O bolsofascismo brasileiro unifica a direita historicamente repulsiva às transformações sociais. Entrevista especial com Francisco Carlos Teixeira da Silva

Para o professor, não há meias palavras: o que temos vivido nos últimos anos e, especialmente nesta semana, são claras manifestações do fascismo do século XXI no Brasil

Foto: Tânia Rêgo | Agência Brasil

Por: João Vitor Santos | 06 Dezembro 2022

Foram quase quatro anos de incessantes ataques a instituições da República sob um verniz de liberdade e democracia. Como se não bastasse, desde a vitória de Lula nas eleições de domingo, uma massa reacionária luta para subverter o resultado das urnas sob o medo de ver erodir seu projeto de destruição. Para o historiador e professor Francisco Carlos Teixeira da Silva, é preciso ser claro e direto para nomear o que estamos vivendo: a ascensão do fascismo. “Hoje, o fascismo brasileiro se apresenta sob a forma do bolsonarismo, forma de agir político que hegemonizou as direitas dispersas e competitivas no país”, aponta na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Ele explica que essa ascensão fascista não ocorre somente com a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. “Para as direitas no Brasil, a questão central, desde a sucessão de Vargas, em 1954, e depois, na sucessão de Lula da Silva, em 2011 e, novamente, agora em 2022, foi sempre barrar o crescimento das reformas progressistas que ampliam o “demos” da democracia brasileira e a conseguinte ampliação do caráter social da Nova República”, destaca. Ou seja, há muito uma direita nacional não assimila as transformações sociais. Na disputa entre Dilma Rousseff e Aécio Neves em 2014, esse caldo entorna e a direita estreita seu flerte com o fascismo que visa erodir com o sistema democrático para, então, se servir do Estado. O resultado já sabemos qual foi. “Insistimos: as direitas entregaram sua liderança aos elementos mais antipovos e antidemocráticos de suas alas”, reforça o professor.

De outro lado, Francisco analisa como o fascismo adere tão bem a uma certa massa, segundo ele, mobilizando sentimentos de perda. “Ao contrário dos regimes militares clássicos da década de 1960, típicos de ditaduras e ditaduras militares, a atual forma autoritária de solapar a Constituição de 1988 e a Nova República, a forma fascista, é capaz de seduzir amplas massas populares marcadas por ressentimento e pelo sentimento de perda, que pode ser real ou imaginária, derivada quase sempre da ascensão de novos grupos sociais e étnicos que parecem ‘ocupar seu espaço’”, detalha. Essa ameaça viria de “contingentes de negros e pardos, que ameaçariam os privilégios consagrados de uma minoria branca e dominante na formação histórica do Brasil”.

No entanto, para além dessa resistência nefelibata de manifestantes pelas rodovias e quartéis do país, o professor chama atenção para um movimento que tenta realmente inebriar a verdadeira conquista do último domingo. “A pressão da mídia para que o PT assuma uma pauta de frente ampla (…) explicita uma espécie de chantagem das forças derrotadas no seu embate com o bolsofascismo – incluindo aquelas forças que buscaram a criminalização do PT e de seus líderes – incluindo aí as direitas neofascistas para impor ao resultado eleitoral e à vitória de Lula da Silva uma assinatura própria.”, alerta. Isso explica o fato de, mal encerrada a totalização dos votos, tenha começado uma narrativa de que a vitória não é do PT, da esquerda ou tampouco de Lula, mas de uma “união democrática de centro”. “Essa narrativa é negacionista e apaga o papel da resistência das esquerdas e sua capacidade de explicitar e convencer uma imensa parcela da população que a única salvação da democracia, e de valores universais como a dignidade da pessoa e sua inviolabilidade, residiu na resiliência da própria esquerda e de sua liderança histórica”, completa.

Por isso, para o professor Francisco, tão importante quanto evidenciar em alto e bom tom que o que estamos vivendo é um fascismo do século XXI, é explicitar aquilo que até os que se dizem contra o fascismo não querem reconhecer: “somente a existência de uma força de esquerda no arco constitucional brasileiro hoje, como o PT, com fortes raízes populares, e uma liderança com a trajetória excepcional de Lula, permitiu construir um dique contra o avanço do fascismo”.

Francisco Carlos Teixeira da Silva

Foto: Arquivo pessoal

Francisco Carlos Teixeira da Silva é professor titular de História Moderna e Contemporânea e de Teoria Social na Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF e professor titular de História do Brasil no Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – CPDA/UFRRJ. Formado em História e Educação, possui especialização em História do Brasil e mestrado em História do Brasil pela Universidade Livre de Berlim. É doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense – UFF e pela Universidade Livre de Berlim. Realizou pós-doutorado em História Política e Social na Universidade de São Paulo – USP, na Universidade Técnica de Berlim e na Universidade Livre de Berlim. Entre suas publicações, destacamos o livro, escrito com Karl Schurster, intitulado Passageiros da tempestade: fascistas e negacionistas no tempo presente (Cepe, 2022).

 

A entrevista foi publicada originalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU no dia 04-11-2022.

 

Confira a entrevista.

IHU – Diante do que temos vivido no Brasil, podemos afirmar que estamos diante do fascismo?

Francisco Carlos Teixeira da Silva – O fascismo é um tipo de movimento e regime político baseado numa visão hierárquica e autoritária de organização da sociedade, marcado pelo antiliberalismo, pelo antissocialismo (dito marxismo, marxismo cultural ou bolchevismo) e contrário a qualquer forma de alteridade (seja de classe, seja de gênero ou etnia). E conta também com uma prática constante de “reinvenção” do passado através de um forte negacionismo histórico, como negar a existência e o caráter ditatorial do regime civil-militar de 1964 e seus maus-feitos, como a tortura, sequestros e cemitérios clandestinos de opositores do regime.

Muitas vezes também há forte negacionismo científico, como no caso das vacinas durante a Pandemia de covid-19. Ao contrário dos regimes militares clássicos da década de 1960, típicos de ditaduras e ditaduras militares, a atual forma autoritária de solapar a Constituição de 1988 e a Nova República, a forma fascista é capaz de seduzir amplas massas populares marcadas por ressentimento e pelo sentimento de perda, que pode ser real – crise econômica, perda do poder aquisitivo, desemprego – ou imaginária, derivada quase sempre da ascensão de novos grupos sociais e étnicos que parecem ocupar seu espaço, como contingentes de negros e pardos, que ameaçariam os privilégios consagrados de uma minoria branca e dominante na formação histórica do Brasil.

Da mesma forma, para manter e justificar esse sentimento de perda e de ressentimento contra grupos específicos da população – aqueles que demandam cotas raciais, sociais ou outras formas de ações afirmativas –, a fala do regime aponta inimigos úteis, o outro conveniente, para o alvo do cultivo de ódio, para citar Peter Gay, como elemento mobilizador permanente.

Historiador germano-americano Peter Gay é interessante para pensar na ideia do “outro conveniente”, para o alvo do cultivo de ódio

(Foto: Wikipédia)

Essa “fala” fascista não se constitui num “discurso”, posto que não visa a comunicação e o diálogo, e é construída como uma novilíngua que produz uma realidade paralela, baseada no negacionismo e na produção de uma realidade fraudulenta e sem base em quaisquer dados da realidade.

IHU – Como emerge o fascista, o sujeito do fascismo?

Francisco Carlos Teixeira da Silva – Através de um encontro possível na história entre uma série de condições históricas de caráter estrutural – crise econômica, desemprego – e o envolvimento em condições subjetivas, o sentimento de mal-estar resultante do encontro do ressentimento e de “perda” com as condições pessoais de cada um.

Na extrema politização do debate político, sem uma educação política de base, acaba por permitir a transferência dos sentimentos negativos em face da democracia – por exemplo, o aumento da insegurança cidadã, transformações sociais e crise do modelo heteronormativo de família –, que passa a ser acusada de permitir a “decadência” dos valores tradicionais, baluartes de segurança.

Segurança econômica, segurança civil e segurança em face de valores tradicionais são vetores fundamentais da radicalização de amplas camadas sociais – sempre temos que entender o fascismo como um movimento de massas – que se mobilizam em torno de um líder carismático que traz para si a defesa das hierarquias e da ordem, mesmo que sejam valores tão somente imaginados.

IHU – Historicamente, sabemos que tanto o fascismo como o nazismo assumem grandes e nefastas proporções também graças à adesão, ao menos em parte, do tecido social. Como compreender o fato de, depois de conhecer as consequências dessas duas vertentes, vivenciarmos uma espécie de reedição do fascismo, tanto o Brasil como no mundo, em pleno século XXI?

Francisco Carlos Teixeira da Silva – São vários os pontos decorrentes da questão, absolutamente relevante. Em primeiro lugar, reafirmamos a natureza de massas do fascismo, ao contrário das ditaduras civis ou militares, baseadas muito mais na força e na repressão.

Em segundo lugar, o fascismo age através da sedução (schöneschein, para o cientista político Peter Reichel, ou seduzione, na análise de Vitoria Di Grazzie), apontando soluções fáceis e inimigos nomeados por velhos setores conservadores (“petralha”, bolivarianismo, “esquerdalha” etc.) como a origem de todos os males do país. Ou seja, cada fascismo, na sua expressão histórica própria e única, elege o “seu judeu”. Embora o antissemitismo possa ser um fator comum no fascismo, a ressurgência fascista atual, aqui, na Europa ou nos Estados Unidos, escolhe oportunisticamente o seu próprio “judeu”, que pode ser um judeu, um negro, um nordestino, um imigrante ou um homossexual. O que importa é apontar um grupo social, étnico, de opção política ou comportamental como o único a ser extirpado, mandado para campos de concentração ou para “a Ponta da Praia”.

Por fim, em terceiro lugar, devemos distinguir entre os fascismos históricos, aqueles que existiram como regimes, movimentos e/ou partidos depois de 1922 até 1945, e a Ressurgência fascista atual, em especial depois de 1991, com a chamada era do fim das utopias. Os fascismos do nosso tempo nem sempre se dizem fascistas (alguns se denominam pós-fascistas, a “quarta teoria”, depois do liberalismo, socialismo e do próprio fascismo e, muitas vezes, a mídia, embaralhando conceitos, fala em “populismo de direita”, ultranacionalismo ou “nova direita”, como a new right americana). No entanto, em síntese, o que vemos é um forte déficit de estudos de história contemporânea do Brasil e do mundo, a ausência de um debate sério sobre direitos civis e direitos humanos nas escolas e junto aos jovens.

Sem história, o debate piora

A situação atual, com a malfadada reforma da educação, o controle do livro didático e o apagamento/negação da história do tempo presente, tende a piorar a qualidade do debate sobre o fascismo no Brasil, na medida em que o fascismo em ascensão se fortalece, não só no poder executivo do Estado, como foi o caso no governo Bolsonaro, mas também em outras instituições estatais de forma micro, como as polícias, as forças armadas ou a magistratura. Uma parte da academia, da mídia e dos pesquisadores é também responsável na maré montante do fascismo, na medida em que mantemos nossa análise amedrontada em nomear o fascismo enquanto fascismo.

A manutenção do nome como um tema “mal-dito”, evitando-se, por especialismo nominativo, nomear o fascismo e os fascistas como eles mesmos se denominam, citam-se e reconstroem o passado como reais “novos fascistas”, causa confusão e perda de alcance do fenômeno. Isso é uma imensa falha histórica, duradoura, da compreensão da nossa própria sociedade, e a insistência nas versões edulcoradas de um passado pacífico e incruento da história do país reforça o viés autoritário na sociedade.

Negação da ressurgência fascista

Ressaltamos a variedade de conceitos – se, na verdade são conceitos, e não apenas a descrição empírica de um aspecto notável e mais visível da prática política dos fascistas, como a xenofobia, o nacionalismo exaltado ou a demagogia, dita como “populismo”, que passa a nomear o conjunto do fenômeno. Assim, há, em verdade, um esforço metodológico, a começar pela grande mídia internacional, em não nomear a ressurgência fascista como fascista. Nem quando eles levam tatuados no corpo a suástica, como no caso dos supremacistas brancos nos Estados Unidos, ditos apenas supremacistas e nunca o que eles próprios se autonomeiam, nazistas.

Podemos dizer que a fala civilizada no Ocidente, em especial os grandes veículos de comunicação em massa, mas também boa parte da academia e instituições públicas, entra em estado de negação perante o nome fascismo, num ato defensivo, como se o mal-dito pudesse evitar a materialização da maldade. Embora veja o fenômeno, não consegue reconhecê-lo num claro processo de renegação, já que o dizer é uma forma de ser afetado.

Michel Löwy adverte que o uso de conceitos guarda-chuvas, como populismos ou ultranacionalismo, é absolutamente incapaz de dar conta da realidade complexa do fenômeno dos fascismos, servindo bem mais para ampliar a confusão conceitual. O uso de um pseudoconceito científico como estes, entendido como uma forma antissistema e antielitista, acaba por validar os movimentos fascistas perante um determinado público e mesmo torná-los simpáticos. Opera-se, em verdade, uma amálgama consciente por parte de cientistas políticos e ideólogos liberais, visando desqualificar qualquer forma política que não seja o centro liberal, denominando formas de esquerda e da direita fascista igualmente como “fascismo” e, ao mesmo tempo, as ações fascistas são irresponsavelmente subestimadas.

Para Löwy, ao usarmos conceitos guarda-chuva, somos incapazes de dar conta da complexidade dos fascismos de nosso tempo

(Foto: Wikipédia)

IHU – No caso brasileiro, podemos considerar que havia, no tecido social, um espírito fascista adormecido? Como, a partir de nossa história, podemos compreender tamanha adesão a essa vertente do fascismo, apresentada nas vestes do bolsonarismo?

Francisco Carlos Teixeira da Silva – As fontes do fascismo brasileiro são várias e diversas: temos as fontes internas de caráter histórico, como o integralismo, da AIB; o nazismo, do Partido Nazista brasileiro, o segundo maior fora da Alemanha (depois do Partido Nazista americano, o Bund) na década de 1930 e, claro, o fundo conservador, racista, misógino e heteronormativo da sociedade brasileira, tendo no escravismo, como lembra Joaquim Nabuco, o traço marcante.

A estes elementos históricos devemos somar o renascimento do neointegralismo, muito ativo, por exemplo, no Rio de Janeiro; o “contágio” e a autoidentificação com a maré montante dos fascismos mundiais e, muito especialmente, as relações entre o trumpismo e o bolsonarismo. Por fim, depois da década de 1980, o novo ativismo fundamentalista cristão, também importado dos Estados Unidos (conforme o professor Fábio Py).

Todas estas vertentes se unem na construção de um forte bloco de direitas no Brasil. Ao contrário dos casos da Espanha, Alemanha ou Argentina (mas, semelhante ao caso italiano), as direitas no Brasil se organizaram em torno dos grupos mais radicais e extremistas, como o bolsonarismo, levando ao desabamento do centro – não o centrão – democrático e criando risco existencial para a Nova República.

IHU – Atualmente, o bolsonarismo e o fascismo podem ser compreendidos como sinônimos? Quem apoia Jair Bolsonaro é necessariamente bolsonarista, logo, fascista?

Francisco Carlos Teixeira da Silva – Hoje, o fascismo brasileiro se apresenta sob a forma do bolsonarismo, forma de agir político que hegemonizou as direitas dispersas e competitivas no país. Assim, foi quebrando uma linha tendencial, desde a Quarta República (1945-1964) e a Nova República, de forte concentração eleitoral de centro-esquerda no país: Getúlio Vargas, JK, João Goulart até 1964 e, então, FHC, Lula e Dilma e, de volta, Lula da Silva, com as exceções de Jânio Quadros e Fernando Collor de Mello, que não conseguiram terminar seus mandatos e, ainda, Michel Temer, levado ao poder por um golpe parlamentar.

Para as direitas no Brasil, a questão central, desde a sucessão de Vargas, em 1954, e depois, na sucessão de Lula da Silva, em 2011 e, novamente, agora em 2022, foi sempre barrar o crescimento das reformas progressistas que ampliam o “demos” da democracia brasileira e a conseguinte ampliação do caráter social da Nova República. Para isso, insistimos, as direitas entregaram sua liderança aos elementos mais antipovos e antidemocráticos de suas alas.

Entretanto, tais setores desviaram o foco da política das transformações sociais e do combate às desigualdades sociais para uma política voltada à questão do combate à corrupção, tema que substitui e explica, restritivamente, o debate sobre a pobreza, a fome e o desemprego no Brasil. A despolitização do “demos” brasileiro, obcecado pela pauta conservadora montada em torno da corrupção, a perda do papel de educador de massas do PT enquanto no poder, permitiu que o individualismo possessivo, o elogio da meritocracia e a sacralização dos costumes conservadores contagiassem uma vasta parcela da população.

A volta fascista

Esta volta fascista, imensamente grande, se explica pela

(a) ausência de um debate claro sobre o próprio fascismo;

(b) a renúncia ao papel educador dos partidos de esquerda e

(c) a ausência de alternativas culturais dirigidas aos adolescentes e jovens, relegados, nas áreas muito populares, ao trabalho fundamentalista das novas igrejas ativistas.

IHU – O senhor já tratou disto, mas gostaria de retomar com mais vagar: como o fascismo atual é gestado no interior da direita, que, por sinal, se radicaliza numa extrema-direita?

Francisco Carlos Teixeira da Silva – Como vimos acima, a radicalização das direitas no Brasil decorre da perfeita consciência que, pelo processo eleitoral comum e pluralista, não chegariam ao poder, mesmo em eleições tão acirradas com o uso maciço da máquina do Estado, e que o velho método, o golpe e o regime militar, é por demais custoso. Assim, incorporaram ao seu projeto político uma forma radicalizada, antidemocrática, porém popular, de conquista do Estado. Daí a construção de uma novilíngua, uma espécie de socioleto próprio do fascismo, numa versão brasileira, para servir de forma de identificação e de comunicação entre suas hostes.

Essa síntese absoluta do idioma fascista, operada por síncopes sucessivas do sintagma que se reduz a um único vocábulo: “vocês já sabem o que eu penso sobre tudo isso que está aí!” / “Tudo isso que está aí!”/ “Tudo isso!”, “Ok!” que assume o aspecto de código linguístico que é imediatamente decodificado pelo auditório, embora possa parecer uma fala descoordenada e assindética para aqueles que não estão sintonizado com a linguagem totalitária, mas faz sentido para as massas e para o nível político desenvolvido pelo fascismo. Opera da mesma forma que o fascismo histórico, quando Benito Mussolini dirigia-se a multidão, em suas grandes concentrações, com fórmulas sintéticas, de grande efeito e capazes de causar movimentos imediatos, como as famosas expressões “Me ne frego” / “Não me importo!”! / “Io tiro dritto” / “Vamos em frente!” / “Chi si ferma è perduto” / “Quem para, está perdido” / “Tanti nemici, tanto onore” / “Tantos inimigos, maior honra!”.

Em enfim, uma somatória de lugares comuns, de uma falsa sabedoria de base popular, acessível a todo e qualquer auditório e de uso universal e que deveria explicitar uma grande sabedoria, como a rejeição absoluta ao “tudo isso aí!”, sem nenhuma necessidade de maior explicitação. O adversário político, transformado em inimigo a ser eliminado, desentocado, desratizado, é simplesmente descrito como “va-ga-bun-do”, seja ele um político, um professor, um artista, um sindicalista, pouco importa.

IHU – Qual sua análise sobre os efeitos dessa onda fascista sobre o sistema político brasileiro? Como podemos compreender o esfacelamento de partidos como o PSDB e a ojeriza que cria com relação ao PT e aos partidos de esquerda?

Francisco Carlos Teixeira da Silva – A principal consequência no mapa político brasileiro do governo Bolsonaro vai além do próprio Bolsonaro e se projeta no futuro. Insistimos em sublinhar o desabamento do centro democrático, em especial de um importante partido de quadros como o PSDB, que sai das eleições de 2022 muito menor que sua trajetória histórica. Da mesma forma, o inchaço de partidos como União Brasil ou mesmo do PL, sem quaisquer explicitações ideológicas, programática ou uma visão de mundo que abarque um projeto de futuro para o Brasil, testemunha que a artificialidade da estrutura partidária brasileira.

Da mesma forma, a pressão da mídia para que o PT assuma uma pauta de frente ampla – e, note bem, não de uma frente popular, uma frente antifascista ou uma frente democrática – explicita uma espécie de chantagem das forças derrotadas no seu embate com o bolsofascismo – incluindo aquelas forças que buscaram a criminalização do PT e de seus líderes, também inclusas as direitas neofascistas para impor ao resultado eleitoral e à vitória de Lula da Silva uma assinatura própria. Derrotados na luta interna no campo das direitas, os que abandonaram o barco na vigésima quinta hora, querem, agora, construir a narrativa própria da derrota do bolsofascismo.

Assim, na narrativa que já se constrói em 24 horas após a derrota do bolsofascismo, a vitória, difícil e acirrada, seria fruto não da campanha do PT e, mesmo, de Lula da Silva, mas da união democrática do centro em torno de um candidato que deve, cada vez mais, se afastar de suas origens populares. Essa narrativa é negacionista e apaga o papel da resistência das esquerdas e sua capacidade de explicitar e convencer, uma imensa parcela da população, que a única salvação da democracia, e de valores universais como a dignidade da pessoa e sua inviolabilidade, residiu na resiliência da própria esquerda e de sua liderança histórica.

IHU – Como avalia as forças políticas que reagem contra o fascismo de nossos tempos? Podemos compreender essas forças como de esquerda?

Francisco Carlos Teixeira da Silva – Reforço o argumento anterior: somente a existência de uma força de esquerda no arco constitucional brasileiro hoje, como o PT, com fortes raízes populares e uma liderança com a trajetória excepcional de Lula, permitiu construir um dique contra o avanço do fascismo. O centro político brasileiro capitulou em 2013-2014 na defesa da democracia e articulou-se, em 2016, num golpe contra a própria democracia e embarcaram com alegria – e o orçamento secreto – no governo Bolsonaro. Agora, formulam essa nova narrativa de um mandato que não seria do PT e nem do candidato vencedor, e sim de uma frente ampla na qual eles mesmos estabeleceriam a pauta.

Assim, como o espaço político das direitas tradicionais dinamitado na topológica esquerda-direita, opera-se uma própria negação da dicotomia esquerda-direita em favor do vaguíssimo “campo da democracia” como um espaço partilhado e de pertença comum. Em verdade, boa parte das direitas no Brasil – empresarial, militar, religiosa, partidária – abriu mão dos valores universais de homens e mulheres e abdicaram do campo democrático. Incluímos neste processo o papel da mídia brasileira, empresarial e corporativa no processo de criminalização dos movimentos sociais – o MST e MTST à frente –, dos sindicatos e entidades da sociedade civil.

Na verdade, a liderança das esquerdas no Brasil foram as responsáveis por salvar a democracia no país, incluindo a salvação do própria direita não fascista, duramente atingida na sua natureza democrática depois de 2016 ao se deixar liderar pelo fascismo em ascensão. É essa narrativa forjada pela mídia e pelas direitas tradicionais e o fisiologismo que ameaçam com a paralisa no Congresso Nacional e exigem a continuidade das reformas que interessam ao capital, aos setores dominantes durante a própria hegemonia do bolsofascismo.

A fala apoteótica de Lula, na Avenida Paulista, priorizando o combate à pobreza, à fome e a luta contra as desigualdades sociais extremas existente no Brasil, escapa dessa armadilha de “todos juntos” e poderá explicitar as diferenças fundamentais entre esquerda-direita, hoje, no Brasil.

IHU – Como podemos compreender a ideia de liberdade propalada pela extrema-direita, mas que se converte em opressão ao diferente, em cerceamento ao diálogo?

Francisco Carlos Teixeira da Silva – Tanto na Itália, em 1922, como na Alemanha, em 1933, o fascismo se apropriou e ressignificou o sentido de liberdade, abandonando sua formulação clássica seja na Declaração de Direitos do Homem, da Revolução Francesa, de 1789, e do Preâmbulo da Constituição dos Estados Unidos, de 1788. Em ambos os casos, tratava-se de um direito inalienável à felicidade, em resistir a todas as formas de tirania e de recorrer, no extremo, à revolução para assegurar a felicidade geral.

Nos fascismos, a liberdade se tornou um recurso para não cumprir as leis, em especial as constituições democráticas, e favorecer o clímax de um individualismo possessivo egoísta e desumano. A liberdade fascista não dá as mãos a fraternidade ou solidariedade, sendo um valor único, baseado num mundo individualista, competitivo e possessivo. Tal estelionato ideológico foi, desde as origens do nazismo, incentivado pelo próprio Hitler. Por decisão sua, documentada num livro muito pouco conhecido, estudado ou citado, de autoria do advogado e conselheiro da chancelaria do Reich junto a Hitler, Henry Picker, que servia de estenógrafo pessoal do ditador alemão, chamado Hitler’s Tisch-Gespräche – “diálogos à mesa com Hitler” –, uma série de anotações feitas diretamente com o Führer alemão durante as refeições, quando ele detalhava suas políticas e suas intenções.

Nestes diálogos, Hitler explica suas decisões pessoais de usar, no Partido Nazista, as cores vermelhas, os símbolos e canções com acordes muito próximos daquelas do SPD/Partido Social-democrata e, mesmo do KPD/Partido Comunista Alemão – os socialistas e os comunistas alemães –, visando confundir propositalmente os militantes de esquerda. O Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, NSDAP, tomou essa designação inclusive, a cor vermelha em sua bandeira e várias formas de agir do Partido Social-democrata Alemão, socialista, buscando exatamente confundir, atrair e enganar parte da população trabalhadora alemã em virtude da grande popularidade que o socialismo tinha na Alemanha após a Grande Revolução de 1917, na Rússia. Assim, Hitler, conscientemente, cometia um estelionato político e ideológico, copiando astutamente a simbologia adversária para atrair incautos e confundir a grande massa não organizada da população alemã.

IHU – O processo eleitoral desse ano tem gerado cismas na sociedade. Nesse sentido, que Brasil deve haver depois de tudo isso? Quais os desafios para reorganizar uma nação fraturada?

Francisco Carlos Teixeira da Silva – A fala de Lula na Avenida Paulista, atribuindo ao povo brasileiro a vitória da democracia, nos dá algumas pistas da hercúlea tarefa de:

(a) reconstruir o país, acabar com a fome e a pobreza extrema e

(b) manter um governo estável e funcional.

A dificuldade do bolsofascismo em aceitar os resultados eleitorais e a formação de bolsões de rebeldia contra a Constituição – como os bloqueios de estradas, vandalismo e agressões – mostram, no entanto, que o fascismo não é uma força/ideologia do âmbito do arco constitucional. Não cabe, devemos destacar esse ponto, tratar o fascismo como mais uma força política no regime democrático. O fascismo é democraticida.

Os responsáveis por atos antidemocráticos e desumanos – desde a tentativa de fraudar as eleições até os crimes contra a humanidade cometidos durante a pandemia – devem ser punidos, evitando o erro da conciliação nacional do Decreto da Anistia de 1979, caminho que com certeza nos trouxe atual situação. O exemplo da Lei Democrática da Memória, da Espanha, de 2007, e sua atualização em 2022, impondo penas graves para a negação da história da guerra civil e do franquismo, é um modelo que deveria ser estudado no Brasil.

IHU – O senhor realizou grande parte de seus estudos na Alemanha. Pela sua experiência nesse país, como analisa a forma como que os alemães fazem a memória do nazismo?

Francisco Carlos Teixeira da Silva – Na Alemanha, houve a perda da soberania nacional, de 1945 a 1949, quando não existia um Estado alemão. Na verdade, emergiram da derrota – die Katastrophe – dois estados alemães, e coube às autoridades de ocupação, cada um em sua zona, o processo de desnazificação – entnazifierung. Em algumas regiões, foi um processo muito profundo, voltando-se para os setores não só diretamente envolvidos em atos e crimes contra a humanidade, como os membros do Partido, das SS e das SA. Mas voltou-se também contra grandes industriais e capitalistas que financiaram a derrocada da democracia no país.

Em seguida, coube ao Ministério Público alemão, ou seu equivalente, e a Corte Constitucional de Karlsruhe a defesa da constituição contra os extremismos e, muito especial, contra a ressurgência do fascismo. No Brasil, nós aceitamos a via espanhola, com a anistia de 1977, copiada no Brasil em 1979, como forma de conciliação nacional. Há, assim, apagamento da história e a ausência de punições – diferentemente da Argentina, onde os democraticidas foram para a prisão, ou da África do Sul, onde os responsáveis foram levados a admissões de culpa e pedidos públicos de perdão à nação.

IHU – Em um dos seus estudos, o senhor foca na temática da miséria no Sertão. Como podemos compreender a resistência e a potência do sertanejo nesses contextos de miséria e em que medida isso pode nos inspirar acerca da resistência em nosso tempo?

Francisco Carlos Teixeira da Silva – Essa dualidade de campos de estudos – a sociedade agrária no Brasil e a ressurgência fascista – apresenta-se um tanto estranha no Brasil, onde a trajetória dos pesquisadores volta-se, em grande parte, para um foco cada vez mais específico. Na verdade, desde os primeiros tempos de estagiário, em 1976, junto a Maria Yedda Linhares, entendi seus argumentos sobre a permanência do monopólio do poder e da persistência das desigualdades sociais no Brasil.

A historiadora Maria Yedda Linhares (1921-2011) é uma das referências para o professor Francisco

(Imagem: reprodução Wikipédia)

Esse foi o quadro geral dos ensinamentos de Maria Yedda, cuja biografia deve ser lançada em dezembro de 2022, por Ana Callado. Claro, a leitura das fontes, sua crítica, a produção dos documentos como fonte, desde o século XVIII, na minha tese de doutorado, ou século XIX, na dissertação de mestrado, Maria Yedda me ensinou a debulhar cada fonte e indagar as épocas históricas e suas mentalidades.

Da mesma forma, com Yedda Linhares e Darcy Ribeiro, com quem tive os melhores anos de trabalho na minha vida, entendi a proposta de libertação do brasileiro de travas multisseculares de exploração e do papel da educação, no dizer de Anísio Teixeira, como forma central de emancipação popular. Yedda, Darcy, Paulo Freire, todos ex-alunos de Anísio Teixeira, são balizas fundamentais da emancipação e libertação do povo brasileiro e fonte central da minha própria formação enquanto historiador e educador. A potência do povo brasileiro, no Sertão, nas periferias, na floresta e nas cidades é a grande esperança do Brasil. Contudo, isso só acontecerá com uma política de educação e cultura que permita a autonomia de cada brasileira e brasileiro, longe das tutelas fundamentalistas.

IHU – O senhor também tem refletido sobre a invasão da Rússia à Ucrânia. O que esse conflito revela sobre a atualidade? Que relações podem fazer entre o fascismo e outros regimes totalitários?

Francisco Carlos Teixeira da Silva – O conflito no Leste europeu é uma guerra de continuação da Guerra Fria, com largos interesses no Ocidente – a queda turbinada de Liz Truss na Grã-Bretanha é um episódio desta guerra, dada a ação direta dos britânicos nos atos bélicos na Ucrânia. Lá, dois princípios se opõem: a soberania absoluta dos Estados-nação e o princípio de autodeterminação dos povos.

Ao que parece, a Europa ocidental e os Estados Unidos, incluindo os social-democratas e os verdes alemães, optaram pelo direito soberano absoluto dos Estados, desconhecendo o direito de autodeterminação dos povos.

IHU – Olhando em perspectiva ao passado ocidental, podemos afirmar que o fascismo foi vencido?

Francisco Carlos Teixeira da Silva – Não, infelizmente enquanto tivermos uma sociedade injusta, desigual e marcada pelo individualismo possessivo, o fascismo estará disponível como uma resposta fácil aos problemas complexos da moderna sociedade de massas.

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