“Lula tem prestígio e carisma para liderar um pacto de reforma econômica e social que promova no Brasil as transformações de que o país carece”. Algumas análises

Nas entrevistas a seguir, pesquisadores de diferentes áreas comentam o resultado das eleições presidenciais e os desafios do próximo governo

Foto: Rovena Rosa | Agência Brasil

31 Outubro 2022

A vitória do ex-presidente Lula na disputa eleitoral do segundo turno, com 50,9% dos votos, indica a possibilidade de uma "reorientação" política para enfrentar velhos e novos problemas do país. Para refletir sobre os desafios do novo governo, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU entrevistou os pesquisadores a seguir, que avaliam o processo eleitoral como um todo e apontam alguns caminhos para atender às demandas sociais, econômicas e ambientais da sociedade.

Entre os desafios urgentes e de médio e longo prazo, que não são apenas do governo, mas do país como um todo, eles destacam a prioridade de resolver a questão da fome e do desemprego, pacificar o país, gerar um ambiente de unidade nacional, criar uma política de reindustrialização nacional, elevar rapidamente o bem-estar social da população, resgatar a confiança de quem vive do trabalho, reverter as políticas ambientais em torno do desmatamento da Amazônia e as invasões das terras indígenas. 

As entrevistas foram originalmente publicadas pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, no dia 31-10-2022.

Confira as entrevistas.

José de Souza Martins é graduado em Ciências Sociais, mestre e doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo – USP. Foi professor visitante da Universidade da Flórida e da Universidade de Lisboa e membro da Junta de Curadores do Fundo Voluntário da ONU contra as Formas Contemporâneas de Escravidão, de 1998 a 2007. Foi professor da Cátedra Simón Bolívar, da Universidade de Cambridge (1993-1994) e atualmente é professor titular aposentado da USP

Entre suas obras, destacamos Exclusão social e a nova desigualdade (São Paulo: Paulus, 1997), A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala (São Paulo: Contexto, 2000), Linchamentos: a justiça popular no Brasil (São Paulo: Contexto, 2015), Do PT das lutas sociais ao PT do poder (São Paulo: Contexto, 2016) e Sociologia do desconhecimento: ensaios sobre a incerteza do instante (Unesp, 2021).

 

José de Souza Martins durante Aula Magna na Unisinos (Foto: Frame do YouTube)

IHU – Que análise faz do processo eleitoral?

José de Souza Martins – O processo eleitoral de um possível segundo mandato de Jair Messias Bolsonaro começou antes mesmo de sua primeira eleição em 2018. E se desenvolveu durante todo seu governo. Ele não governou. Entregou a governança aos ministros, omitindo-se em relação a problemas graves, como o da pandemia.

Fala-se muito no “partido militar” como sendo a força oculta por trás do governo Bolsonaro. Essa evidente omissão do presidente, a frequência com que a visibilidade pública do governo ficou reduzida a atos de sua exibição em manifestações, como as motociatas, parece confirmar que alguém governava enquanto o presidente se exibia indevidamente, especialmente nas horas mais graves da situação nacional.

Sugiro que se preste atenção nos discursos do general Hamilton Mourão da fase da campanha eleitoral, os de 2017 e 2018.

Ele pretendia ser o candidato a presidente pela facção autoritária, mas acabou aceitando que a crescente visibilidade de Bolsonaro o tornava o inevitável candidato do partido militar e das facções autoritárias que reemergiram no Brasil no rastro das ambições de poder que sobraram da ditadura militar, ocultas nos interstícios da democracia pós-ditatorial.

Ele falou, fardado, várias vezes, em lojas maçônicas em Brasília e no Rio de Janeiro. Deu entrevistas e ressaltou que o objetivo da candidatura Bolsonaro era o de desmontar o Estado e desconstruir instituições e conquistas sociais.

Os membros secretos ou ocultos do governo têm sido colegiado da reeleição antes da eleição e da campanha eleitoral que dura desde o dia 1º de janeiro de 2019.

O processo eleitoral desses anos todos se desenrolou como sucessão de episódios de transgressão da normalidade constitucional, das leis, dos valores e dos direitos sociais. Tudo execução de um programa que é o retrato avesso das conquistas dos governos de FHC e de do PT.

Nos quatro anos de campanha eleitoral de Bolsonaro e dos bolsonaristas, o que se fez foi a desconstrução das grandes conquistas do povo brasileiro. Nada propor, tudo destruir, foi o programa da pregação autoritária. Aliciar grupos extrapolíticos, como igrejas fundamentalistas, os militares saudosos da ditadura, os estranhos ao processo político, todos expressões e sujeitos das anomalias do Estado brasileiro e do processo político brasileiro.

Esse grupo ditatorial foi o protagonista de apoio das várias transgressões da ordem praticadas pelo próprio presidente da República e tentativas de criação de situações de golpe de Estado. Nesse sentido, Lula e os grupos políticos que formaram a frente democrática que venceu a eleição neste 30 de outubro não tiveram interlocutor para antepor-lhe um projeto alternativo e, desse modo, disputar a opção de todo o eleitorado.

O largo número dos que quase promoveram a permanência da frente autoritária no poder exprime justamente a alienação que fundamenta o poder do bolsonarismo e das anomalias de seu modo de fazer política. É nesse sentido que se pode dizer que Bolsonaro se sustentou como candidato enquanto porta-voz de coisa nenhuma. O projeto político de Bolsonaro é ele mesmo. O que privou seu oponente, Lula, de propor a todo o eleitorado seu discurso propositivo, que tivesse sentido para a metade do eleitorado incapaz de ouvir e de entender. 

É que as insuficiências da sociedade brasileira dão precedência aos poderosos, legítimos ou não, na definição das situações sociais do ouvir e do dizer. Portanto, no debate político, e isso ficou claro nesta campanha, os interlocutores e debatedores não têm discursos políticos equivalentes. Nesse sentido, aqui, quem tem poder, tem o poder de definir o sentido do que o outro diz e o outro, por mais legítima que seja sua condição de autor de discurso, não tem condições de definir o sentido do próprio discurso.

É muito significativo que o discurso feito por Lula, alguns minutos depois do anúncio oficial de sua eleição, não tenha sido o núcleo de toda sua campanha eleitoral. E não o foi porque esse discurso, um discurso de estadista, é expressão do vazio político do bolsonarismo, o de um governo que tem sido apenas uma sequência de transgressões justificadas para fazer com o que o governo preencha esse vazio. Bolsonaro criou a lógica antipolítica de criar um vazio político para culpar o adversário por sua existência. Grande parcela do povo, admirador do vazio, portanto, fica sem condições de superar sua alienação para compreender as necessidades sociais que pedem a eficácia da ação política que o preencha. 

IHU – Quais os desafios mais urgentes do governo?

José de Souza Martins – O mais importante é o de recriar as bases de significação do discurso político para nele situar a compreensão da práxis de um governo de frente democrática liderado por Lula. Isto é, as bases de referência das medidas prioritárias e de urgência de um novo governo.

Esse não será um governo petista nem lulista, mas o governo da coalizão democrática de resistência contra o que Bolsonaro e o bolsonarismo representam. Não poderá ser um governo ideológico. Em tese, um governo largamente de centro-esquerda. Um governo de oposição ao governo e ao projeto anticapitalista do bolsonarismo. Isso porque o governo Bolsonaro tem sido um governo que governa em nome dos interesses econômicos do capitalismo rentista, isto é, ambientalmente predatório e antissocial, um capitalismo subcapitalista, baseado na lucratividade das insuficientes, imperfeições e anomalias do lucro anômico. O capitalismo da chamada exclusão social, que é de fato o da inclusão social perversa, que não faz da vítima um membro da sociedade, um destinatário do que o capitalismo é capaz de criar.

O governo Bolsonaro é expressão de um modelo de economia sem desenvolvimento econômico com desenvolvimento social. O novo governo terá que recriar as bases de um capitalismo de estilo clássico, de inspiração keynesiana, criador de emprego e renda. Terá que ganhar o apoio do empresariado que se deixou seduzir por ganhos enormes no curto prazo contra o modelo civilizado do lucro regulado pela função social do capital. 

Terá que repor nos quatro anos do mandato desta eleição o que foi usurpado, sonegado, desperdiçado e destruído no governo que acaba.

A grande dificuldade será de consertar o que foi destruído e realizar o possível que não foi realizado. Atender as necessidades sociais que foram desdenhadas, compreender e viabilizar as carências radicais que surgiram das transformações econômicas e sociais das últimas décadas e não foram atendidas: a de superação da fome, da pobreza, das condições adversas de uma humanidade residual que passou a viver destituída de condição humana, no abandono dos moradores de rua, dos favelados, dos moradores de cortiço, dos catadores de comida no lixo. Milhões de pessoas, neste país, estão à espera de um governo que lhes restitua o que lhes foi tirado, a comida, a habitação, a educação, o emprego, a esperança e a própria fé.

Tudo no Brasil, durante o regime bolsonarista, tornou-se mais urgente. Não há como escalonar e demorar.

IHU – Quais são os caminhos para enfrentar esses desafios?

José de Souza Martins – Lula tem prestígio e carisma para liderar um pacto de reforma econômica e social que promova no Brasil as transformações de que o país carece. O caminho é político. Embora o bolsonarismo e o partidarismo fisiológico tenham, nestas eleições, ampliado significativamente sua presença no Congresso Nacional e um governo progressista, como este agora eleito, vá enfrentar dificuldades, o Poder Executivo tem, no Brasil, como impor condições de negociação política para obter apoio para medidas reformistas necessárias bem como terá como convencer os políticos a trocarem suas próprias metas municipalistas por metas econômicas e sociais.

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Henrique Costa é doutor em Ciências Sociais na Universidade Estadual de Campinas  Unicamp, mestre em Ciência Política e graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo  USP. É autor do livro Entre o lulismo e o ceticismo: um estudo com bolsistas do Prouni de São Paulo (São Paulo: Alameda, 2018), baseado na etnografia política com bolsistas do Prouni, tema de sua dissertação de mestrado. Ele concedeu a entrevista “A esquerda optou pela obsolescência da transformação social e se rendeu à ideia de que as coisas são feitas aqui e agora” à IHU On-Line em 2016, quando a pesquisa estava sendo realizada. 

Henrique Costa

Foto: Arquivo pessoal

IHU – Que análise faz do processo eleitoral?

Henrique Costa – O processo eleitoral foi obviamente contaminado pelos escandalosos atos de violência política cometidos sobretudo por bolsonaristas com grande proximidade com o presidente. Não se trata de "falsa equivalência": o bolsonarismo é fundado em diversos tipos de violência, seus principais representantes deram demonstrações nesse sentido  Jefferson e Zambelli como seus exemplos mais grotescos , fora suas relações com as milícias. De modo que o extremismo de Bolsonaro e o apelo democrático da "frente ampla" liderada pelo PT reduziram o debate público à vaguidão de propostas, às ofensas e calúnias. O fato é que Lula se sentiu à vontade para não se comprometer publicamente com nenhuma proposta e isso foi suficiente para ganhar a eleição, mas sua vitória por margem apertada e uma oposição mais combativa, tanto no Congresso como na sociedade, devem continuar lhe dando dor de cabeça. 

IHU – Quais os desafios mais urgentes do futuro governo?

Henrique Costa – Resgatar a confiança de quem vive do trabalho. Isso significa, a partir do que se viu na campanha, reconstruir pontes com microempreendedores ao mesmo tempo que restabelece direitos trabalhistas. Não é um desafio fácil, pois trabalhadores por conta própria, pequenos comerciantes e sindicatos têm entendimentos diferentes do que significa hoje direitos e cidadania. Lula terá que se equilibrar entre demandas por desburocratização e redução de impostos, por um lado; e seus aliados históricos que têm horror à mera menção de estimular o empreendedorismo e esperam, entre outras coisas, o retorno do imposto sindical. Isso tudo com a expectativa de altos investimentos no SUS de todas as partes, em especial.

IHU – Quais são os caminhos para enfrentar esses desafios?

Henrique Costa – Creio que Lula fará um movimento em direção ao empreendedorismo popular, inclusive porque através dele é possível dialogar com outras bases, como a evangélica. Outros compromissos com a agenda trabalhista tradicional dependem de uma economia mais sólida e de negociações legislativas que revertam, por exemplo, a reforma trabalhista de Temer, não devem ser conseguidos rapidamente. 

IHU – Deseja acrescentar algo?

Henrique Costa – É preciso salientar que a hostilidade que se instalou na sociedade, em que até mesmo crianças foram envolvidas, indica que este processo pode não ser resolvido com meras boas intenções e chamados à união nacional: há dois projetos antagônicos de sociedade e de país que estão entranhados na sociedade, em que temas morais, religião e empreendedorismo os estruturam. Neste momento, o projeto bolsonarista, apesar de derrotado eleitoralmente, parece mais orgânico, pois o legado da esquerda está exclusivamente no carisma de Lula com os mais pobres. O destacado papel do TSE, especialmente na figura do ministro Alexandre de Moraes, ainda precisa ser discutido com mais profundidade, pois não basta se ater a uma mera questão procedimental e questionar se suas atribuições foram excedidas, com vista à manutenção do processo democrático.

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Alonso Gonçalves é doutor e mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo  UMESP, autor da tese “Por uma teologia protestante das religiões: uma proposta teológica latino-americana em diálogo com a visão trinitária de Jürgen Moltmann”, e graduado em Filosofia pelo Instituto de Ciências Sociais e Humanas do Centro de Ensino Superior do Brasil  ICSH/CESB e em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de Campinas  FTBC/FAETESP. 

Pastor na Primeira Igreja Batista do Limoeiro, São Paulo/SPGonçalves desenvolve assessoria bíblica e teológica em comunidades religiosas e encontros ecumênicos. Também atua como docente em Seminários e Faculdades de Teologia e integra os Grupos de Pesquisa “Espiritualidades Contemporâneas, Pluralidade Religiosa e Diálogo”  ANPTECRE/SOTER, “Religião e vida cotidiana: interpretações historiográficas e teológico-literárias”  UMESP e “Paul Tillich de Teologia e Cultura”  UMESP.

 

Alonso Gonçalves

Foto: Arquivo pessoal

IHU – Que análise faz do processo eleitoral?

Alonso Gonçalves – Das eleições que tive oportunidade de acompanhar, essa foi a mais tensa. Em 2014, tivemos Aécio Neves questionando a vitória de Dilma e abrindo um precedente que veríamos ser recorrente. Quando o então candidato colocou em dúvida a lisura das urnas eletrônicas sem provas, percebi que aquele poderia ser o começo de um processo de instabilidade democrática no país. Não sem razão, que o atual presidente, antes e depois, ao longo do seu mandato, questionou as urnas e fez algo inimaginável para um chefe de governo: convocar embaixadores para tecer críticas inverídicas sobre o processo eleitoral brasileiro e a insegurança das urnas.

Ainda que seja uma estratégia do segmento de extrema-direita, assim como foi Donald Trump nos EUA, a indicação de alguns integrantes do governo e filhos do presidente “sugerindo” o adiamento do segundo turno por ocasião do suposto boicote das inserções em rádios no Nordeste, significou que a estratégia continua a mesma: questionar o pleito e colocar sob suspeição a Justiça Eleitoral. Felizmente isso não prosperou, principalmente depois do ministro Fábio Faria vir a público e dizer que se arrependeu de ter dado a entrevista sobre as inserções.

Além dessas questões pontuais, percebi que as fake news não chegaram de maneira maciça como foi em 2018 em grupos de conversas. As plataformas filtraram muitas informações falsas, mas a fábrica dessas informações estava a pleno vapor e o TSE não deu conta de tantas que foram ao ar. Ainda assim, minha percepção foi que o eleitor e a eleitora estavam focados no seu dia a dia e como as coisas poderiam melhorar com um novo presidente. Se em 2018 a operação Lava-Jato pautou a escolha do eleitor em um candidato que não tinha partido, não tinha história e não tinha proposta; nesta eleição, mais da metade do país entendeu que o momento foi dar prioridade à civilidade, em lugar da barbárie, da democracia em lugar do fascismo abrasileirado, do pobre e seus direitos trabalhistas em lugar do neoliberalismo do Ministério da Economia. 

A questão é que o bolsonarismo irá continuar, resta saber quem ocupará o espaço que o atual presidente está deixando. Até porque, uma parte considerável dos eleitores entenderam que a condução do atual presidente merecia mais quatro anos. O Bolsonarismo é maior que o presidente.

Quanto aos evangélicos, foi a primeira vez que houve uma orquestração de líderes midiáticos em favor de um candidato de maneira maciça. Com a derrota de Bolsonaro, a igreja evangélica, ou boa parte dela, entra em um certo colapso “teológico”. Isso porque houve quem jejuou dois períodos de 40 dias, e disse ter ouvido a voz de Deus dizendo que o atual presidente seria reeleito. O líder da Assembleia de Deus anunciou que Deus daria a vitória a Bolsonaro no primeiro turno, para envergonhar o diabo. Silas Malafaia disse que estava orando para Deus travar as urnas, no caso de fraude, e assim ter outra eleição. Edir Macedo chegou a dizer que nessas eleições o povo veria qual deus era o mais forte, da direita ou da esquerda. E não faltou dinheiro para produzir milhares de jornais da IURD a fim de afirmar que os fiéis não deveriam votar no 13, assim como foi em 1989. Isso sem falar em pastores e líderes que pregaram, fizeram vigília, convocaram membros para a campanha de jejum e oração pelo presidente Bolsonaro e não poucos pastores expulsaram irmãos que declararam voto em Lula.

O resultado foi que, para a maioria dos brasileiros, a esperança deu lugar ao ressentimento, a paz deu lugar ao ódio, a educação deu lugar às armas. Esperamos que o presidente eleito tenha condições de pacificar o país.

IHU – Quais os desafios mais urgentes do futuro governo?

Alonso Gonçalves – Os desafios são imensos. Penso que o primeiro deles é tentar pacificar o país. As pessoas se viram imersas em um cenário de guerra. Entre uma semana e outra, vimos um ex-deputado jogar granadas e atirar contra policiais federais com fuzil – armas de poderoso calibre que só foram flexibilizadas a posse por conta da política armamentista do atual presidente – e uma deputada federal reeleita sacar uma arma e perseguir um homem preto nas ruas de São Paulo por uma discussão política. Quando questionada sobre estar armada, a deputada afirmou que “não cumpria ordem ilegal” (referindo-se à resolução do TSE). A resolução do TSE proibiu a posse e o transporte de armas em dia que antecede as eleições e depois. Esse é o país que o presidente eleito terá que enfrentar: um país armado, com pessoas alimentadas pelo discurso do ódio e um certo sadismo em relação à morte, que foi brutalmente banalizada no atual governo.

Outro desafio que vejo será com o Congresso Nacional. Sabidamente, a maioria dos parlamentares eleitos fazem parte da base de apoio do atual presidente. O próximo presidente terá que conversar com o Congresso Nacional e ter um canal aberto de diálogo com os governadores para ter equilíbrio diante das demandas do país. O orçamento secreto será um entrave, uma vez que os deputados beneficiados por esse esquema escandaloso de corrupção, não irão querer abrir mão de uma fatia considerável do orçamento da União, a começar pelo presidente da Câmara dos Deputados

Desafios mais prementes são: reestruturar o orçamento da União que foi vilipendiado para bancar a reeleição do atual presidente; acabar com a fome de uma parcela significativa dos brasileiros; focar na educação que foi sucateada por incompetência de uma gestão desastrosa que contou com ouro em bíblias; os programas sociais de transferência de renda que terá chegado ao fim em dezembro, portanto, uma política que não seja populista, mas consistente com as demandas das famílias brasileiras.

Quanto aos evangélicos, o desafio do próximo presidente será abrir um diálogo propositivo com a diversidade das igrejas, que claramente saiu dividida e muito machucada nesse pleito. A conversa não terá que passar, necessariamente, pelos pastores midiáticos que, notadamente, apoiaram a reeleição do atual presidente. Essa conversa será a partir de pequenas comunidades espalhadas pelas periferias do país, com seus líderes que não têm visibilidade, mas têm o respeito dos irmãos por pisarem no mesmo chão dessas pessoas. Será em pequenas igrejas, bairros e concentrações sem holofotes. Penso que assim terá espaço para construir pontes de diálogo entre a política e as comunidades com base em problemas comuns, não precisamente em temas ligadas a moralidade e a pauta de costumes. 

IHU – Deseja acrescentar algo?

Alonso Gonçalves – O país tem sérios problemas que precisarão ser enfrentados com sobriedade e muita disposição ao diálogo. O primeiro passo foi dado nesse sentido, quando a maioria dos brasileiros tirou da presidência um presidente que se utilizou do símbolo de uma arma com as mãos como principal narrativa política para o país. Mesmo que não tenhamos um ambiente livre da toxidade que vivemos nesses quase quatro anos, já é possível sentir uma certa normalidade a caminho.

Assim, fico com o poeta Ariano Suassuna: “Bom mesmo é ser um realista esperançoso”.

Desejo um bom governo para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com responsabilidade, justiça, paz e olhar atencioso para os que mais precisam. Estarei na vigilância.

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Carlos A. Gadea é graduado em História pelo Instituto de Professores Artigas – IPA, no Uruguai, mestre e doutor em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Realizou pós-doutorado na Universidade de Miami, nos EUA, e foi professor visitante na Universidade de Leipzig, na Alemanha e na Faculdade de Ciências Políticas e Sociais da Universidade Nacional Autônoma do México – UNAM, no México. Atualmente leciona no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos.

 


Carlos Gadea (Foto: Arquivo Pessoal)

IHU – Que análise faz do processo eleitoral?

Carlos A. Gadea – Foi um processo tenso; tenso entre os protagonistas diretos do processo, e entre a própria população, marcado por um misto de estresse coletivo e violência. A sociedade chegou cansada a este pleito eleitoral, que foi conduzida a uma inevitável polarização política entre candidatos com perfis muito diferentes. Se já se pensava em uma sociedade fraturada, o resultado não deixa dúvidas da divisão em praticamente duas partes iguais do país, todo um desafio para o novo governo, que herda, em especial, uma cultura política muito conflitiva, com cidadãos tendentes a se informar (e acreditar) através do que se difunde na sua ‘tribo comunicacional’, e com muita carga emocional nas decisões políticas a serem adotadas. O fato de o presidente Bolsonaro, até o momento, não reconhecer o resultado das urnas, é prova do clima político vivido na prévia das eleições e durante o processo. 

IHU – Quais os desafios mais urgentes do futuro governo?

Carlos A. Gadea – Certamente será o de tentar gerar um ambiente de ‘unidade nacional’ após um período de desacertos políticos enormes por parte de Bolsonaro. Com isso, até o mesmo 1° de janeiro, realizar a transição de governo, que se prevê, não será nada fácil, ou que não haverá, de fato. Creio que Lula dormirá com um ‘olho aberto’, no sentido de que deverá estar muito atento aos movimentos que o governo Bolsonaro ainda pode executar. E isto tanto no plano político como econômico. Não podemos esquecer que Bolsonaro tem construído a sua figura política em conflito constante com Lula, e é o conflito, o choque, a constante fricção e alento a sua ‘massa de convertidos’, o que o constitui como a figura que é. 

Bolsonaro está em uma ‘sinuca de bico’, e o seu comportamento futuro é determinante para entender como sairá a sua figura política após esta derrota. Mas independentemente dos desafios políticos, acredito que sejam, ainda, os problemas econômicos os maiores desafios a enfrentar para o futuro governo. 2023 não é igual àquele 2003, quando Lula assumiu pela primeira vez a presidência da República.

Em 2022, o Brasil cresce a um ritmo de 1,6% do seu PIB, por debaixo da Argentina (3,5), Uruguai (4,5) e a Colômbia (6,5), segundo a CEPAL/ONU. A inflação escalou de 2020 até o início de 2022, chegando em abril a mais de 12% na taxa acumulada em 12 meses, sendo a maior inflação para o período de um ano desde outubro de 2003. No ano passado, em 2021, a taxa de desemprego atingiu quase um 15%; 14,8 milhões de pessoas estavam desempregadas no país. A pobreza também cresceu: em 2022, 33,1 milhões de pessoas não têm o que comer, segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Problemas como estes exigem certa urgência e decisão política e, obviamente, a escolha de prioridades sobre que aspectos privilegiar para dar as devidas reformas. Tudo isto porque o ambiente internacional econômico é complexo, com um conflito internacional, como a guerra na Ucrânia, a crise econômica na China e, em especial, o isolamento comercial e diplomático que se encontra Brasil, restringido em parcerias para projetos de fôlego com outras nações que sirvam a interesses nacionais.

IHU – Quais são os caminhos para enfrentar esses desafios?

Carlos A. Gadea – O novo governo deverá se abrir ao diálogo com outras autoridades eleitas, governadores, por exemplo. Oxigenar a sua relação com os outros poderes do Estado, reconciliar aquelas áreas mais afetadas pela beligerância como estilo de administração governamental que Bolsonaro implementou. Também, claro, abrir-se ao mundo, reconectar-se com a comunidade internacional, participar dos principais debates sobre economia global, meio ambiente, desenvolvimento, direitos humanos. Cabe, sem dúvida, muito pragmatismo nessa hora, e vejo com simpatia que Lula tenha considerado que o seu governo será mais plural, integrado por figuras de diferentes setores da sociedade política, e menos encapsulado no próprio PT. Isto pode ser um sinal muito positivo para a sociedade em geral, e até um gesto que de se concretizar pode marcar o início de um novo ciclo político, deixando atrás o lulopetismo tradicional, que não devemos esquecer, foi uma das sementes da origem do próprio Bolsonaro.

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Acauam Oliveira é graduado em Letras, mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada, e doutor em Literatura Brasileira, pela Universidade de São Paulo – USP. Atualmente, leciona na Universidade de Pernambuco – UPE.

 


Acauam Oliveira

Foto: Arquivo pessoal

IHU – Que análise faz do processo eleitoral?

Acauam Oliveira – Primeiro, as boas notícias. Ao contrário do que ocorreu em 2018, quando foi pega desprevenida, em 2022 a esquerda decidiu entrar de vez no jogo, principalmente a partir do segundo turno. Se antes a preocupação maior parecia ser “estar do lado certo da história”, nem que isso significasse estar a sete palmos do chão em território miliciano, agora ela entrou no jogo com sangue nos olhos para ganhar.

Em 2018, nós tomamos um verdadeiro baile – basta lembrarmos das alianças do PT com Deus e o Diabo em troca de minutos na TV, enquanto Bolsonaro levava as eleições nas redes sociais e na formação de uma militância orgânica dentro de campos estratégico  fundamentalismo cristão, trabalhadores precarizados, jagunços milicianos, conglomerados de comunicação, agronegócio predatório, dentro outros. Já em 2022, o desejo de desforra ultrapassou os sentimentos cívicos democráticos, a despeito de alguns clamores esvaziados por manter o nível e “não descer ao nível deles”, a tal da política sem fígado, como se estivéssemos vivendo tempos normais. Não custa lembrar que Bolsonaro só não instituiu campos de concentração porque a pandemia transformou o país todo em um experimento genocida.

Destaca-se nesse sentido a entrada em cena de duas figuras fundamentais. Felipe Neto, desmontando sistematicamente fakes news bolsonarista, por vezes antes mesmo delas se formarem; e o controverso André Janones, espécie de Padre Kelmon com cérebro, com a estratégia de sabotagem do campo bolsonarista e sequestro de pauta. Como já demonstraram diversas reportagens, o trabalho de Janones foi absolutamente decisivo na reta final, estourando a bolha fazendo dele a grande pedra no sapato bolsonarista. 

Rede bolsonarista 

Tomemos um exemplo: logo após o fim do primeiro turno, a rede bolsonarista tentou emplacar a fake de que Lula seria inimigo do cristianismo, o que caiu como uma bomba na campanha petista. Esta inicialmente se esforçou por reagir com os desmentidos tradicionais, importantes, certamente, mas que tem funcionamento limitado quando se trata da lógica fascista, baseada muito mais em adesão e crença. Somado a isso, contudo, o sucesso da “estratégia janones” de sobreposição de pauta: a esquerda conseguiu emplacar a narrativa da aliança (real) de Bolsonaro com a maçonaria, virando o jogo e fazendo com que a associação com satanismo recaísse sobre Bolsonaro, cuja campanha teve que gastar tempo em defesa própria, ao invés de reforçar novos ataques.

Na sequência vieram a tona canibalismo e pedofilia, tudo a partir de falas reais de Bolsonaro. Jogo rebaixado, certamente, mas que não parte de fake news, como no caso de Lula, haja vista que Bolsonaro de fato esteve na maçonaria – e a “beleza” do ataque nesse caso é que não é necessário fake para que os extremistas chafurdem em sua própria intolerância. Em termos estratégicos, os bolsominions foram parar nas cordas, perdidos como nós estávamos em 2018, pois visivelmente não estavam preparados para essa ofensiva. Daí Silas Malafaia saindo das sombras em defesa da pluralidade religiosa e Bolsonaro gravando live 1 da manhã para “provar” que não é pedófilo. Ou seja, sentiram.

Além disso, me parece que a esquerda levou outra vantagem em relação aos bolsonaristas nesse ponto. É porque boa parte dessa munição escabrosa foi guardada para o segundo turno, ao passo que Bolsonaro requentava o mesmo conjunto de fakes usadas em 2018, muitas delas já desmentidas, perdendo o teor de novidade e, certamente, de surpresa. O fator novidade, grande trunfo bolsonarista em 2018, dessa vez estava do lado do PT.

Ainda assim, diversas cartadas dessas foram perigosas para o PT, sobretudo porque são muitas toneladas de informação falsa que atordoam o adversário, que mal tem tempo de as desmentir antes da viralização. A novidade é que a sujeira acabou atingindo também o dono do esgoto. Um rebaixamento geral, obviamente, que de uma perspectiva mais ampla aponta para uma franca derrota: o tom e os rumos das eleições foram dados pelo fascismo, que nesses quatro anos colocou o pacto democrático nas cordas com uma facilidade impressionante. Muitos que acreditavam que Bolsonaro sequer se elegia, hoje concordam que se não fosse a pandemia e a existência de Lula, ele levava fácil o pleito. 

Atores 

O que temos pela frente, portanto, é no máximo um respiro para uma guerra que está apenas começando. Uma guerra que envolve não apenas o bolsonarismo, mas diversos outros agentes do mal que mostraram suas garras. A grande imprensa e sua deplorável na naturalização do fascismo, tratando como parte do jogo democrático uma candidatura que é a negação não só da democracia, mas da própria vida. O caráter político mesquinho da Lava Jato e a figura do Sérgio Moro. A adesão da centro-direita liberal ao projeto fascista, que lhe oferta algo que ela nunca foi capaz de construir: uma liderança populista. Uma adesão que não é de hoje, diga-se de passagem, e que remonta a própria fundação da República sob cadáveres negros de antigos escravizados. E, por fim, a fragilidade geral da esquerda, cujas esperanças repousam em um senhor de idade bem avançada e cuja principal força não é o confronto com o poder, mas a capacidade de apaziguar os ânimos dos patrões  uma esquerda que não existe, portanto, e que deverá ser inventada, caso pensemos em resistir.

Outra notícia excelente, ainda que frágil, é que o fundamentalismo miliciano (cuja nomeação ainda está em disputa) ainda não cooptou por completo a realidade. É claro que o problema é que a vitória foi bastante apertada, nos detalhes, e isso é realmente assustador, pois a bola está com eles. E caso o circuito se feche, será muito, mas muito difícil retornarmos a qualquer princípio de “normalidade” – isto é, o velho modelo de extermínio ao qual já estávamos acostumados. Pois o bolsonarismo funciona como uma poderosa máquina de desrealização, que implica tanto na destruição real e incondicional da vida quanto na destruição dos mecanismos discursivos que tornam possível a nomeação dessa destruição. Seu projeto é afastar a realidade e blindá-la de modo a poder fazer o que quiser sem que o Real interfira em seu projeto.

Dentre tantas outras notícias excelentes, destaca-se essa: a de que o fundamentalismo ainda não conseguiu fechar por completo o seu circuito (talvez por conta da Covid), que o tornaria imune à realidade, certamente muito além do mandato de Bolsonaro. 

Fundamentalismos 

Algumas breves palavras sobre esse método do fundamentalismo miliciano, cujas bases são coloniais e que se baseia em uma espécie de circuito fechado imune à realidade, mesmo quando implica em setecentos mil mortos. Ao que me parece, a categoria de “mentira” não serve para descrever bem o método de Bolsonaro que, de fato, mente o tempo todo. A esquerda tende a chamar de mentira porque acredita fielmente que basta dar a conhecer a verdade para que a normalidade seja restabelecida. Mas o fundamentalismo, quando bem-sucedido, substitui a realidade por outra coisa.

Um exemplo: quando um fundamentalista cristão consegue convencer seus fiéis de que gays e lésbicas devem ser condenados porque estão com o diabo e irão para o inferno, ele não apenas convence o fiel de uma mentira, como determina os próprios termos de apreensão da realidade, limando o próprio chão real que possibilita o acesso à realidade. Pois nesse caso, cabe ao interlocutor defender que na verdade gays podem sim, ir para o paraíso, e que por isso é errado sua associação com o demoníaco Note-se que nesse caso, a argumentação toma por verdade a premissa cristã da existência do Inferno, tornando por real o que é imaginário. Uma crença ideológica, portanto, que é sobreposta ao real, e deslocando a única questão verdadeira nesse caso: a de que, independentemente da existência ou não do inferno, gays não podem ser discriminados por seu gênero. É muito mais do que uma simples mentira que está em jogo, portanto, mas um método discursivo de desrealização cujo objetivo é blindar o discurso do impacto da realidade concreta, de modo que os fatos simplesmente não sirvam para contestar as afirmações ideológicas da seita.

Bolsonaro diz uma coisa hoje e o exato oposto amanhã, e de nada adianta tentar desmentir ou apontar a contradição para seus fiéis, porque a captura fundamentalista parte precisamente da verdade da adesão libidinal, que independe das contradições lógicas do discurso. O líder supremo espera não apenas que você aceite a validade de duas informações contraditórias e excludentes, mas que você acredite integralmente e ao mesmo tempo em cada uma delas, de modo a eliminar a própria ideia de “contradição”. É essa crença que define o amor ao líder, e é por ela que se julga seu lugar no paraíso. Quanto mais o sujeito passa por cima da realidade, mais ele demonstra fidelidade e crença no seu mito que, como Deus, nunca está errado.
Para o sujeito integralmente capturado pela ideologia, Bolsonaro pode sacrificar uma criança ao vivo enquanto grita estar agindo em nome da defesa da infância: nada disso o abala, pois a criança certamente seria o anticristo comunista, ou coisa que o valha. O apelo à realidade simplesmente deixa de funcionar enquanto cadeia argumentativa. Não importa se Bolsonaro foi contra a vacina, ou contra o auxílio e agora afirme sempre as ter defendido. Não importa sequer se ambas as afirmações estão documentadas: nesse estágio de desrealização, a capacidade de indexação da linguagem ao real foi totalmente neutralizada. Daí a tragédia: nesse estágio, a verdade pode muito pouco, quase nada, e o que resta são formas mais elementares de sobrevivência, violentas a seu modo.

Longe de mera estupidez, a adesão irrestrita é a aposta em uma forma particular de força, posto que autoriza o próprio sujeito a agir sem freios na destruição do inimigo, custe o que custar. Essa é, aliás, o projeto a longo prazo do bolsonarismo: um mundo sem alteridade, onde todas as instituições serão ou a imagem de seu líder, ou o inimigo a ser destruído. 

Campanha de Lula 

Outro ponto positivo na campanha de Lula foi a postura do candidato, que a meu ver sai ainda maior do que quando entrou, depois de ter comprovado que foi alvo de uma prisão política. No meio do caos fascista, independente de quaisquer erros anteriores, a presença de Lula foi de uma dignidade extraordinária.

Algo que me chamou a atenção foi a demonstração clara de certa incompreensão elementar de Lula diante das estratégias de Bolsonaro. Mesmo com toda sua experiência de vida pública, em diversos momentos ele parece sinceramente não compreender o jogo dessa nova era pós Nova República. Afinal, enfrentar o fascismo é algo novo para ele, assim como foi para o PSDB, que julgava poder usar Bolsonaro para se fortalecer, e acabou engolido. Lula nunca enfrentou um adversário que tem por objetivo destruir por completo a própria realidade, invalidando a categoria mesma de verdade. Daí sua incompreensão elementar, que revela certa fragilidade diante das novas regras do jogo, mas que ao mesmo tempo funciona como uma frágil garantia de que esse não será o seu jogo. Pode-se discordar do que for de seu mandato, mas é certo que Lula não irá enveredar pelo campo fascista, que sequer faz parte de seu horizonte de pensamento – o que implica em uma garantia ética importante, ainda que frágil (pois o antifascismo não depende apenas de Lula) e que vem nos fazendo muita falta.

IHU – Quais os desafios mais urgentes do futuro governo?

Acauam Oliveira – Do ponto de vista institucional, o maior desafio vai ser tirar Bolsonaro e seu núcleo da jogada, o que implica em enfrentar inimigos poderosos, que sinceramente não sei se a tal Frente Ampla tem condições de fazer: a milícia, que tem um Estado inteiro para si (RJ) e o fundamentalismo evangélico, que tem fornecido a gramática elementar do nosso tempo. Fundar uma nova linguagem é algo que o PT não parece ser capaz de fazer (e nem acredito que seja algo que tenha, necessariamente, que passar por ele), inclusive porque a força do Lula depende do poder de um poder de captura que vem da evocação do passado.

Uma preocupação mais imediata é a própria violência da reação bolsonarista, que já deixou mais do que claro que não vão aceitar o resultado das urnas. Tudo vai depender dos cálculos de perdas e ganhos, e do quão desesperado ele e sua base vão estar. Mas, de todo modo, vai ter bolsonarista bem-disposto a fazer um espetáculo. Caso isso aconteça, podemos esperar algo bem mais violento do que o episódio do Capitólio. Roberto Jefferson foi, antes de mais nada, uma espécie mal articulada de ensaio, confirmado na sequência pela patifaria racista de Carla Zambelli. E a “reação” deve vir articulada em diversas frentes, como é próprio do bolsonarismo. Uma espécie de radicalização do que foi feito por Aécio Neves, ainda sob o peso institucional. Aqui os ataques se darão dentro e fora das instituições, simultaneamente, por mais tempo, com maior intensidade e de forma muito mais violenta, pois é de fascismo que estamos falando. 

 

Outro grande desafio das esquerdas é que o bolsonarismo não desaparece com Bolsonaro. O modelo de fundamentalismo miliciano, representado pela chegada ao poder institucional das duas forças mais reacionárias do Brasil contemporâneo (o fundamentalismo cristão e a polícia militar), que reconduz o país a parâmetros coloniais, não vai desaparecer, muito pelo contrário. Se em 2018 havia algo de surpresa nesse projeto, de outsider, o governo Bolsonaro mostrou, entre outras coisas, que ele é a própria Verdade da política institucional (leia-se, Centrão), que nunca deixou de ser escravocrata. Daí que, ao contrário do golpe que se esperava, um conjunto de acordos dentro do pacto democrático com o centrão, com o judiciário (Sérgio Moro), e com a grande imprensa, que trata o nosso nazismo tupiniquim como um fenômeno democrático normal  porque em certo sentido, nada mais normal, de fato.

Lula vai ter que se haver com duas frentes de ataque: a da frente ampla, cujos interesses são irreconciliáveis e que, a despeito das aparências, tomaram gosto pela lei do mais forte bolsonarista; e os ataques externos, que devem manter o mesmo tom intenso das eleições, ao menos por um tempo. Desinformação e fake news, de um lado, e de outro, a imprensa liberal e seu conjunto de críticas técnicas e canalhas de sempre. Cada "fracasso" do governo (que no começo, dado o tamanho do estrago, tende a ser grande) sendo transformado em narrativas de caos e desespero.

Na base de tudo isso, o fato do fascismo quase ter vencido as eleições. Não estamos diante da derrota nazista com a morte de seu líder, ou de Mussolini sendo executado por antifascistas. Muito pelo contrário, o que acompanhamos foi uma eleição vencida no sufoco contra um líder que piorou tudo no país e, mesmo assim, quase leva. Caso Lula não consiga encontrar um cenário favorável de estabilização que leve imediatamente comida na mesa do povo, a força ideológica do bolsonarismo  certamente maior do que o da frente ampla  deve aumentar. E mesmo que a cabeça da Hidra seja cortada, ainda teremos Damares, Zambellis e Pazuellos por aí.

Aliás, outra incógnita é o próprio destino de Bolsonaro. Existem muitas pessoas, incluindo supostos aliados, bem dispostas a varrê-lo de vez da cena política, e muita gente querendo vê-lo preso, nem que seja para ocupar o seu lugar (a fidelidade política a Bolsonaro, assim como a dele próprio, diz respeito única e exclusivamente a tais interesses). Por outro lado, Bolsonaro mostrou ter um poder político de grande alcance, e absolutamente subserviente ao poder (com ele, os grupos de poder tem o poder de conquistar tudo e mais um pouco, sem prestar contas  orçamento secreto é uma excelente metáfora pro próprio bolsonarismo). Ele representa a liderança popular que a direita jamais conseguiu ter, o que não é algo de se jogar fora, e nem tão fácil de conquistar, basta ver a dificuldade da esquerda em encontrar um novo Lula. Tudo vai depender desses cálculos: será possível achar alguém que reúna os pontos positivos do Bolsonaro sem a rejeição que o levou a perder as eleições? Uma Damares, talvez? O destino de Bolsonaro vai depender desse tipo de cálculo, e da capacidade de barganha do Bolsonaro, que não costuma ter muita credibilidade no que diz respeito a cumprir promessas mas que, por outro lado, não tem pudor algum em fazer valer a vontade dos mais fortes. De todo modo, estaremos aqui na torcida pelo Diabo que o carregue para bem longe.

IHU – Quais são os caminhos para enfrentar esses desafios?

Acauam Oliveira – A meu ver, o grande desafio da esquerda brasileira hoje continua o mesmo de 2013. O imaginário político se dissolveu, e só quem apresentou uma alternativa sólida foi a extrema-direita. Temos um equivalente ao fascismo para se contrapor a grande farsa democrática pós-redemocratização, mas não temos o equivalente ao comunismo. O caminho da institucionalização da esquerda barrou a emergência da verdade.

A rigor, o recado da frente ampla é, basicamente, falso: “Fora da farda democrática institucional, só existe o inferno”, dizem. Para piorar, a emergência do diabo em pessoa parece reforçar essa tese. Mas as pessoas, no geral, sabem que essa tese é falsa e seguirão reivindicando o novo. Daí o risco da alternativa fascista se fortalecer, pois o único caminho possível de sobrevivência para o PT no momento parece ser reforçar a ideia de “retorno” ao mesmo modelo de alianças e conchavos espúrios que nos trouxe até aqui, para começo de conversa. Com o preço que Lula terá que pagar pelas alianças, a imagem de mais do mesmo, amplamente explorada pela extrema-direita, deve ser reforçada ainda mais. 

 

Daí o verdadeiro desafio da esquerda no Brasil: formar novos nomes e quadros, verdadeiramente à esquerda, capazes de se contrapor à efetiva novidade que a extrema-direita representa em todo mundo: nada menos que o retorno da política. Para agora, o cenário parece amplamente desfavorável nesse sentido. No momento, não parece existir futuro institucional para esquerda para além de Lula, uma figura extraordinária, de fato, mas que já está bem com seus quase 80 anos. Novos nomes promissores, como Marcelo Freixo e Fernando Haddad parecem não ter rendido o tanto quanto se esperava. Outros, como Guilherme Boulos, Flávio Dino e Sônia Guajajara, são promessas para o futuro, mas dificilmente para os próximos quatro anos. Da mesma forma, a aposta institucional do MST deverá levar um tempo mais amplo de gestação. Até lá, é provável que a esquerda siga a reboque de figuras de direita mais moderada (Tebets e Tábatas), apostando suas fichas em governos estaduais e cadeiras no executivo.

Nesse momento, é muito difícil apostar em Lula preferindo Boulos a Haddad, por exemplo. Mas, como as urnas indicam, o fantasma do fascismo só irá desaparecer caso tenhamos um candidato que se oponha com radicalidade à própria esquerda. Daí a impressão de que estamos nos encaminhando para perder uma guerra que, dado seu caráter radical – é da destruição do planeta que estamos falando – pode bem ser a batalha final. Mas é justamente a necessidade mais elementar de sobrevivência em momentos profundos de transformação que faz emergir o novo.

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Giuseppe Cocco é graduado em Ciência Política pela Université de Paris VIII e doutor em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne). É professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e editor das revistas Lugar Comum e Multitudes. Entre outros livros, publicou: New Neoliberalism and the Other: Biopower, Antropophagy and Living Money (Lanham: Lexington Books, 2018), em parceria com Bruno Cava. O último livro que publicou intitula-se Entre cinismo e fascismo (Autografia: Rio de Janeiro, 2019).

 

Giuseppe Cocco

Foto: Acervo IHU

IHU – Que análise faz do processo eleitoral?

Giuseppe Cocco – No momento da proclamação formal do resultado do segundo turno, podemos comemorar que o processo foi mais tranquilo do que se esperava. Contudo, as tensões que se esperavam não sumiram, estão lá e aparecem, inclusive, no fato de que o resultado foi muito apertado e o presidente derrotado conseguiu emplacar bastante de seus candidatos. Obviamente, a vitória em São Paulo é a mais emblemática. 

 

IHU – Quais os desafios mais urgentes do futuro governo?

Giuseppe Cocco – O futuro governo tem muitos desafios urgentes e de médio e longo prazo. Muitos desses desafios não são apenas do governo, mas do país como um todo.

Em primeiro lugar, o presidente eleito vai ter que equacionar a dinâmica da frente ampla que permitiu a vitória de Lula e a formação do governo. Em segundo lugar e de maneira também urgente, as articulações para o novo governo precisam visar a governabilidade com o legislativo, abrindo diálogo com setores sociais que compõem a oposição, que votaram no presidente.

Essas articulações urgentes enfrentam vários desafios. Irei me concentrar em dois:

1) O ambiente macroeconômico e o internacional são muito turbulentos e creio que a melhor escolha seria a repetição renovada do equilíbrio que foi construído no primeiro mandato de Lula, particularmente na economia.

2) A frente ampla liderada pelo Lula e o PT tem que lidar com um quebra-cabeça: por um lado, ele deu certo, pelo outro, é evidente que o centro e a centro-esquerda são aqueles que mais sofreram a polarização promovida pela duas forças que chegaram ao segundo turno. O lulismo conseguiu demolir a terceira via, inclusive cooptando Alckmin na chapa (creio que aqui há o que refletir sobre como isso abriu o caminho para a conquista bolsonarista do estado de São Paulo), mas correu o risco de ser derrotado por causa disso. Estou convencido que isso não aconteceu por causa da determinação com a qual duas grandes líderes políticas, Marina e Simone Tebet, mergulharam na campanha, coadjuvadas pela adesão de um sem-número de liberais, desde Armínio Fraga até Amoedo, passando por um sem número de figuras desse tipo. Mas o resultado ficou apertado, pois a base eleitoral do centro se deslocou para a extrema-direita bolsonarista.

Na reconstrução de uma centro-esquerda e do campo democrático, resta um trabalho a ser feito e que não será resolvido por operações de engenharia parlamentar apenas.

IHU – Quais são os caminhos para enfrentar esses desafios?

Giuseppe Cocco – O primeiro passo é reconhecer que essa vitória é apenas um momento de uma mobilização geral destinada a reforçar e reconstruir a democracia, um esforço que vai demorar.

 

A reconstrução do centro democrático é urgente nesse sentido. Ao mesmo tempo, é importante considerar que quem permitiu ao Lula ganhar são os pobres e as mulheres. É preciso ter uma política das mulheres pelas mulheres contornando a pressão evangélica que as bloqueia. De maneira mais importante, é preciso transformar as políticas de distribuição de renda em termos de renda básica universal. A política dos pobres tem hoje uma nova base.

O segundo passo é talvez aquele que tem mais potencial: a volta do Brasil ao palco internacional, inclusive com a Amazônia. Macron e Biden reconheceram a vitória de Lula quase que em tempo real. Há um espaço enorme para isso, uma avenida aberta. Mas há também muitos perigos, sobretudo se Lula não romper com as ditaduras: desde aquelas de Maduro e Ortega até aquela de Putin.

Lula precisa entender que sua vitória faz sentido na medida que é um momento dessa reconstituição global do campo democrático global. Há espaços enormes para novas relações com os Estados Unidos e a União Europeia. Enfim, há um terceiro passo, mas para isso é cedo: Lula e o PT continuam devendo a autocrítica que ainda não fizeram.

Seria um erro pensar que a vitória eleitoral os isenta disso. O bolsonarismo está longe de estar morto e o risco é que ele ocupe e hegemonize a oposição social.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Giuseppe Cocco – Há uma nova geração de políticos que talvez possam ser importante nos meses e anos seguintes. O retorno do protagonismo de Marina tem que ser saudado e a força e coragem de Simone Tebet estão à altura do papel que as mulheres tiveram na derrota do ódio.

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Bruno Milanez é graduado em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro  UFRJ, mestre em Engenharia Urbana pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar e doutor em Política Ambiental pela Lincoln University. Leciona na Universidade Federal de Juiz de Fora  UFJF.

 

Bruno Milanez

Foto: PoEMAS

IHU – Que análise faz do processo eleitoral?

Bruno Milanez – Em relação ao primeiro turno, minha maior preocupação foi a ascensão da extrema-direita no legislativo. Muita atenção foi dada ao resultado da eleição para o Executivo federal, porém a expressiva votação de candidatos de extrema-direita provavelmente terá consequências danosas para o país.

Quanto ao segundo turno, ele deverá ser sempre lembrado pelo abuso de poder da campanha de Jair Bolsonaro e pelo uso da violência por seus apoiadores. Ao longo de todo o processo eleitoral, vimos como nossas instituições ainda são extremamente frágeis. Combinando isso com as mudanças no Legislativo, existe o risco de vermos o processo eleitoral brasileiro se degradar de forma contínua e gradual ao longo dos próximos anos. Muitas das pessoas responsáveis por esse processo poderão ser acomodadas em gabinetes do Legislativo federal ou de executivos estaduais vinculados ao atual presidente, de onde poderão continuar seus esforços de minar a confiança de parte da população no processo eleitoral.

IHU – Quais os desafios mais urgentes do futuro governo?

Bruno Milanez – Os desafios são inúmeros, considerando o desmonte institucional e a falta de preocupação que vimos nos últimos quatro anos com o bem-estar da população por parte do governo federal. Tentando limitar meus comentários às minhas áreas que estudo (política mineral e ambiental), vejo como questões cruciais a interrupção da invasão das Terras Indígenas, a reversão da tendência de aumento do desmatamento, em especial da Amazônia, e a reestruturação dos órgãos de fiscalização e controle, como Ibama, ICMBio, Funai, IPHAN etc. Além disso, a relação com o Legislativo não pode ser menosprezada. No período 2019-2022, o Senado impediu muitas propostas problemáticas que foram gestadas no âmbito da Câmara dos Deputados. Com o aumento da presença da extrema-direita no Senado, propostas de retrocesso legal podem ser retomadas, colocando em risco diferentes aspectos vinculados à garantia dos direitos territoriais e da preservação ambiental. 

 

IHU – Quais são os caminhos para enfrentar esses desafios?

Bruno Milanez – Como se formou uma frente ampla para evitar a consolidação de um projeto autoritário, será necessária muita habilidade do novo governo para acomodar todas as expectativas envolvidas. Novamente, focando nas minhas áreas de atuação, o primeiro passo é reestruturar os órgãos de controle socioambiental, retornando aos postos de comando pessoas competentes e comprometidas com a garantia dos direitos humanos e da preservação ambiental. A partir daí, deve ser criada uma grande força-tarefa para retirada da mineração ilegal das Terras Indígenas e das Unidades de Conservação. Ainda, parece ser necessário recuperar e aprimorar as experiências exitosas de combate ao desmatamento que foram deliberadamente abandonadas pelo governo Bolsonaro. Além disso, devem ser criados processos de aprofundamento dos processos democráticos, fortalecendo a participação popular nos conselhos e voltando a organizar as Conferências Nacionais. Uma vez que existe uma tomada do Legislativo por interesses reacionários, o sistema de freios e contrapesos deverá ocorrer por meio do fortalecimento da democracia direta.

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Fábio Baldaia

Foto: Arquivo pessoal

Fábio Baldaia, graduado em Ciências Sociais, mestre em História e doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia – UFBA. Desde 2010, é professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia – IFBA. Pesquisa processos de formação de identidades, notadamente nacional e baiana, e a relação mais ampla entre cultura e política. 

Sinval Silva de Araújo

Foto: Arquivo pessoal

Sinval Silva de Araújo, professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia – IFBA, licenciado em Ciências Sociais e História, bacharel em Sociologia pela Universidade Federal da Bahia – UFBA. Também é bacharel em Direito pela Universidade Católica de Salvador – UCSAL, mestre em Ciências Sociais pela UFBA e doutor em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRJ. Tem interesse nos temas da teoria marxista, pensamento social brasileiro e teoria social. 

Rodrigo Ornelas

Foto: Arquivo pessoal

Rodrigo Ornelas, doutor em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia – UFBA. Pesquisa a Modernidade e o Modernismo no âmbito da filosofia social, política e da cultura, seus pressupostos e suas consequências. Integra o grupo de trabalho Poética Pragmática da UFBA. 

Tiago Medeiros

Foto: Arquivo pessoal

Tiago Medeiros, doutor em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia – UFBA e professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia – IFBA. Tem experiência nos temas pragmatismo, teoria social e instituições. Além disso, tem interesse e experiência nos temas do pensamento social, político e econômico brasileiro.

Os pesquisadores integram o Laboratório de Estudos Brasil Profundo – LAEBRAP é um grupo de estudos e pesquisas ambientado no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia. Tem o objetivo de formular interpretações de fenômenos da sociedade brasileira por meio da noção de “Brasil profundo”. Atua em linhas como economia e sociedade, cultura e sociedade, artes e identidade nacional, planejamento institucional e práticas sociais, contribuindo para o debate público nacional via entrevistas, conferências e publicações. O grupo presta consultorias sobre os temas de sua alçada.

IHU – Que análise fazem do processo eleitoral?

Fábio Baldaia, Sinval Silva de Araújo, Rodrigo Ornelas e Tiago Medeiros – Nossa análise passa por três dimensões do processo: a dimensão institucional, a dimensão política e a dimensão social. O processo eleitoral de 2022 foi institucionalmente exitoso. Apesar das sabotagens e ameaças que se sucederam desde antes do processo propriamente dito, as instituições do Judiciário operaram de forma objetiva, contenciosa e intrépida. A imprensa colaborou, dissipando as teses antecipadas sobre possíveis fraudes com informações bem fundamentadas e a população sentiu a segurança necessária para exercer seu direito.

Na dimensão política, destaca-se o reestabelecimento do lulopetismo, convivendo com um bolsonarismo robusto. Os partidos se moveram para a formação de uma coalizão anti-Bolsonaro, a que se fez vitoriosa na campanha presidencial, mas também para a formação de uma representatividade bolsonarista ainda mais variada partidariamente, que teve notável desempenho na disputa para as casas legislativas como um todo. O bolsonarismo foi vitorioso, ainda que o presidente Bolsonaro não tenha sido logrado em seu pleito. Com base em nossos estudos e discussões, o bolsonarismo, enquanto fenômeno sociocultural que manifesta aspectos do Brasil Profundo, não pertence ao presente nem ao presidente, o que significa que a sua continuidade é uma questão para a história, não para a política.

E o saldo eleitoral revela que os partidos e atores alinhados às representações bolsonaristas não fizeram, na maior parte dos casos, uma escolha eleitoral errada. De maneira parecida, o lulopetismo, enquanto força ideológica (para além do Partido dos Trabalhadores)o também se consagrou. Quem mais perdeu foi o espectro dos que evitaram o empuxo quer de Bolsonaro quer de Lula.

Por último, na dimensão social, destaca-se a confirmação de um plebiscito de rejeições. Mais do que a aposta prosaica no carisma de um candidato ou na lucidez de um projeto, a sociedade assimilou esse processo como ocasião para duas aversões: a de quem quer tirar o que está e a de quem quer impedir a voltado outro. No segundo turno, em especial, vimos uma cisão, de valores, de crenças, que talvez seja de difícil supressão e que precisará ser absorvida e manejada. Ainda dentro de nosso jargão, os aspectos do Brasil Profundo que estão em sintonia com bolsonarismo terão que dialogar com os que atravessam o lulopetismo. 

 

IHU – Quais os desafios mais urgentes deste futuro governo?

Fábio Baldaia, Sinval Silva de Araújo, Rodrigo Ornelas e Tiago Medeiros – Segundo o próprio presidente eleito, a prioridade é resolver a questão da fome e do desemprego. Mas nós destacamos um desafio mais difuso, embora maciço: é urgente que o próximo governo comece um processo de reunificação do país, nos planos social e cultural. É preciso que o país volte ao caminho da construção nacional, que o tema da unidade nacional retorne ao debate público. Isso não depende apenas do presidente, mas, sem que ele o abrace como um projeto de Estado, será impossível.

Ademais, dois conjuntos de problemas que se tornaram ensurdecedores nesses últimos anos e mais ainda nessas eleições precisarão ser encarados. O problema regional, isto é, como marchar na direção de recompor o nacional se a cisão do país não é apenas entre classes e grupos, mas entre regiões? Além disso, em sendo Lula o maestro dessa sinfonia, haverá resistência dos núcleos de contenção da mensagem bolsonarista radical em estado bruto, como as corporações armadas e a corporação do transporte de cargas.

Os caminhoneiros estão ameaçando parar em retaliação à vitória de Lula e os policiais não escondem sua insatisfação, não enquanto cidadãos, mas enquanto policiais, com o retorno de Lula ao centro do poder. Como promover uma consciência de reintegração nessas corporações? Essas questões precisam ser ao menos colocadas pelo governo. 

 

IHU – Quais são os caminhos para enfrentar esses desafios?

Fábio Baldaia, Sinval Silva de Araújo, Rodrigo Ornelas e Tiago Medeiros – Os caminhos para resolver as questões da fome e do desemprego são técnicos e de natureza macroeconômica. Passam por energizar setores de fácil proliferação de contratação de mão de obra, como o setor de construção civil, tratar o problema do endividamento das famílias e expandir gradualmente o crédito para aquecer a demanda agregada, por outro lado, por apostar na ampliação de programas de transferência, como o Auxílio Brasil (cujo nome deve mudar novamente).

Por trás deles, o governo terá também de encontrar uma forma factível de assegurar crescimento econômico e controlar a inflação sem aventureirismos fiscais e cambiais. Mas o mais difícil será encontrar meios para essa reunificação do país a que aludimos, pois aqui já não é uma questão de instrumentos técnicos. Pensamos que deve haver uma ação em cadeia, preferencialmente coordenada, e que parta de muitos centros de propagação de mensagem e formação de opinião. Instituições como as universidades, a imprensa, as igrejas, por exemplo, teriam de ter um papel muito importante nisso. Mas uma atitude, uma performance dialógica também faria efeito.

Se o presidente conseguir, pela prática governamental e pelo gingado político, estabelecer canais duradouros de comunicação com bolsonaristas, já terá dado um passo largo.

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Valter Pomar é historiador formado pela Universidade de São Paulo – USP, mestre e doutor em História Econômica pela mesma instituição. Foi secretário de Cultura, Esportes, Lazer e Turismo da Prefeitura Municipal de Campinas de 2001 a 2004. É professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC – UFABC e dirigente nacional do Partido dos Trabalhadores.  

Valter Pomar

Foto: 180 Graus

IHU – Que análise faz do processo eleitoral?

Valter Pomar – A análise do processo requereria mais tempo do que o disponível neste instante. Assim, vou me limitar à análise do resultado eleitoral do segundo turno presidencial. Lula venceu o segundo turno com 50,90% dos votos válidos ou 60.345.825 votos, mas já começou o terceiro turno. A extrema-direita foi derrotada eleitoralmente, mas conseguiu o que pode ser apresentado como uma vitória política. Afinal, para além dos resultados estaduais e proporcionais, quase metade do eleitorado ativo votou a favor da continuidade do governo cavernícola. O cavernícola recebeu 49,10% dos votos válidos ou 58.206.322 votos válidos.

O resultado apertado surpreendeu principalmente quem leu errado as pesquisas, subestimando o efeito abstenção e, também, subestimando o previsível crescimento da extrema-direita na reta final. Inclusive, devido a uma ajuda substancial do dinheiro público, de fake news e da sabotagem contra o deslocamento de eleitores. Talvez tenha contribuído para a citada leitura errada das pesquisas o fato de que “nunca antes na história deste país” um governo capaz de tanta merda tenha conseguido tanto apoio para a sua reeleição.

Não está claro ainda o que a turma do cavernícola vai fazer diante da derrota. Um pouco de inteligência estratégica recomendaria a eles deixar de lado qualquer tipo de “operação Capitólio” e adotar nos próximos anos uma tática mais “sofisticada”, combinando ações fora da lei com uma oposição institucional mais ou menos radical. Há vários motivos para esta segunda opção prevalecer, entre os quais o fato do cavernícola saber que existe – do lado oposto – muita gente que prefere os riscos decorrentes de um péssimo acordo aos riscos decorrentes de travar uma boa luta. Essa atitude contribuiu para que sigam impunes, até hoje, tanto os crimes da ditadura quanto os da privataria tucana. Entretanto, é preciso considerar que parte da base eleitoral e social do cavernícola é tresloucada e pode tomar atitudes por conta própria. 

“Estamos do lado certo” 

A apertada diferença entre o primeiro e o segundo colocado reforçou, em muitos analistas, uma opinião que vem de longe: a tese segundo a qual a esquerda teria ganho apenas graças às alianças feitas com parcelas da direita gourmet. Haverá muito tempo para discutir estas e outras opiniões, no contexto de um balanço completo deste duro processo eleitoral, majoritário e proporcional, nacional e nos estados. Mas neste balanço completo há desde já, para nós, uma “cláusula pétrea”: a eleição de Lula deveu-se, antes de mais nada, à classe trabalhadora com consciência de classe, em particular aos mais pobres, espalhados em todo o país, mas concentrados no nordeste do Brasil. E isso nos dá muito orgulho e a certeza de que estamos do lado certo.

Por fim, não devemos alimentar ilusões acerca do que virá: afinal, seguem vivas as profundas contradições que gestaram o golpe de 2016, a fraude de 2018 e a extrema-direita de massas liderada pelo genocida. É exatamente por isso que, findo o segundo turno, já teve início o terceiro turno, que começa na "transição" e prosseguirá a partir de 1 de janeiro de 2023.

 

IHU – Quais os desafios mais urgentes deste futuro governo?

Valter Pomar – O desafio estratégico consiste em destruir as bases econômicas, sociais, culturais e institucionais da extrema-direita. Noutras palavras, desmontar o neoliberalismo e, assim, destruir o neofascismo. Falando do mesmo tema, mas “pela positiva”, o desafio estratégico implica o seguinte:

1) desencadear uma política de reindustrialização nacional,

2) elevar rapidamente o bem-estar social da população,

3) construir uma cultura democrática e popular de massas e

4) criar as condições para a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, sem o que várias de nossas instituições continuarão servindo de chocadeira de ovos de serpente.

Com ênfases e velocidades diferentes, acredito que exista no PT e na esquerda um razoável consenso acerca dos três primeiros pontos. Mas como é público e notório, não há consenso sobre a ideia de uma Constituinte. Fica a pergunta: qual é o outro caminho para lidar com situações como a hegemonia do Centrão no parlamento, o autoatribuído poder moderador das forças armadas, a hegemonia bolsonarista nas polícias e o afã legislador do judiciário?

IHU – Quais são os caminhos para enfrentar esses desafios?

Valter Pomar – Considerando as atuais situações do Brasil e do mundo, de conjunto muito mais difíceis do que em 2003, entendo que precisaremos de muito esforço, muita organização, muita capacidade de direção coletiva e, principalmente, muita criatividade política. Mas o que me parece fundamental é combinar adequadamente as tarefas de governo com as tarefas típicas das forças partidárias e sociais que conquistaram o governo. Por exemplo: de um lado, tomar medidas para melhorar rapidamente a vida da classe trabalhadora (setores médios inclusive) e, de outro lado, dar elevadíssima importância à ação da educação, da cultura e da comunicação, para poder derrotar a “guerra ideológica” que a extrema-direita move contra nós.

 

No período 2003-2016 não conseguimos combinar adequadamente as tarefas de governo, partidos e movimentos. Uma das consequências disso foi um enfraquecimento de todas as partes e, em seguida, o êxito dos golpistas em 2016.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Valter Pomar – Sim. Durante a campanha, tanto no primeiro quanto no segundo turno, tiveram destaque várias vozes interessadas em diminuir a importância do PT na batalha contra o cavernícola, pensando não na votação do dia 30 de outubro, mas nas disputas que virão a seguir. Mirando no PT, pretendem alvejar a esquerda como um todo e, com isso, aumentar as chances de se livrar do cavernícola, mas não de todas as suas políticas. Para nós, que sempre lutamos para nos livrar não apenas da pessoa Bolsonaro e de seu governo como também e, principalmente, de suas políticas, é fundamental compreender o papel do PT.

É apenas com o PT – não contra o PT, não sem o PT, mas com o PT – que podemos construir uma alternativa positiva para a classe trabalhadora brasileira. Não espero que todos os nossos aliados concordem com isso, até porque têm o direito legítimo de querer suplantar o PT. Mas espero que os petistas compreendam a necessidade de defender o nosso partido, não apenas dos inimigos, mas também de alguns aliados.

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Róber Iturriet Avila é doutor em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul  UFRGS e professor do Programa de Pós-Graduação Profissional em Economia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul  UFRGS. Foi professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos  Unisinos, pesquisador da Fundação de Economia e Estatística  FEE e diretor sindical do Sindicato dos Empregados em Empresas de Assessoramento, Perícias, Informações e Pesquisas e de Fundações Estaduais do Rio Grande do Sul  Semapi. 

Róber Iturriet Avila (Foto: Acervo IHU)

IHU – Que análise faz do processo eleitoral?

Róber Iturriet Avila – Havia um tensionamento face a ameaças sobre o respeito do processo eleitoral e ao clima violento. Cabe notar que é inédito o volume de recursos despejados a meses da eleição. A Polícia Rodoviária Federal efetuou estranhas operações em estradas, sobretudo no nordeste, aparentemente para atrasar eleitores, o que seria um crime gravíssimo, utilização da força do Estado para interferir na eleição. Ocorreram episódios com mortes e armas, o que é muito atípico ao histórico recente, ainda assim, esperava-se um processo mais tumultuado, sinalizações golpistas, que ao fim não ocorreu devido à pressão de organizações internas e externas.

Agudizou-se no país uma divisão que não é marcada apenas pelas distintas visões de mundo, mas também pelo nível de renda. De um lado, enraizou-se um grupo ancorado no conservadorismo sob as bandeiras “Deus, Pátria e Família”. São ideologias seculares que sempre foram fortes no país, mas que agora estão mais coesas do que em grande parte da história, trazidas por militares, produtores rurais, classes médias urbanas, grupos religiosos e alguns (pseudo) liberais.

Sob outro aspecto, há uma demarcação de renda quando se analisam as frações de maior e menor renda nas regiões do país, nos estados, nas cidades e nos indivíduos. O voto na extrema-direita se explica por adesão ideológica e por uma perspectiva antidistributivista, que não é uma novidade na história brasileira.

IHU – Quais os desafios mais urgentes deste futuro governo?

Róber Iturriet Avila – I) Nos últimos anos, a imagem externa do Brasil deteriorou-se. O desmatamento na Amazônia, as queimadas no Pantanal, o negacionismo durante a pandemia, os ataques gratuitos ao principal comprador do país, que é a China, a contestação ao processo eleitoral, o desrespeito aos poderes constitucionais, a emissão de opiniões políticas sobre questões internas de outros países, como sobre o processo eleitoral na Argentina, nos Estados Unidos, no Chile, no Equador, na Colômbia, as desavenças com o presidente francês. Enfim, o Brasil tem hoje uma imagem péssima por diversos motivos e será necessário resgatar imediatamente a perspectiva de um país sem contencioso diplomático, pacífico, que respeita a soberania dos demais países e que está disposto a contribuir para relações pacíficas, em meio ao um mundo que caminha a passos largos para uma segunda Guerra Fria.

II) Ao longo dos últimos oito anos, difundiu-se a ideologia de que o corte de gastos públicos seria capaz de oportunizar crescimento econômico, estabilização da dívida pública, redução da inflação e atração de capitais externos. 

 

Nos seis anos que se sucederam à aprovação da Emenda Constitucional 95, a dívida pública cresceu e o PIB ficou estagnado até este ano de 2022, quando uma série de gastos públicos e auxílios ajudaram a economia a crescer novamente. Houve fuga de capitais do Brasil, redução de investimentos nas áreas de educação e, até o início da pandemia, também de saúde pública. A taxa de desemprego subiu e voltou a cair a partir dos aumentos nos auxílios governamentais. O nível de juro caiu, inicialmente, mas depois foi elevado. Podemos dizer que o insucesso da medida é retumbante.

As utopias liberais deram guarida a um emaranhado fiscal extremamente restritivo no Brasil. Há quatro grandes regras fiscais que impedem o Estado de gastar. Em momentos críticos, é preciso recorrer a novas leis excepcionais para permitir que haja gasto público, a fim de irrigar a atividade econômica. O mercado não tem sido capaz de, sozinho, gerar o volume de investimentos necessários para que haja crescimento. É preciso recurso público para fazer políticas anticíclicas, o que requer rearranjar o regramento fiscal.

III) É necessário efetuar uma ampla reforma tributária, que não apenas simplifique e elimine a cumulatividade de impostos, mas também amplie a progressividade e incentive a competitividade.

IV) Não se pode questionar a essencialidade na provisão de serviços públicos, mas também é preciso de reformas de Estado para melhorias na eficiência e na gestão de pessoas no serviço público.

V) O campo vencedor promete políticas inclusivas na área de moradia, de minorias, transferência de renda, etc. Seria importante que essas políticas fossem mais institucionalizadas para não desmoronarem tão rapidamente como ocorreu nos últimos anos.

IHU – Quais são os caminhos para enfrentar esses desafios?

Róber Iturriet Avila – Não será fácil governar o país com uma oposição extremista no congresso e na sociedade civil. A oposição tende a ser grande, o que exigirá muita habilidade política.

Sob o ponto de vista fiscal, está claro que não é adequado colocar uma regra orçamentária na Constituição, pois isso exigiu a edição de novas emendas para driblar as restrições impostas e aí surgiram a PEC Emergencial, a PEC do Orçamento de Guerra, a PEC dos Precatórios e a PEC eleitoral. Tais alterações vieram para corrigir os problemas de má formulação, insustentabilidade, disfuncionalidade e inexequibilidade da Emenda do Teto de Gastos. Tanto pelos resultados quanto pelos recorrentes remendos, verifica-se que a emenda do Teto tem que ser urgentemente revogada. A Constituição é lugar para grandes acordos da sociedade, e a política fiscal deve ser prerrogativa dos governos eleitos para gerir suas receitas e despesas. 

 

Então, será necessário unificar as quatro regras fiscais existentes em apenas uma, que seja exequível, com espaço para políticas anticíclicas e que promova a retomada do processo de construção do Estado de bem-estar social.

Do ponto de vista dos tributos, há propostas tramitando no congresso que visam unificar e simplificar os tributos, mas é necessário também ampliar a tributação sobre os mais ricos e reduzir sobre os mais pobres e é possível efetuar essa reestruturação sem elevar o nível da carga tributária.

Essas medidas são difíceis de implementar porque há muitos interesses poderosos em jogo que emperram reformas e tais alterações requerem ampla maioria no congresso.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Róber Iturriet Avila – A fracassada terceira via tentará colonizar o governo Lula, ainda mais em um momento em que o apoio desse grupo será crucial.

Os últimos anos foram de conflitos institucionais e federativos. Há um grande desarranjo. A Procuradoria Geral da República prevarica ao não investigar o Executivo, houve um grande escândalo judicial em processos persecutórios e casuísmos em decisões sobre prisão em segunda instância, por exemplo, ocorreram ataques a gestões estaduais e municipais por parte da presidência da República, as Forças Armadas envolvem-se na política, o que é ilegal, enfim, há diversos problemas que precisam de ajuste e reordenação. Não podemos fechar os olhos para as falhas da institucionalidade, mas sua implosão é ainda mais temerária e a história nos mostra que, sem ela, o risco de autoritarismo, violência e caos é enorme.

Serão necessárias mudanças legais para a retomada do poder do Executivo sobre os rumos do país. Além do controle sobre o orçamento, precisamos de uma reforma política visando fortalecer os partidos e permitir mais representatividade política, abrindo espaço a novas lideranças que não tenham grandes patrocinadores.

O primeiro ano de governo será de restrito espaço fiscal, desse modo, as altas expectativas criadas na eleição precisam ser moderadas, a não ser que haja uma excepcionalização legal, flexibilizando o orçamento.

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Bruno Cava em entrevista no IHU

Foto: Cristina Guerini | Acervo IHU

Bruno Cava é graduado em Engenharia pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica – ITA e em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, pela qual também é mestre em Filosofia do Direito, e oferece cursos livres presenciais e on-line por meio do canal Horazul (YouTube).

Entre suas publicações, destacam-se os livros: A multidão foi ao deserto (Annablume, 2013), A constituição do comum (Revan, 2017), com Alexandre Mendes, e A vida da moeda; crédito, imagens, confiança (Maudad, 2020), com Giuseppe Cocco.

IHU – Que análise faz do processo eleitoral?

Bruno Cava – A vitória da frente ampla encabeçada por Lula é um circuit breaker, a interrupção da elevação acelerada da voltagem que ameaçava queimar os circuitos das instituições. Esta eleição pode ser sintetizada entre o disjuntor lulista e o curto-circuito bolsonarista. A coalizão lulista não é a volta de um ciclo progressista das marés rosadas, nem uma reversão do ciclo das novas direitas globais, mas um deslocamento lateral, um "fora" momentâneo ao processo tresloucado de fluxos de pós-verdade agônica e altas cargas emocionais.

Por isso, noutro artigo, falo em desmobilização oportuna. Junho de 2013, enquanto acontecimento, foi primeiro de tudo uma desmobilização geral. A ocupação da metrópole provocou uma parada nos fluxos de mobilidade urbana, no cotidiano acelerado das grandes cidades, na confusão de tempo de vida e tempo de trabalho. A greve dos caminhoneiros de 2018 teve a mesma lógica, mas atuou na hinterlândia brasileira, emperrando a cadeia logística flexível da economia just in time. Em Junho de 2013, não havia déficit de pautas, propostas ou "organização", ao contrário, havia sim um sistema articulado de demandas, ideias e linhas organizativas, certo modo próprio de se ligar a redes de solidariedade social, mas tudo de novo tipo. Daí a minha discordância de interpretações, digamos, hidráulicas de 2013, que aquele evento teria sido um momento de explosão de energias, porém sem precisão, ou seja, com baixa tensão de pensamento.

Foi o contrário: as operações de contra-ataque a Junho é que borraram as diferenciações e recuperam-no como movimento do indiferenciado. Parte da esquerda ressente-se por não ter sido capaz de recuperá-lo pela "esquerda", tingindo-o de vermelho. Contudo, na realidade Junho expôs as cumplicidades entre direita e esquerda no governo da metrópole e excedeu essas divisões internas ao jogo político. Depois de Junho, algo como uma esquerda só faria sentido se fosse junhista ou, ao menos, refundada por Junho, tocada por sua interpelação. O que se deu foi a recuperação de Junho à direita, o que duplamente negou-o, como diferença em movimento e como democracia das minorias. A democracia, cujo despertar Bolsonaro e o bolsonarismo defendem, é o oposto de Junho: o curto-circuito das diferenciações, em que os polos se dissolvem numa mesma zona confusa dominada por estímulos binários em agitação permanente. Aí se constitui o fato majoritário anti-Junho. Nesse sentido que expus, a eleição de Lula atualiza um devir de Junho, que é reintroduzir uma pausa intensa na torrente que virou a normalidade, reintroduz um lag qualitativo, um intervalo para a retomada do pensar e do perceber noutros termos, para além da 'democracia superestimulada' que favorece a constante dissolução das nuances e do poder da diferença e do diferente. 

 

IHU – Quais os desafios mais urgentes do futuro governo?

Bruno Cava – O principal desafio agora são as forças vitoriosas reinventarem-se e serem capazes de deslocar o jogo político e institucional, cujas coordenadas ainda permanecem francamente favoráveis ao bolsonarismo enquanto fenômeno que se institucionalizou e se tornou uma força social poderosa. Houve uma quebra do movimento, mas por inércia ele tende a se reinstalar. Por um lado, é preciso revisar todo o período do Longo Junho brasileiro, sobretudo o panorama complexo de erros ao longo dos últimos dez anos. Para ao menos, errar melhor. É um momento que pede mais teoria, ponderação e pensamento, do que propriamente uma remobilização nas ruas, uma ocupação de instituições. O imperativo não é nem tanto de "autocrítica", como se fosse expiação de culpas, mas da coragem da verdade. Nada faz mais o jogo dos oponentes do que negar a realidade ou contorná-la com raciocínios veleitários e autoenganos reconfortantes.

O Brasil novamente está no cerne de um impasse global que opõe duas alternativas ruins: saídas conservadoras que não fazem mais do que atrasar o colapso tendencial da democracia como terreno de formulação dos antagonismos, e uma constelação de regimes antidemocráticos e antiliberais, em nome de um capitalismo ainda mais predatório e oligárquico, que se afirma como único "outro mundo possível". No Brasil, incide e se reconfigura a principal tensão no interior da crise da globalização neoliberal: entre a falta de imaginação das elites capitalistas, como estamos vendo no Reino Unido ou como ocorreu na Itália com a Agenda Draghi, e a escatologia superexcitada da Internacional Bannonista, como na Hungria orbanista ou nas forças do trumpismo. As novas direitas enxergam-se no fim dos tempos e almejam pela Grande Batalha, contra hordas indiferenciadas, conspirações pervasivas e anticristos ocultos. Todas estas são manifestações da indiferenciação em movimento, o que guia a tomada das democracias liberais pelas novas direitas e dá corpo à sua própria concepção curto-circuitante de democracia. 

 

IHU – Quais são os caminhos para enfrentar esses desafios?

Bruno Cava – O pior que pode acontecer seria responder à imaginação das novas direitas repaginando-a como imaginação do bem, a nossa ou de esquerda, buscando uma face humana para o capitalismo autoritário e predatório que lhe serve de economia política. Parte da juventude pós-moderna tankie, assim como neoestalinistas de todas as idades, estão numa busca por totens ideológicos, bandeiras nostálgicas e líderes másculos porque não acreditam mais que exista sociedade capaz de reformular, por processos endógenos, suas demandas e antagonismos. Haveria apenas indivíduos e Estado, tudo o que não emerja daí seria obra de outros Estados e, portanto, suspeito. A doutrina geopolítica de Putin é uma tentativa de formar uma nova governamentalidade, baseada contra as "revoluções coloridas". Isto é, não haveria mais positividade no campo social, não haveria mais classe em meio ao neoliberalismo contemporâneo, apenas estriamentos estatais, por sinal, de certos estados, as Grandes Potências. É a versão tankista do teorema Thatcher, que nos anos 1980 dizia só acreditar na existência de indivíduos e Mercado, mas não existiria sociedade. As tentativas político-eleitorais de reestruturar um populismo de esquerda foram um fracasso, pois entre um populismo de esquerda e de direita, o eleitor tende a ficar com o de direita, que é mais autêntico, que promove o pacote completo: não só emprego e ordem, mas também família, pátria e "verdadeiro cristianismo".

 

Outro erro com repercussões sérias do papel do Brasil na globalização seria reeditar corolários do terceiro-mundismo, caindo num relativismo cultural a título de posição do "Sul Global", em vez de se guiar, por exemplo, pela insurreição feminista em curso no Irã. No curso canônico sobre o neoliberalismo ("O nascimento da biopolítica"), Michel Foucault alerta sobre como o neoliberalismo, em vez de ser mera ideologia do capital, é uma materialidade do funcionamento relacional do poder, um regime de verdade e de produção de subjetividade, o que ele chama de governamentalidade. Os regimes do socialismo real, segundo Foucault, não foram capazes de desenvolver uma governamentalidade socialista. O maior desafio, portanto, continua sendo desenvolver uma alternativa ao neoliberalismo, algo ainda sem nome, o "enigma do disforme", título do livro que escrevi com Giuseppe Cocco ao redor disso. O tamanho do desejo com a eleição de Lula não pode se restringir à política da utopia negativa ou catechon, a querer mais um entrincheiramento, mais um "mal menor". É preciso aproveitar a pausa constituinte que a eleição de Lula proporcionou e se preparar para reconstituir os problemas do governar na crise. 

 

IHU – Deseja acrescentar algo?

Bruno Cava – Vivemos um tempo úmido, sem certezas e prognósticos seguros, em que, como em 2013, muitos tempos se sobrepõem e se conflagram. É um momento crucial de reorientação. 

 

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