ela desvinculou-se das condições concretas e, em face das dificuldades que tem em dar conta do mundo concreto, alienou-se dele, começou não só a criar um “mundo” próprio – para o qual serve de explicação total, dado que não tem de lidar com os fatos –, mas também a destruir tudo aquilo que lhe resiste.

Se considerarmos o significado mais geral da palavra “responsabilidade” – responder a, responder por, prometer –, facilmente verificaremos que o seu comportamento é, genericamente falando, irresponsável: não responde à sua situação concreta; não responde por si nem por quem representa; e não promete, isto é, não é capaz de oferecer garantias não só de que a sua atividade reconhece e respeita as condições do mundo atual, mas também que é limitada pela possibilidade de existência de um mundo futuro.

Responsabilização do poder público

Essa parece ser a lógica que preside a boa parte da ação dos protagonistas do poder público, à sua compreensão do papel das instituições públicas, e dos desejos e necessidades das populações que representam. Não falo aqui de intenções perversas, de defesa encapotada de interesses privados, de corrupção e afins. Essa seria uma outra conversa, não menos importante e certamente relacionada, mas que escapa ao âmbito daquilo que aqui nos interessa. Falo, isso sim, de uma lógica que colonizou as nossas mentes e que comanda a nossa ação, em particular, as mentes e a ação de quem nos governa. Mais: historicamente, essa lógica é reforçada pelo recurso a uma qualquer força sobre-humana – leis da história, leis da natureza etc. –, perante a qual se afirma a nossa impotência, procurando assim legitimar a irresponsabilidade e a desculpabilização dos agentes morais e políticos. No caso das enchentes, as mudanças climáticas e os eventos extremos assumiram esse papel de força sobre-humana que está na base de todos os processos de desresponsabilização e desculpabilização. As mudanças climáticas são de tal ordem, diz-se, que pouco ou nada podemos fazer.

Sabemos que essa não é toda a verdade. Relativamente ao município de Porto Alegre, foram várias as manifestações de cientistas, organizações da sociedade civil e movimentos sociais, sublinhando a necessidade de atender ao sistema de retenção de águas. Possivelmente em consequência dessas denúncias, foi noticiado recentemente que está em curso uma ação do Ministério Público do Rio Grande do Sul contra a Prefeitura da cidade por incumprimento do dever de proteção da população, nomeadamente por falta de ações de vigilância, monitoramento e manutenção do Sistema de Proteção contra Cheias. Desconhece-se ainda o desfecho desse processo, mas ele mostra que o problema é bem mais complexo, muitas vezes relacionado com a secundarização de opções de investimento que não dão lucro, que não geram mais-valia, que não correspondem à lógica totalizante do capital.

Assim, é importante que o poder público seja colocado no banco dos réus e que os seus protagonistas sejam forçados pela justiça humana a responder pelas suas ações ou omissões, pelas suas escolhas e decisões. Mais do que um mero revanchismo, esse tipo de processos visa colocar a ação humana no poderoso lugar que ela descobriu como seu, exigindo dos agentes a responsabilidade correspondente. Visa também reivindicar, por parte dos poderes públicos, um exercício de autocrítica, de análise dos seus pontos cegos, dos seus pressupostos, que faça uso do melhor conhecimento disponível, que se distancie da lógica economicista alienada e alienante que preside às suas decisões.

Apelo à responsabilidade

É fundamental, também, que a população esteja atenta, que seja mais exigente e que participe na gestão da coisa pública, que se reúna em espaços além das redes sociais e das suas interações alienadas e reificadas, que se organize e debata as suas visões divergentes de modo aberto, informado e respeitador das diferenças. É importante compreendermos que, embora seja verdade que lidamos com uma crise ecológica, esta não deve ser vista apenas como uma força onipotente contra a qual nada podemos fazer. Ela tem origem na ação humana sobre a Terra e os seus sistemas, orientada por uma perspectiva hegemônica que tem de ser chamada à responsabilidade.

Se não podemos alterar o fato de a crise ecológica estar aí e de se ter tornado condição da nossa existência, podemos e temos de assumir a nossa responsabilidade coletiva e lidar com ela, não encontrar desculpas ou subterfúgios para escapar a esse enfrentamento. E o apelo à responsabilidade, que serve para todos nós, serve mais ainda para os poderes públicos, que têm nas suas mãos capacidades legislativas, poderes de licenciamento, de gestão territorial etc., para os quais têm de encontrar referenciais de orientação alternativos àqueles que nos conduziram à atual situação. Ou seja, têm responsabilidades acrescidas, embora não exclusivas, na atualização e renovação do significado de quem somos, quem queremos ser, e quem devemos ser enquanto comunidade política.

IHU – Ainda podemos nos sentir “em casa no mundo” frente às catástrofes climáticas que têm se proliferado nos últimos anos? Que alternativas nos ajudam a delinear outras formas de vida?

Nuno Castanheira – Penso que sim, mas teremos de reconsiderar o que significa “estar em casa no mundo”. Estar em casa no mundo significa fazer do mundo um lugar apropriado para habitação. A palavra-chave é “fazer”, ou seja, compreender esse “estar em casa no mundo” como uma prática constante, um esforço ético e político que exige uma ação concertada e responsável.

Esse desafio estava presente, de forma talvez agora excessivamente esquecida e certamente mais limitada, nas origens gregas da própria palavra “ética”, que nos remetia para um lugar de abrigo, um espaço a que se está acostumado, que nos é familiar, habitual, sentidos que foram internalizados em certas disposições habituais ou naquilo que chamamos caráter. A ética e a política concretizam-se, neste sentido, numa disposição prática constante e estável que procura conferir sentido não só ao nosso entorno, tornando-o uma “casa” apropriada para habitação, mas também constituir quem nós somos, o nosso caráter. Temos, então, essa experiência inter-relacionada e indissociável de um agente que se constitui em relação com outros e com o mundo, tentando fazer dele a sua casa. Nesse sentido, a crise ecológica reflete uma crise ética e política, uma crise dos modos de habitar, das nossas práticas hegemônicas costumeiras, dos nossos comportamentos e das normas que os determinam e estimulam.

Mas, para podermos dispor-nos a constituir e a habitar o mundo, não podemos estar de tal modo assimilados às suas normas e determinações que nos dissolvemos nele e nos tornamos idênticos a ele. Para Arendt, os seres humanos são estranhos num mundo com o qual têm de se reconciliar, o qual têm de constituir num lar, tarefa que se revela sempre inacabada, sempre por fazer e como a fazer. Para isso, é necessário que essa experiência de estranheza – de uma certa alienação sentida por quem é uma espécie de recém-chegado ao mundo – não seja eliminada, administrada ou domesticada pelas imposições do mundo existente. Para Marcuse, tal como para Arendt, esse é um dos riscos da sociedade contemporânea, um risco escondido pelas suas promessas de libertação através da tecnologia, que tomam cada vez mais o lugar de uma libertação por via política.

Em O Homem Unidimensional, Marcuse escreve que a promessa da civilização tecnológica e industrial é uma promessa de libertação das energias individuais para um reino de liberdade e autonomia, alcançado por via da organização centralizada do aparelho produtivo no sentido da satisfação das necessidades vitais. No entanto, aquilo que prometia ser a condição de possibilidade de autonomia humana, promovido pela racionalidade tecnológica, revelou algumas tendências totalitárias, no sentido de uma coordenação técnica e econômica que cria, administra e satisfaz necessidades ao serviço não da libertação das pessoas, mas da sua autopreservação enquanto sistema.

Hoje, mais do que nunca, esta tendência parece estar presente na sociedade, com a emergência da governamentalidade algorítmica e a sua capacidade de se dirigir aos indivíduos e suas aparentes “necessidades” específicas, colonizando a espontaneidade dos seus desejos e aspirações e neutralizando qualquer tipo de emergência de oposição ao sistema. Ou seja, estamos perdendo gradualmente, mas de forma cada vez mais acelerada, a capacidade de experienciarmos algum tipo de estranheza em relação ao mundo, esse sentimento de alienação relativamente a pré-condicionamentos que nos foram impostos, sentimento que é constitutivo da experiência humana e condição de toda a libertação, compreendida como uma atualização das condições individuais e coletivas de vida e de coexistência.

Numa sociedade de produção e consumo como aquela em que vivemos, o processo de produção e satisfação de necessidades da sociedade existente não só se acelerou, como está cada vez mais autônomo e apostado na gratificação instantânea, momento em que as “dores e penas” do trabalho, como lhes chama Arendt – do processo de satisfação de necessidades – serão substituídas pelo deleite no consumo, pelo trabalho plenamente identificado com o lazer. Esse será o momento em que todos nos transformamos em objetos de administração total por parte de uma racionalidade econômica e tecnológica que aprendeu a neutralizar toda e qualquer consciência de sujeição e de dominação. É também o momento em que passamos da experiência fundamental de um certo estranhamento ou alienação relativamente a uma situação social, econômica e política preexistente que se impõe a nós para uma alienação total relativamente ao mundo, à Terra e seus limites básicos, e a nós próprios, de caráter destrutivo. Em suma, de uma total incapacidade de estar em casa no mundo e na Terra.

Não há outra Terra

Até aqui, o modo predominante de lidar com a crise ecológica tem sido a sua sujeição às leis e necessidades do mercado e do sistema capitalista tecnologicamente administrado, que tende ao escapismo, à desculpabilização e à destruição niilistas sempre que as suas exigências não são correspondidas. Não podemos contentar-nos com isso. As catástrofes climáticas, enquanto parte da crise ecológica, devem ser vistas como um sintoma da nossa condição de cada vez mais extrema alienação, um grito por parte da Terra e dos seus sistemas que se transformou numa espécie de último resquício daquele estranhamento que é condição da própria liberdade e que agora se encontra sob ameaça existencial, não só em termos políticos, mas até, poderíamos dizer, ontológicos.

Sermos ou não capazes de estar em casa no mundo vai depender da nossa resposta a essa reivindicação que nos chega da Terra e que dá conta da nossa própria alienação. A insistência no sistema e na lógica que esteve na origem da crise ecológica produz uma resposta irresponsável e niilista, como já referi, sustentada por uma complacência relativamente aos condicionamentos existentes e em mecanismos gastos e destrutivos, em vez de no esforço prático – ético e político – de transformação e atualização ética, política, econômica das nossas condições de vida, em face a uma situação sem precedentes.

Correndo o risco da simplificação excessiva, estar em casa no mundo e na Terra não é diferente de habitar a nossa própria casa (para quem tem a felicidade de ter uma): se formos complacentes, se deixarmos de cuidar dela diariamente, de a limpar e atender às suas necessidades estruturais, ela vai-se degradando e, eventualmente, desaba nas nossas cabeças. É certo que há quem possa dar-se ao luxo de pura e simplesmente trocar de casa, deixando os escombros do consumo irresponsável atrás de si para que os que vierem depois. A grande diferença no que respeita à Terra é que não há outra. Essa não deveria ser a única razão para assumirmos perante ela uma atitude responsável e fazermos o esforço de nos libertarmos das garras de um modo de habitação alienante e que, em última análise, nos vai deixar desalojados. No entanto, se apenas o interesse próprio for motivação suficiente, que façamos pelo menos o esforço de o identificar, em vez de nos entregarmos aos automatismos reconfortantes e alienados da gratificação instantânea, produzidos por um sistema aparentemente apostado na nossa destruição individual e coletiva.

Retomar o espírito revolucionário

Os caminhos alternativos estão por construir, não há respostas prontas, ainda menos para uma situação sem precedentes. A primeira coisa é romper com a perspectiva dominante, disputar a sua hegemonia. Para isso, temos bastantes recursos, propostas e experiências: temos a via ecossocialista, a via ecofeminista, a escuta e o trabalho com os Povos Originários, suas experiências, cosmovisões e formas de vida, as experiências comunais, o conhecimento ecológico e cada vez mais integrado dos sistemas naturais e seus diferentes habitantes, as diferentes reflexões sobre e experiências históricas das fundações da ética e da política, os diversos modos de conceber as relações econômicas e as suas finalidades, e por aí afora. Nenhuma delas será a resposta definitiva, mas todas elas certamente contribuirão com elementos para encontrarmos um novo caminho, uma nova experiência de vida em comunidade.

Temos, acima de tudo, a possibilidade de revolucionar as nossas formas de viver e de pensar, de conceber o nosso espaço de coexistência e, para tudo isso, não faltam recursos, falta apenas vontade, esforço e coragem política para aceitar a pluralidade como condição básica de vida na Terra, agir politicamente a partir dela sem cair em relativismos ou nas fórmulas velhas e gastas que nos conduziram à atual situação. Arendt diz que o tesouro escondido das revoluções são as comunas, os conselhos revolucionários, lugares de emergência da liberdade no encontro da pluralidade de agentes livres e suas diferentes perspectivas sobre o mundo, as quais, através do debate, se põem em questão, experimentando os seus limites, se educam mutuamente, renovando e alargando o seu potencial coletivo para lidarem com o inesperado, com o absolutamente novo. Estamos diante de condições absolutamente novas, talvez seja necessário retomar esse espírito revolucionário, reafirmando uma vida comunitária baseada na liberdade e na pluralidade de perspectivas e de possibilidades que se adicionam, em vez da monocultura política e econômica em que temos vivido, administrados e dominados por um regime com elementos totalitários, alienante, reificante e niilista.

IHU – Qual é a contribuição da Filosofia para pensarmos um outro paradigma civilizacional que problematize o Antropoceno?

Nuno Castanheira – Responderei de forma muito breve a esta questão. Infelizmente, temos testemunhado que a filosofia está sob ataque proveniente de diversos quadrantes: de forças reacionárias que temem a sua capacidade crítica e o seu poder de inspirar a mudança política e procuram substituí-la por receituários já prontos de comportamento e pensamento; de forças menos conspícuas, mas talvez mais perigosas, que procuram submetê-la aos ditames da racionalidade economicista e tecnológica e da sua pulsão produtivista, neutralizando o seu caráter subversivo e transformando-a em mera forma de legitimação e justificação da perspectiva hegemônica. Seja qual for a via seguida, o único resultado visível é a manutenção da sujeição individual e coletiva ao status quo.

No que me diz respeito, a filosofia – e a atividade de pensar, genericamente falando – pode e deve contribuir não esquecendo a sua vocação ético-política original, a saber, ser uma prática crítica do que se apresenta como evidente e indiscutível, mostrando as suas contradições e limites, abrindo novos horizontes não por meio do fornecimento de respostas prontas, mas através da destruição dos preconceitos que impedem o aparecimento do novo, ao mesmo tempo que excluem ou invisibilizam perspectivas e formas alternativas de compreender a nossa situação existencial.

Nesse sentido, a filosofia não pode esquecer o seu passado, mas também não pode ficar prisioneira dele. Tem, consequentemente, de tudo fazer para o preservar, não apenas no sentido de registrar a sua própria história, mas também no sentido de fazer com que esta não seja percebida apenas como letra morta, incapaz de falar aos vivos. Essa relação com o seu passado tem de responder às reivindicações e condições do presente, pois só assim a filosofia será capaz de integrar novos contributos, perspectivas e problemas, de mostrar a sua relevância e de se atualizar, projetando-se um futuro de possibilidades sempre renovadas e abertas ao imprevisível que é o traço constitutivo da condição de crise ecológica, cujas consequências, dispersas num tempo de dimensões geológicas, são impossíveis de predizer.

IHU – As democracias liberais têm sido colocadas à prova pelo surgimento de novos autoritarismos e a eclosão de movimentos de extrema-direita que não possuem apreço pelo cuidado à casa comum. Quais são os principais desafios das democracias em um contexto de fragilização da Terra como um sujeito de direitos?

Nuno Castanheira – Talvez o primeiro e mais importante desafio seja as democracias liberais tomarem consciência de que elas próprias têm mostrado pouco apreço pelo cuidado com a casa comum e que os autoritarismos e movimentos de extrema-direita não são ameaças vindas de fora, e sim ameaças que emergem no seu interior, nutridas por elementos autoritários e totalitários que constituem a estrutura interna dessas mesmas democracias. Este é um ponto fundamental para compreender as teses de Arendt e de Marcuse: viver num mundo pós-totalitário, como o nosso, significa viver num mundo em que o totalitarismo está sempre à espreita, pois trata-se de um mundo que contém alguns elementos totalitários que facilmente podem tornar-se dominantes.

Aquilo que fui dizendo a respeito da natureza de dominação, excludente, reificante e alienante da racionalidade tecnológica e do capitalismo serve para as democracias liberais, mais especificamente para as democracias representativas contemporâneas, as quais se têm mostrado pouco mais do que a sua expressão política. A grande diferença entre as democracias liberais até ao momento e os autoritarismos e movimentos de extrema-direita tem sido o fato de os últimos serem explícitos na sua intenção de condução da lógica hegemônica, alienante e niilista que nos governa às suas últimas consequências, aniquilando definitivamente a liberdade e a pluralidade humanas e, com isso, possivelmente a própria vida na Terra.

Penso que o principal desafio das democracias liberais é, neste momento, levar a sério a crise ecológica nas suas múltiplas dimensões, contribuindo ativamente para um revolucionamento das nossas formas de relação políticas e econômicas. Para além dos aspectos ambientais, penso que é crucial enfrentarmos a possibilidade real do esgotamento do presente projeto político e econômico global, manifesto na adesão de um número cada vez maior das massas desesperadas a movimentos autoritários e niilistas.

Para isso, será fundamental fazer uma transição da democracia representativa para a democracia participativa, começando pela criação de espaços e formas efetivas de participação popular na tomada de decisão, o que passa por um abandono da noção de política como uma relação entre governantes e governados, entre os que “sabem” e comandam e os que obedecem e executam, e a formalização de uma comunidade política em que a participação não se limita ao dia do voto e à experiência de uma impotência ressentida no resto do tempo.

Refundação do Direito

Não estou certo de que esteja ocorrendo uma fragilização da Terra enquanto sujeito de direitos porque penso que a Terra nunca foi seriamente considerada, pelo menos que eu saiba, um sujeito de direitos. Também não sei se o caminho passa por reconhecer a Terra como sujeito de direitos sem questionarmos, antes de mais, os fundamentos do próprio direito, tal como o concebemos no quadro das democracias liberais. Basta olharmos para a ineficácia dos direitos humanos em situações-limite para percebermos que talvez o problema seja mais profundo, vinculado a alguns dos aspectos referidos em respostas anteriores.

Afinal, não são também sujeitos de direitos reconhecidos as crianças palestinas, os migrantes que morrem diariamente no Mediterrâneo, os atingidos pelos impactos da exploração desenfreada da natureza, e assim sucessivamente? Não será necessário repensar as fundações do próprio direito, se este se revela inoperante nos casos em que é mais necessário e o último recurso? Esse parece ser, por exemplo, o ponto de Arendt quando fala de um “direito a ter direitos”, ou de Nancy Fraser (9) quando, retomando essa expressão arendtiana, fala de uma dimensão política da justiça.

Para mim, o debate em torno da Terra como sujeito de direitos tem de partir dessa refundação do próprio direito. Isso implica uma refundação da própria política e da noção de comunidade humana que a sustenta. Resta saber se as democracias liberais estão dispostas a arriscar-se nesse exercício tão necessário ou se estão de tal modo apostadas na sua própria preservação que perderam de vista as perplexidades que têm diante de si.

IHU – Qual é o nexo entre soberania e crise climática? Em que medida setores da esquerda precisam repensar suas práticas em função de ainda estarem fixados a um modelo desenvolvimentista que usa recursos naturais finitos em uma economia que é insustentável?

Nuno Castanheira  O nexo entre soberania e crise climática é difícil de estabelecer de forma resumida, pois o conceito de soberania é um dos conceitos estruturantes da experiência política moderna e das democracias contemporâneas, merecendo um cuidado na análise que não é possível ter neste formato. Essa dificuldade fica bem patente se atendermos ao fato de o extermínio da população de Gaza ser apresentado, pelas autoridades israelenses e por parte da comunidade internacional, como um direito soberano de defesa, ao mesmo tempo que esse genocídio talvez fosse evitado se a soberania do estado palestino tivesse sido já internacionalmente reconhecida. Dada a fragilidade e a seriedade destas questões, seria imprudente da minha parte apresentar uma crítica liminar do conceito de soberania, defendendo a sua rejeição, sem as mediações necessárias que tornam a minha posição clara.

Assim, direi apenas que algumas das contradições e problemas que foram já referidos no que diz respeito à racionalidade tecnocientífica e econômica moderna são compartilhados pela concepção de soberania, nomeadamente a sua identificação com uma imagem excludente do humano, com a liberdade, e desta última com a autossuficiência e o absoluto domínio sobre si mesmo e sobre os processos por si espoletados.

Como vimos acima, este tipo de concepção da liberdade parece colocar-se em posição antagônica relativamente à pluralidade humana, com os problemas já assinalados. Entre esses problemas estão a possibilidade de alienação do mundo e da Terra, pois parece subjazer a tal noção de soberania uma negação de qualquer tipo de dependência relativamente a condições preexistentes. Embora não tenha como explorar aqui esses contributos, penso que as críticas de Hannah Arendt, de Giorgio Agamben (10), de Antonio Negri (11) e Michael Hardt (12), entre outros, são preciosas para compreender quer as origens, quer as implicações do conceito e, por isso, remeto os leitores para elas.

Ruptura com o modelo desenvolvimentista

Quanto à adesão de alguns setores da esquerda ao modelo desenvolvimentista, penso que é manifesto que se baseia na mesma lógica burocratizante e administrativa de que falei antes, particularmente quando falávamos sobre a possibilidade de “estarmos em casa no mundo”. Dada a sua dependência do modelo de desenvolvimento que é estruturante da modernidade, tais setores correm igualmente o risco de transformar num fim em si mesmo o processo de administração burocrática da satisfação de necessidades que assumem como condição da liberdade, processo que assim tende à autonomização, protelando indefinidamente a liberdade efetiva das comunidades em nome da sua autopreservação.

Existem já, no quadro do socialismo, possibilidades alternativas que poderão certamente contribuir para uma ruptura com esse modelo desenvolvimentista. Mas tais alternativas – sejam, por exemplo, as propostas ecossocialistas, as releituras ecológicas de Marx (13) etc. – estão distantes dos circuitos de governação nos diferentes países do mundo, até porque envolveriam um revolucionamento na própria forma de conceber e viver a política, uma cisão com a ordem política e econômica global existente. Essa cisão talvez não esteja no horizonte mais próximo da esquerda desenvolvimentista e é bem possível que essa timidez na afirmação de um claro projeto alternativo esteja na base da erosão que tem sofrido em termos de apoio social.

IHU – O que o direito a ter direitos, na filosofia de Arendt, nos aponta sobre uma outra perspectiva ontológico-política?

Nuno Castanheira – Mais uma vez, uma questão complexa e difícil de responder resumidamente. A expressão “direito a ter direitos” significa, para Arendt, o direito a viver numa estrutura em que se é julgado por suas ações e opiniões e o direito de pertencimento a uma comunidade organizada, pois é justamente a perda da comunidade que expulsa o ser humano da humanidade. Arendt apresenta uma genealogia deste processo de expulsão da comunidade humana, o qual corresponde a uma perda de direitos, com início na Declaração dos Direitos do Homem, no período revolucionário francês. É justamente essa perda, na minha opinião, que nos permite compreender o alcance e a atualidade da sua tese, não só no que respeita a essa declaração em particular, mas ao próprio modelo de fundação dos direitos humanos que é ainda o vigente, atravessado pelas contradições já referidas.

Em minha perspectiva, ao narrar essa perda, Arendt coloca-nos diante de uma dupla constatação: primeiro, o fato de que pertencer à comunidade em que nasceu deixa de ser natural para o ser humano; segundo, e só aparentemente contraditório, que esse direito de pertencimento nunca foi natural, mas político. Ou seja, é o fato certos humanos terem sido privados dos seus direitos que revela que tais direitos não se fundam na natureza humana, pré-política e mesmo apolítica, como pretendem as declarações universais de direitos humanos.

Mais: é justamente a naturalização e correspondente despolitização desses direitos que excluem e expulsam tais seres humanos da humanidade, uma vez que a naturalização e a despolitização dos direitos correspondem à transformação de uma humanidade plural, concreta e constitutivamente aberta ao novo e ao diferente, numa humanidade abstrata, pretensamente universal que conduz à invisibilidade, à insignificância e à eventual insignificância tudo aquilo que não corresponde aos padrões nela se petrificaram numa suposta “natureza”.

Falamos hoje dos riscos da naturalização de certos padrões comportamentais, de certas estruturas, de formas de opressão; falamos também da invisibilização de minorias, de reivindicações, de formas de exclusão. A expressão arendtiana “direito a ter direitos” manifesta uma concepção de política que recusa essa naturalização, em que as possibilidades de recurso a uma natureza sempre já pronta como fundamento do direito e da comunidade humana nos estão vedadas porque foram definitivamente perdidas. Se despolitizarmos os direitos, se os naturalizarmos, se descansarmos sobre os direitos como definitivamente adquiridos, corremos o risco de nos condenarmos – como já condenamos parte da população mundial – a uma existência desumana, privada de direitos, no interior de uma humanidade que vive literalmente num mundo totalmente sujeito a normas, uma ordem global baseada em regras que começou, paradoxalmente, a “produzir” excluídos (veja-se o que antes foi dito a respeito do caráter potencialmente totalitário de sociedade globalizada, naturalizada, despolitizada, plenamente satisfeita consigo mesma).

Desnaturalização da política

A posição arendtiana aponta para dois aspectos interligados: primeiro, uma desnaturalização da política, ou seja, para uma disputa a respeito da natureza que se traduz num questionamento da base ontológica de toda a política – questionamento compreendido aqui à maneira da fenomenologia existencial como um recolocar da questão sobre o sentido da nossa ordem de coexistência e das suas estruturas fundacionais; segundo, para o caráter constitutivamente contingente e plural dos sentidos dessa ordem de coexistência, implícito nesse questionamento das suas fundações. Assim, toda a política se compreender como uma ontologia política, a saber, como um processo de questionamento dos pressupostos fundacionais da ordem de coexistência existente, em face dos desafios e perplexidades colocados pela experiência e pelas reivindicações emergentes no seio dessa mesma ordem, às quais esta pode não se mostrar capaz de dar resposta.

Esse é o sentido último daquilo que procurei dizer quando afirmei que “estar em casa no mundo” é uma prática ético-política constante de atualização de quem somos, quem queremos ser, e quem devemos ser como comunidade. Na medida em que a nossa ação tem um alcance ontológico, essa questão não diz apenas respeito ao ser humano, mas também às suas condições básicas de existência na Terra.

Desse modo, se é certo que a crise ecológica (a atual incapacidade de estarmos em casa no mundo e na Terra) precisa rapidamente de uma resolução, não é assim tão certo que a questão ecológica (a retomada da questão acerca do sentido de esse estar em casa) deva ser assumida, em qualquer momento, como estando definitivamente resolvida, pois isso será apenas um sinal da nossa alienação relativamente ao nosso próprio lugar de habitação.

Notas

(1) Paul Josef Crutzen (1933-2021): químico neerlandês. Conjuntamente com Mario Molina e Frank Sherwood Rowland, foi laureado com o Nobel de Química de 1995, pelo seu trabalho na química atmosférica, particularmente o estudo sobre a formação e decomposição do ozônio na atmosfera. Membro da Pontifícia Academia das Ciências em 25 de junho de 1996. Foi professor do Instituto Max Planck de Química em Mainz, Alemanha. O asteroide 9679 Crutzen é denominado em sua homenagem.

(2) Eugene F. Stoermer (1934-2012): pesquisador em diatomáceas, com especial ênfase em espécies de água doce dos Grandes Lagos da América do Norte. Era um professor de biologia da Escola de Recursos Naturais e Meio Ambiente da Universidade de Michigan. Cunhou originalmente o termo Antropoceno a partir do início da década de 1980 para se referir ao impacto e provas para o impacto das atividades humanas sobre o planeta Terra. A palavra não foi utilizada na cultura geral, até que foi popularizada em 2000 pelo ganhador do Prêmio Nobel, o químico atmosférico Paul Crutzen e outros que consideram a influência do comportamento humano na atmosfera da Terra nos últimos séculos como tão significativos como para constituir uma nova época geológica.

(3) Hans Jonas (1903-1993): filósofo alemão de origem judia. É conhecido principalmente devido à sua influente obra O Princípio Responsabilidade (publicada em alemão em 1979, e em inglês em 1984) à qual se atribui o papel de catalisador do movimento ambiental na Alemanha. Já O Fenômeno da Vida (1966) forma a espinha dorsal de uma escola de bioética nos Estados Unidos, obra profundamente influenciada por Heidegger e que tenta sintetizar a filosofia da matéria com a filosofia da mente, produzindo um rico entendimento da biologia, em busca de uma natureza humana material e moral. Sobre seu pensamento, confira a Edição 540 da Revista IHU On-Line, de 02-09-19, intitulada Hans Jonas. 40 anos de O princípio responsabilidade.

(4) Aldo Leopold (1887-1948): silvicultor, acadêmico, filósofo ambiental e conservacionista estadunidense, que, por seu extenso trabalho sobre a conservação da vida selvagem e dos espaços naturais, é considerado uma figura importante na história do conservacionismo e o fundador da ciência da conservação nos Estados Unidos. Pioneiro na elaboração de formulações éticas que buscam levar em consideração a comunidade biótica da Terra, Leopold influenciou profundamente o desenvolvimento da ética ambiental presente no movimento conservacionista. Após ter participado da fundação da The Wilderness Society, em 1935 adquiriu terras no interior do Wisconsin, nas quais pôs em prática suas inovadoras ideias sobre a restauração ecológica.

(5) Arne Dekke Eide Næss (1912-2009): filósofo e ecologista norueguês, famoso por ter cunhado o termo "deep ecology" (ecologia profunda). Foi um importante intelectual e uma figura inspiradora para o movimento ambientalista do fim do século XX. Næss cita o livro Primavera Silenciosa, de Rachel Carson, como uma grande influência em sua visão da ecologia profunda. O filósofo combina sua visão ecológica com não violência gandhiana e, em diversas ocasiões, participou em ações diretas.

(6) Vandana Shiva (1952): filósofa, física, ecofeminista e ativista ambiental indiana. É diretora da Fundação de Pesquisas em Ciência, Tecnologia e Ecologia, com sede em Nova Déli, e uma das líderes e diretoras do Fórum Internacional Sobre Globalização. Vandana discursou na cúpula da Organização Mundial do Comércio em Seattle, 1999, bem como no Fórum Econômico Mundial em Melbourne, 2000. É uma importante figura do movimento antiglobalização e defensora do movimento de solidariedade global.

(7) Hannah Arendt (1906-1975): filósofa política alemã de origem judaica, uma das mais influentes do século XX. A privação de direitos e perseguição de pessoas de origem judaica ocorrida na Alemanha a partir de 1933, assim como o seu breve encarceramento nesse mesmo ano, forçaram Arendt a emigrar. O regime nazista retirou-lhe a nacionalidade em 1937, o que a tornou apátrida até conseguir a nacionalidade norte-americana em 1951. Trabalhou, entre outras atividades, como jornalista e professora universitária e publicou obras importantes sobre filosofia política. Contudo, recusava ser classificada como "filósofa" e também se distanciava do termo "filosofia política"; preferia que suas publicações fossem classificadas dentro da "teoria política". Sobre essa pensadora, confira a Edição 206, de 27-11-2006 da Revista IHU On-Line, intitulada O mundo moderno é o mundo sem política. Hannah Arendt 1906-1975.

(8) Herbert Marcuse (1898-1979): sociólogo e filósofo alemão naturalizado norte-americano, pertencente à Escola de Frankfurt. Em suas obras escritas, criticou o capitalismo, a tecnologia moderna, o materialismo histórico e a cultura do entretenimento, argumentando que eles representam novas formas de controle social. Seus trabalhos mais conhecidos são Eros e Civilização (1955) e O Homem Unidimensional (1964).

(9) Nancy Fraser (1947): filósofa afiliada à escola de pensamento conhecida como teoria crítica. Fraser é uma importante pensadora feminista, preocupada com as concepções de justiça. Argumenta que a justiça é um conceito complexo que deve ser entendido sob três dimensões separadas, embora inter-relacionadas: distribuição (de recursos produtivos e de renda), reconhecimento (na linguagem e em todo o domínio do simbólico) e representação (na política e no poder de tomar decisões). Para evitar concepções redutoras dos conceitos de justiça e participação democrática, ela afirma também que os teóricos sociais deveriam sintetizar os elementos da Teoria Crítica e do Pós-estruturalismo, superando a "falsa antítese" entre os dois, para ganhar um completo conhecimento dos problemas sociais e políticos sobre o qual ambos trabalham.

(10) Giorgio Agamben (1942): filósofo italiano, autor de obras que percorrem temas que vão da estética à política. Seus trabalhos mais conhecidos incluem sua investigação sobre os conceitos de estado de exceção e homo sacer. Formado em Direito, em 1965, com uma tese sobre o pensamento político de Simone Weil, participou dos seminários promovidos por Martin Heidegger, no fim dos anos 1960. De 2003 a 2009 lecionou Estética e Filosofia, no Instituto Universitário de Arquitetura (IUAV) de Veneza. Em seguida decidiu abandonar a atividade de ensino nas universidades italianas.[1] Atualmente dirige a coleção "Quarta prosa" da editora Neri Pozza. na Università IUAV em Veneza. A sua produção se concentra nas relações entre a filosofia, a literatura, a poesia e, fundamentalmente, a política. Responsável pela edição italiana da obra de Walter Benjamin, foi professor visitante da New York University, antes de se decidir a não mais entrar nos Estados Unidos, em protesto contra a política de segurança do governo Bush. Sobre o pensamento de Agamben, confira a Revista IHU On-Line Edição 505, de 22-05-2017, intitulada Giorgio Agamben e a impossibilidade de salvação da modernidade e da política moderna.

(11) Antonio Negri (1933-2023): filósofo político marxista, acadêmico e militante político italiano, um dos expoentes do marxismo operaísta, entre os anos 1960 e 1970. A partir dos anos 1980, dedicou-se ao estudo do pensamento político de Baruch Spinoza, contribuindo, juntamente com Louis Althusser e Gilles Deleuze, para a redescoberta teórica do filósofo neerlandês. Em colaboração com Michael Hardt, escreveu algumas obras muito influentes na teoria política contemporânea. Ganhou notoriedade internacional nos primeiros anos do século XXI, após o lançamento do livro Império — que se tornou um manifesto do movimento antiglobalização — e de sua sequência, Multidão, ambos escritos em coautoria com seu ex-aluno Michael Hardt. Paralelamente ao seu trabalho teórico, desenvolveu intensa atividade de militância política, tendo sido um dos fundadores das organizações da esquerda extraparlamentar Potere Operaio e Autonomia Operaia. Em 1979, já professor universitário de filosofia, Toni Negri foi investigado, preso e julgado por "cumplicidade política e moral" com o grupo terrorista Brigadas Vermelhas, em um polêmico e controverso inquérito judicial chamado pela imprensa de "julgamento de 7 de abril”, condenado a 12 anos de prisão, aos quais foram acrescentados outros tantos, nos anos 1990, pelos crimes de "associação subversiva" e "cumplicidade moral em roubo". Cumpriu um total de dez anos, os últimos dos quais em regime de semiliberdade.

(12) Michael Hardt (1960): teórico literário e filósofo político estadunidense que leciona na Duke University. Sua obra mais conhecida é Império, escrita com Antonio Negri. A continuação é denominada Multidão, lançada em agosto de 2004. Por vezes citado como o "Manifesto Comunista do Século 21", Império propõe que as forças da atual opressão de classe, ou seja, a globalização corporativa e a "comoditização" dos serviços (ou "produção de afetos") têm o potencial para alimentar mudanças sociais de dimensões nunca vistas.

(13) Karl Marx (1818-1883): filósofo, economista, historiador, sociólogo, teórico político, jornalista, e revolucionário socialista alemão. Devido às suas publicações políticas, Marx tornou-se apátrida e viveu no exílio com a sua mulher e filhos em Londres durante décadas, onde continuou a desenvolver o seu pensamento em colaboração com o pensador alemão Friedrich Engels e a publicar os seus escritos, pesquisando na Sala de Leitura do Museu Britânico. Os seus títulos mais conhecidos são o panfleto Manifesto Comunista de 1848 e o triplo volume O Capital (1867-1883). O pensamento político e filosófico de Marx teve uma enorme influência na história intelectual, econômica e política subsequente. Sobre Marx, confira as seguintes edições da Revista IHU On-Line: 525, intitulada Karl Marx, 200 anos - Entre o ambiente fabril e o mundo neural de redes e conexões; 381, intitulada Os Grundrisse de Marx em debate; 278, intitulada A financeirização do mundo e sua crise. Uma leitura a partir de Marx.

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