Os impactos da financeirização e da desfinanceirização. A primeira diminui a pobreza mas não a desigualdade. A segunda aumenta ambas. Entrevista especial com Fernando Nogueira da Costa

O tradicional comportamento patriarcal e personalista em relação ao dinheiro no trato da coisa pública não respeita a hierarquia formal das instituições e dificulta o estabelecimento do Estado democrático e uma ordem social mais impessoal e racional no país, adverte o economista

Foto: Marcelo Camargo | Agência Brasil

06 Junho 2023

"O enfrentamento das desigualdades sociais brasileiras dependerá mais da reforma tributária, de onde certamente não sairá desse Congresso o desejável, mas sim o possível", pondera Fernando Nogueira da Costa, autor de Capitalismo financeiro tardio (2023), livro no qual analisa os impactos da financeirização e da desfinanceirização nas economias brasileira e argentina. Segundo ele, se, de um lado, a financeirização da economia diminui a pobreza, mas não a desigualdade social, de outro, a desfinanceirização aumenta ambas. "Ignácio Rangel e Maria da Conceição Tavares foram os autores pioneiros em anunciar, na década de 60, que 'o Brasil entra em novo estágio, no qual o desenvolvimento não será mais comandado pelo capital industrial, mas pelo capital financeiro'. Alertavam: se a esquerda quisesse entender o que se passava com o capitalismo brasileiro, teria de estudar o capital financeiro", afirma.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o economista defende que "para melhorar o bem-estar, o povo brasileiro necessita, sim, dos serviços financeiros para pagamentos, financiamentos e gestão do dinheiro. Para uma economia ser dinâmica, é preciso de alavancagem financeira: aumento da rentabilidade patrimonial sobre o capital próprio com uso do capital de terceiros. Por isso, digo: os trabalhadores necessitam de Educação Financeira para, lenta e gradualmente, conseguirem substituir em suas aposentadorias a renda do trabalho por rendimentos financeiros. E protegerem suas reservas financeiras da perda de poder aquisitivo devido à inflação. Diminuem sua pobreza, mas não a desigualdade social, para isso são necessárias políticas públicas como tributação progressiva e financiamento habitacional popular".

Costa também comenta um dos temas de sua pesquisa: a "ausência de um personagem-chave nas narrativas a respeito da história do Brasil: o dinheiro". "Talvez a maior pista encontrada para explicar a razão dele não estar com papel explícito nas narrativas históricas brasileiras tenha sido dada, indiretamente, quando se identifica a autoridade do patriarca ultrapassar a esfera doméstica e estender-se ao domínio público", observa. A invasão do público pelo privado no tratamento desta questão, assinala, "não respeita a hierarquia formal das instituições. O tradicional comportamento patriarcal e personalista dificulta o estabelecimento não só do Estado democrático, mas também a impessoalidade exigida no trato das relações públicas com o pagamento monetário devido, independentemente de com quem for o (con)trato". Entre as consequências negativas desse modo de operação com o trato da coisa pública, reitera, sobressaem "as relações pessoa a pessoa, como fossem um favor e não uma obrigação, diante de um direito da cidadania, dificultam se ter uma ordem social mais impessoal e racional no país".

 


Fernando Nogueira da Costa (Foto: Antonio Scarpinetti)

 

Fernando Nogueira da Costa é graduado em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, mestre e doutor em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. É professor do Instituto de Economia da Unicamp. É autor de, entre outros, Brasil dos bancos (2012), Economia em 10 lições (2000), Economia monetária e financeira: uma abordagem pluralista (1999) e Ensaios de economia monetária (1992).

Confira a entrevista.

IHU – Por que a financeirização possibilita a diminuição da pobreza, mas não permite a diminuição da desigualdade social? Pode nos dar exemplos de como isso se manifesta na sociedade brasileira?

Fernando Nogueira da Costa – A “financeirização” possibilita a diminuição da pobreza, mais em termos de acumulação lenta e gradual do estoque de reservas financeiras em vez de gasto dos fluxos de rendimentos em juros. Ela não tem, porém, o dom de diminuir a desigualdade social.

A “desfinanceirização”, como mostrei no estudo do caso da Argentina, devido à desintermediação bancária, dolarização e hiperinflação, aumenta ambas: a pobreza e a desigualdade.

IHU – Qual é a situação das economias argentina e a brasileira em relação à financeirização e desfinanceirização?

Fernando Nogueira da Costa – Ambas as economias, aliás como a norte-americana, têm os menores graus de abertura ao comércio exterior na economia mundial, medido pela relação do fluxo comercial (exportação mais importação) com o PIB. Mas todas as economias do BRICs, até mesmo a chinesa, por cada qual ter um mercado interno significativo, geram maior valor adicionado através dele em vez de ser por exportações líquidas ao mercado externo.

Explorei a diferença entre a “financeirização” brasileira e a “desfinanceirização” argentina. Em dezembro de 2022, o PIB brasileiro foi calculado em R$ 10,1 trilhões, mas os Haveres Financeiros somavam mais: R$ 10,7 trilhões. O crédito ampliado (empréstimos, títulos de dívida e endividamento externo) com R$ 14,8 trilhões atingia 150% do PIB. Na pandemia, chegou a atingir 160%.

A Argentina, ao contrário, é uma economia sem crédito ou confiança. O país não tem mais crédito externo e 70% do crédito interno quem toma é o setor público, oferecendo correção cambial para seus títulos de dívida pública serem aceitos. Ao contrário, a dívida pública brasileira é “desdolarizada” e o país é o segundo colocado no ranking mundial em financiamento destinado ao setor público.

 

 

Na Argentina, os depósitos totais de correntistas nos bancos em relação ao PIB são muito baixos (9%) por causa dos inúmeros calotes e bancarrotas. As pessoas poupam em dólares e os guardam em cofres, fora do sistema bancário, ou seja, há “desbancarização” e/ou “desintermediação financeira”.

Lá, desde 20% dos empregadores até 35% dos trabalhadores não qualificados não possuem contas bancárias. Só 20% do decil mais pobre têm cartões de crédito e 25% do decil mais rico não os possuem.

O Brasil tem uma moeda nacional por causa da baixa inflação (a anual brasileira é metade da mensal argentina) e juros disparatados para depósitos a prazo e títulos de dívida pública. Oferece crédito em moeda local. Os clientes bancários têm confiança nos “big five”, bancos “grandes demais para quebrar”, amparados pelo Banco Central do Brasil para evitar risco sistêmico.

A Argentina destruiu sua moeda nacional com a fuga massiva para o dólar ao oferecer taxa de juro real negativa, dada a elevadíssima taxa de inflação (108,8% em abril de 2023). Há retroalimentação em um círculo vicioso entre dolarização e hiperinflação.

 

 

IHU – Por que, em sua avaliação, é ruim um país não alcançar o pleno capitalismo financeiro? Em que isso seria benéfico para a população?

Fernando Nogueira da Costa – Ignácio Rangel e Maria da Conceição Tavares foram os autores pioneiros em anunciar, na década de 60, que “o Brasil entra em novo estágio, no qual o desenvolvimento não será mais comandado pelo capital industrial, mas pelo capital financeiro”. Alertavam: se a esquerda quisesse entender o que se passava com o capitalismo brasileiro, teria de estudar o capital financeiro.

Para melhorar o bem-estar, o povo brasileiro necessita, sim, dos serviços financeiros para pagamentos, financiamentos e gestão do dinheiro. Para uma economia ser dinâmica, é preciso alavancagem financeira: aumento da rentabilidade patrimonial sobre o capital próprio com uso do capital de terceiros.

 

 

O fato de o Brasil ter uma moeda nacional, aceita como unidade de conta e meio de pagamento 24/7 (vinte e quatro horas durante todos os sete dias da semana), propicia bem-estar social pela segurança e praticidade das ordens digitais para transferências de depósitos à vista. Além de oferecer aplicações financeiras líquidas ou resgatáveis de imediato, a “financeirização” brasileira evita a dramática situação argentina, cujos pagamentos são feitos praticamente só com papel-moeda, inclusive em dólares.

Além de cartões de crédito e financiamentos à aquisição de veículos e outros bens de consumo duráveis, o mais relevante é o financiamento habitacional. Depois de pagas as prestações (ou mesmo antes se forem inferiores ao aluguel pago anteriormente), “alarga” o orçamento familiar, ou seja, cerca de ¼ dele pode ser destinado à acumulação de reservas financeiras. É a melhor política pública para levar à mobilidade social.

 

 

O varejo tradicional (camadas sociais de mais baixa renda) passou de 6,5 milhões de contas em 2016 para 53,5 milhões em fundos e títulos e valores mobiliários em 2022. Isto sem considerar as 79 milhões de contas de depósitos de poupança existentes.

A riqueza financeira desse segmento passou de 13,6% do PIB para 17,6% do PIB no período. O estoque de riqueza do Varejo de Alta Renda cresceu de 11,1% para 14,4% do PIB e o dos ricaços do “Private Banking” foi mais concentrada: de 13,3% para 19,3%.

Por isso, digo: os trabalhadores necessitam de Educação Financeira para, lenta e gradualmente, conseguirem substituir em suas aposentadorias a renda do trabalho por rendimentos financeiros. E protegerem suas reservas financeiras da perda de poder aquisitivo devido à inflação. Diminuem sua pobreza, mas não a desigualdade social, para isso são necessárias políticas públicas como tributação progressiva e financiamento habitacional popular.

IHU – Pode explicar sua ideia sobre a possibilidade de desenvolvimento sustentável no país com base na circulação monetário-financeira entre o agronegócio exportador e os serviços urbano-industriais não exportáveis? Em que aspectos esse modelo seria sustentável?

Fernando Nogueira da Costa – No Brasil, existe a possibilidade de um desenvolvimento sustentado em longo prazo, com base na circulação monetário-financeira entre o agronegócio exportador e os serviços urbano-industriais não exportáveis. O primeiro, em conjunto com a indústria extrativa exportadora, providencia um superávit no balanço comercial para cobrir o déficit na conta de serviços, principalmente, por conta da remessa de lucros e juros pelas multinacionais aqui instaladas em busca de explorar seu atraente (e potencial) mercado interno.

Elas são indispensáveis pela carência de autonomia tecnológica, devido ao atraso educacional e científico no Brasil. A grande maioria da população sobrevive ocupada em atividades de serviços urbanos, onde por definição – um produtor diretamente em contato com o consumidor de seu serviço – a produtividade é baixa.

Por isso, e pela desindustrialização, devido à perda de competitividade diante dos produtos industriais asiáticos, em especial chineses, muito mais baratos, é difícil ter otimismo em relação à possibilidade de uma reindustrialização com maior produtividade, dentro da atual divisão internacional do trabalho. Por ter a sétima maior população no mundo, dedutivamente, o Brasil tem uma baixa renda per capita.

 

 

Mas esse modelo de desenvolvimento pode ser ecologicamente sustentável se incorporar um modelo de consumo em massa no qual a preocupação com a natureza, apesar do uso de recursos naturais, é uma constante.

Dou um exemplo: a integração da produção de baterias de lítio – chamadas de “petróleo branco” –, aproximando-a de suas maiores fontes de extração na Argentina e no Chile, com a produção de veículos elétricos no Brasil é uma oportunidade histórica. Integraria a América do Sul em uma Cadeia Global de Valor (CGV) competitiva e benéfica a todos os demais países latino-americanos em um bloco comercial regional.

IHU – Como avalia o arcabouço fiscal apresentado pelo governo Lula? Quais são suas possibilidades e seus limites no enfrentamento das desigualdades sociais brasileiras?

Fernando Nogueira da Costa – Quanto ao arcabouço fiscal apresentado pelo governo Lula, avalio com meu voto de confiança. Conheço muitos dos membros da equipe econômica e confio neles terem feito o melhor para o país, considerando a limitação de o Congresso Nacional ter uma maioria de direita conservadora. O enfrentamento das desigualdades sociais brasileiras dependerá mais da reforma tributária, de onde certamente não sairá desse Congresso o desejável, mas sim o possível.

IHU – Na pesquisa sobre moeda e banco na historiografia clássica brasileira, o senhor destaca que estes dois personagens-chave, banco e moeda, estão ausentes. O que essa ausência significa e como a interpreta à luz da história brasileira?

Fernando Nogueira da Costa – Através de uma amostra representativa de dez obras clássicas da historiografia brasileira, resolvi pesquisar a presença, ou pior, a ausência de um personagem-chave nas narrativas a respeito da história do Brasil: dinheiro.

Pouco encontrei. Porém, o encontrado se refere a episódios muito relevantes “para entender o Brasil”. É possível isso sem a narrativa histórica sobre (a falta de) dinheiro? É importante o entendimento da razão dessa ausência ou da presença tímida como se não fosse tema relevante ou fosse algo “sujo” a ser jogado na lata de lixo da história.

 


Capa de Capitalismo financeiro tardio (Foto: Reprodução)

 

Para o follow the money (traduzido como “siga o dinheiro”), um bordão em língua inglesa popularizado para iniciar investigações, talvez a maior pista encontrada para explicar a razão dele não estar com papel explícito nas narrativas históricas brasileiras tenha sido dada, indiretamente, quando se identifica a autoridade do patriarca ultrapassar a esfera doméstica e estender-se ao domínio público.

Essa “invasão do público pelo privado” não respeita a hierarquia formal das instituições. O tradicional comportamento patriarcal e personalista dificulta o estabelecimento não só do Estado democrático, mas também a impessoalidade exigida no trato das relações públicas com o pagamento monetário devido, independentemente de com quem for o (con)trato.

A parcialidade familiar seria incompatível com a atitude imparcial diante dos cidadãos, exigida na esfera republicana. Devem-se execrar os privilegiamentos pessoais, infelizmente, uma longa tradição histórica brasileira.

 

 

IHU – Quais as implicações dessa ausência para o Brasil presente?

Fernando Nogueira da Costa – O conhecido conceito de “homem cordial” se refere a um arquétipo “brasileiro” regido pelos sentimentos de amor ou ódio: ou a favor de mim ou contra mim. Obedeceria aos casuísmos do afeto e não às normas impessoais.

Submisso à pregação do catolicismo crítico da usura, “o brasileiro” recebeu, em lugar da impessoalidade do dinheiro, o peso das meras “relações de simpatia”. Isso dificultou a inclusão social de agrupamentos subalternos com base no trabalho assalariado em relação contratual impessoal de troca de atividade prestada por dinheiro.

Pior, perdura a tendência de não achar agradáveis as relações impessoais, exigidas no Estado republicano e na economia de mercado. A “cultura do por favor” procura reduzi-las ao padrão pessoal e afetivo como se todos fossem “amigos” na hora do pagamento sem cobrança do devido.

O “homem cordial” acaba sem distinguir, claramente, entre os domínios do privado e do público. Por isso, quando alcança o poder governamental, se torna patrimonialista, preferindo o favoritismo e o “jeitinho”, tendo aversão à impessoalidade.

Há sérias consequências negativas quando se refere ao trato da coisa pública. As relações pessoa a pessoa, como fossem um favor e não uma obrigação, diante de um direito da cidadania, dificultam ter uma ordem social mais impessoal e racional no país.

 

 

IHU – Entre os autores que trataram do desenvolvimento econômico na historiografia brasileira, quais ainda jogam luzes para o enfrentamento dos problemas atuais do país?

Fernando Nogueira da Costa – O mito fundador da Nação dos brasileiros oculta sua violência atávica, desde o genocídio dos nativos, passando pela tortura dos escravos, até a exploração dos despossuídos de terra e obrigados a mendigar por um salário mínimo nas cidades. É ilusório o desejo do Darcy Ribeiro de nos reconhecermos como “a Nova Roma, porém melhor, porque lavada em sangue negro, sangue índio, tropical. A Nação Mestiça se revelaria ao mundo como uma civilização vocacionada para a alegria, a tolerância e a solidariedade”.

Nepotismo é um termo utilizado para designar o favorecimento de parentes ou amigos próximos em detrimento de pessoas mais qualificadas e merecedoras na nomeação ou elevação de cargos públicos e políticos. Atualmente, este termo indica a concessão de privilégios ou cargos a parentes no funcionalismo público. É diferente de favoritismo ou amicismo, pois este não implica nem mesmo relações familiares com o favorecido, basta ser apenas amigo de parente de um conhecido.

As poucas referências a dinheiro, na historiografia clássica brasileira, dizem muito a respeito da necessidade de nos livrar dos falsos “mitos fundadores”, incapazes de levar à coesão nacional menos desigual, senão igualitária. A história estuda as mudanças e as permanências ocorridas na sociedade. Percebe a relação entre o tempo passado e o presente, por exemplo, os pobres brasileiros continuarem sem dinheiro.

Leia mais