Na palestra “A Teologia cristã em um paradigma pós-teísta”, o jesuíta italiano nos convida perceber uma divindade menos celestial que reside em nós mesmos, no cosmos e em toda forma de vida
Afinal, que lugar ocupará Deus na sociedade do século XXI? Para o teólogo e jesuíta Paolo Gamberini, não importa o quão longe a ciência moderna possa nos levar, se tivermos a capacidade de apreender que tanto a ciência humana está em Deus como Deus está na ciência humana. Aliás, trata-se de uma tomada de consciência de que não cabe mais a figura de Deus apenas como ser celestial, pois ele residente em nós mesmos e em toda e qualquer manifestação de vida no universo. “Toda a criatura traz em si uma estrutura propriamente trinitária tão real que poderia ser contemplada espontaneamente se o olhar do ser humano não estivesse limitado, obscurecido e fragilizado”, disse.
Gamberini foi um dos conferencistas do Ciclo de Estudos: O cristianismo no contexto das transformações socioculturais e religiosas contemporâneas. Na sua palestra, intitulada “A Teologia cristã em um paradigma pós-teísta”, realizada em 15-06-2022, ele ainda observou que a busca pela superação do olhar humano limitado, obscurecido e fragilizado é justamente o que foi revelado pela perspectiva pós-teísta. “Uma visão entendida como panenteísmo, uma visão do ponto de vista teológico e filosófico, com uma perspectiva de monismo relativo”, completou.
Por outra forma, é reconhecer que “Filosofia, Ciência e Teologia, nesses últimos anos, infelizmente, caminharam sozinhas. Cada uma vai com o seu método, cada uma com o seu interesse e com os seus escopos e objetivos. Elas são como ilhas que surgem no mar”. Assim, superar essa rixa cientificista moderna com O Sagrado é compreender que tudo está relacionado, pois se Deus está em tudo e tudo em Deus, há de ser isso o duto pelo qual vertem as infinitas possibilidades de conexões. “Toda a realidade é conectividade, conexão consciente. Esse é um ponto central dessa mudança de paradigma; as diferentes realidades estão conectadas entre elas e essa conectividade é o que é fundamental na estrutura e na matriz da realidade. Interconexão, inter-relação e consciência: essa é a estrutura da realidade.”
A seguir, reproduzimos na forma de texto a conferência de Gamberini. Mais abaixo, disponibilizamos o vídeo da palestra com tradução simultânea para português e, ainda, o vídeo no idioma original, em italiano.
Paolo Gamberini
Foto: La Civiltà Cattolica
Paolo Gamberini é jesuíta, doutor em Teologia pela Faculdade dos Jesuítas de Frankfurt, na Alemanha. Também é professor de teologia junto à Pontifícia Faculdade Teológica de Nápoles, na Itália, autor de diversos livros e pesquisador na área de Teologia Sistemática, com especial enfoque na Cristologia, Doutrina da Trindade, Eclesiologia Ecumênica, Teologia do Diálogo Inter-religioso, Teologia Comparada das Religiões, Teologia Fundamental e Teologia Pós-teísta. Por diversos anos foi professor convidado e associado de universidades jesuítas nos Estados Unidos. Também é orientador de grupos de meditação não dual, silenciosa.
O livro mais recente de Paolo Gamberini é Deus due punto zero. Ripensare la fede nel post-teismo, Verona, Itália, 2022.
O título do da minha fala é “teologia cristã e um paradigma pós-teísta”. É interessante que nosso panorama atual, cultural e teológico, está aos poucos mudando. Assim, nós somos convidados a olhar para frente, olhar longe e não a fazer como o avestruz, que se esconde nas próprias categorias, nas próprias ideias e no próprio passado. Tudo isso para não acolher o desafio desses tempos.
Reprodução da apresentação do painelista
Esta nova consciência que está inserida naquilo que Jaspers [Karl Theodor Jaspers (1883 —1969)] fala como o período axial. O primeiro período axial ocorre quando a consciência tribal, quando as culturas são compartilhadas nos clãs, por volta de 500 anos antes de Cristo, e conhece um período de individualização da própria consciência com o surgimento da autoconsciência moral, pessoal.
É uma autoconsciência pessoal que foi manifestada em personagens como Sócrates e Platão, no que diz respeito à filosofia na Grécia, e, também, nos profetas em Israel, a chamada consciência profética individual que desenvolveu um papel importante para interromper a consciência tribal do povo de Israel. Mas isso também ocorre no Oriente com figuras como Buda e Lao Tzu; eles também chamam essa consciência de individual.
Nós estamos entrando, e diversos autores falam isso, em um segundo período axial. Não se trata mais de uma consciência individual, um resultado por ter deixado essa consciência tribal, mas nós estamos nos aproximando cada vez mais de uma autoconsciência da cósmica. Ou seja, há uma consciência global. Esse segundo período axial nos indica, de forma clara, que estamos evoluindo na nossa consciência. Não estamos mais numa lógica tribal, individual, mas coletiva. Surge, assim, nessa consciência, um saber em conjunto, um elemento fundamental e estrutural nesse novo paradigma.
Reprodução da apresentação do painelista
Como disse a filósofa Olga Pombo, no jornal Avvenire, “pensar significa ultrapassar limites, fronteiras” [no original, em italiano, “Pensare vuol dire allargare i confini”]. E, além dessas fronteiras, ela fala nesse artigo, muito lindo, que a
“...interdisciplinariedade corresponde a uma nova situação epistemológica, o movimento cognitivo que expressa a necessidade de superar o regime analítico de uma ciência reducionista, com um programa capaz de acessar e enfrentar um nível mais profundo e complexo da realidade. Não, então, uma convergência ocasional no trabalho de especialistas de diversas disciplinas que nos deixará preparados diante das emergências planetárias, mas uma autêntica vocação interdisciplinar que permite desmantelar a própria lógica de mundos paralelos.”
Gostaria de destacar alguns pontos centrais nessa citação de Olga Pombo. Primeiramente, superar o regime analítico de uma ciência reducionista. Estamos passando para uma consciência na qual o saber não pode ser fragmentado e não pode ser somente uma análise dura nas diversas ciências que caminham de forma paralela. Ou seja, em uma ciência reducionista na qual perdemos a multiplicidade, o pluralismo dos saberes. É importante, então, passar e ir além dessa visão reducionista dos saberes.
Vamos a um exemplo para demonstrar o que eu entendo com isso. Temos a Filosofia por um lado, temos a Ciência por outro e, se tudo der certo, temos no meio a Teologia. Agora, Filosofia, Ciência e Teologia, nesses últimos anos, infelizmente, caminharam sozinhas. Cada uma vai com o seu método, cada uma com o seu interesse e com os seus escopos e objetivos. Elas são como ilhas que surgem no mar.
Reprodução da apresentação do painelista
Mas, estas ciências, essas diversas ilhas científicas dos saberes têm algo em comum, ou seja, na profundeza do mar, todas estão unidas. Eu chamaria essa profundidade do mar de espiritualidade. Ela significa o sentido do mistério da realidade. Filosofia, Teologia, e Ciência, com certeza, são chamadas para entrar em conexão entre elas. É o que Papa Francisco, na Veritatis gaudium, chama de interdisciplinaridade.
O que significa que Teologia, Filosofia e Ciência precisam colaborar entre elas, ser interdisciplinares. Mas não é suficiente. Por isso o Papa afirma que além da interdisciplinaridade dos saberes é preciso ter uma transdisciplinaridade. É entrar em contato com a profundidade, o que eu chamei de espiritualidade antes, mas eu diria que é no sentido do mistério ao qual está muito conectada a palavra mística, aqui no sentido de uma abertura ao mistério.
Reprodução da apresentação do painelista
Então, o paradigma está mudando e percebemos essa mudança em diversos setores da nossa vida. Trago alguns exemplos de mudança de paradigma. É o caso do carro, que mudou muito desde os primeiros até os de hoje, assim como o telefone. Também temos mudança na maneira de conceber o mundo. À direita, na figura abaixo, poder ver o mundo como ele era concebido na época clássica e, também, na época de Jesus, dos Evangelhos, é o assim chamado de visão pré-moderna. Depois, tivemos essa mudança graças a Copérnico e, de um cosmos geocêntrico, passamos para uma visão heliocêntrica. Isso foi uma enorme mudança de paradigma até chegarmos às mais recentes compreensões do universo e, então, entender o universo na sua longa evolução de milhões de anos-luz, que nos deixa entender como toda a realidade representa uma progressão na diversidade.
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Segundo o Concílio Vaticano, na Gaudium et Spes, a humanidade passa de uma concepção predominantemente estática da ordem das coisas para outra mais dinâmica e evolutiva. Essas duas palavras, mais dinâmica, ou seja, aberta, e flexível em receber o que está acontecendo na cultura dos povos, nas diversas religiões, são aquela que é a categoria da alteridade. Mas é, também, evolutiva a consciência de que o saber está crescendo.
No entanto, nasce uma nova imensa problemática a qual exige novas análises e novas sínteses. Nos reencontramos, agora, entrando numa fase mais dinâmica, mais evolutiva do saber. Gostaria de destacar uma nova síntese.
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São muito importantes três palavras; acredito que se trate de três palavras muito presentes no Brasil porque esse é realmente um lugar de encontro de diversas raças, religiões, culturas. Essas três palavras são: contaminação, mestiçagem e porosidade. Ou seja, a Ciência, a Filosofia e a Teologia precisam viver dessa contaminação, dessa relação de troca de reciprocidade em comunicação. Assim como a esponja tem essa porosidade entre interno e externo, as nossas identidades, cada um com a sua, que são como esponjas de porosidade com o externo. E isso caracteriza a mudança de paradigma da nossa atual cultura, marcada também pela transdisciplinaridade.
Falava antes de mudança de paradigma: passamos de um modelo geocêntrico para outro heliocêntrico, da física clássica para a física quântica e essa é outra mudança de paradigma. Ainda passamos da metafísica platônica do ser até a Filosofia do Espírito, a filosofia transcendental na qual está no centro o sujeito, o eu, o espírito.
Também, no âmbito da consciência religiosa, estamos passando de uma forma de teísmo, nas suas variantes clássica e pessoal, ao pós-teísmo. Ao longo dessa conversa, explico o que entendemos por pós-teísmo.
Reprodução da apresentação do painelista
O que essas diversas mudanças de paradigma têm em comum? No que diz respeito à passagem da física clássica à física quântica temos o surgimento da correlação entre observador e realidade, ou seja, entre a realidade observada e a observação. No que diz respeito à passagem dessa metafísica platônica para aquela mais transcendental, temos a identidade de real e irracional e essa identidade encontrada na dimensão do espírito. E, no que diz respeito ao ateísmo clássico versus o pós-teísmo, temos o surgimento de uma visão do mundo. Então, é a cosmologia na qual o mundo não está fora de Deus, fora da essência de Deus, mas está compreendido em Deus. A palavra panenteísmo quer dizer “tudo em Deus”.
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Deus é aquela realidade que contém em si a realidade do cosmos. Poderia nos ajudar nisso o que Stuart Kauffman fala. Ele é um biólogo que tem uma leitura própria dessa mudança de interpretação e, num livro em italiano, que foi traduzido como “Reinventare il sacro” [Reinventar o Sagrado], questiona que se nenhuma lei da natureza for suficiente para descrever a evolução da biosfera, da vida da evolução tecnológica da história humana, o que ocupa o seu lugar?
Reinventare il sacro, em edição italiana (Codice Edizioni, 2011)
Imagem: divulgação
Aqui, a chave de Kauffman é “uma maravilhosa criatividade radical sem um criador sobrenatural”. Olhem pela janela, a vida está lá. O sol está lá há quase 5 bilhões de anos e a vida há 3,8 bilhões de ano. Essa ampla margem exuberante de vida nasceu com as suas próprias forças, é a perspectiva de ser rei da minha vida. O sistema mais complexo que conhecemos não viola nenhuma lei da física, mas, ao mesmo tempo, é sem lei incessantemente criativa. Isso vale também para a história do homem e para a vida humana.
Reprodução da apresentação do painelista
Essa criatividade é surpreendente, aterrorizante, não podemos ignorá-la. Uma concepção de Deus é a de que Deus é o nome que nós escolhemos para essa criatividade incessante do universo natural da biosfera e das culturas humanas. Eis, então, como esse biólogo tenta repensar a categoria de Deus através da criatividade.
Vamos ver alguns dos desafios que as diversas disciplinas tentaram enfrentar. Começo pelo desafio da física quântica. O que entendemos por física quântica é uma teoria física que descreve o comportamento da matéria, da radiação e das recíprocas interações, com especial destaque para os fenômenos característicos da escala de cumprimento e da energia atômica e subatômica, em que as teorias clássicas parecem inadequadas. A física quântica é, então, uma teoria e o seu papel é aquele de estudar o comportamento da matéria.
No cerne dessa disciplina não está o estudo da natureza da matéria, que é deixado para a Filosofia e para a Metafísica. Lembrando, a física quântica estuda o comportamento da matéria. E como se comporta a matéria? Através de interações recíprocas. Percebam que essa categoria central da física quântica é exatamente a “inter-ação”, inter-relação.
Veja no esquema [abaixo] como houve mudança de perspectiva da física clássica, que podemos ver aqui à esquerda. No centro, temos o sujeito, mas também podemos ver a substância, o átomo, uma unidade bem definida em si mesma. É a última realidade de toda realidade e, certamente, com base em uma visão científica, se tratava da matéria.
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Porém, depois, aconteceu que na física quântica se viu que o que constitui o coração da matéria não era nada mais senão inter-relação, ou seja, a relatividade. É onde o sujeito, como podem ver na imagem [abaixo], é um nó de encontro entre as diversas relações. Mas, a substância, se assim podemos chamá-la, da realidade e do comportamento da realidade estudada pela física quântica é exatamente a inter-relação.
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Na física clássica de Newton, a realidade fundamental é constituída pelo átomo, a matéria. O átomo era a última realidade, mas, se formos olhar a coluna da direita, onde coloquei os principais expoentes da física quântica, Niles Bohr e Max Planck, a realidade não acaba com o átomo e qualidade subatômica, elétrons, prótons e nêutrons. Na realidade, vamos além, até os quantum. Não apenas isso, os campos quânticos com a interação entre a realidade dos quantum e a observação.
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Como podem perceber, o observador desempenha um papel principal, ele é “coessencial” na determinação segundo a física quântica. Trata-se de dois princípios na realidade: na ausência de observação e o outro na observação que cria a realidade. O físico quântico Rovelli, no seu livro recente, intitulado Helgoland (Milão, 2020) [Na edição em português, a obra é intitulada “O abismo vertiginoso: Um mergulho nas ideias e nos efeitos da física quântica” (Objetiva, 2021)], escreve: “a melhor descrição da realidade que encontramos em termos de eventos que tecem uma rede de interações ou entes não passam de efêmeros nós dessa rede. Suas propriedades são determinadas no momento dessas interações e apenas em relação a outra coisa. Cada coisa é apenas a maneira como ela atua sobre qualquer outra coisa”.
Então, essas são as nossas realidades definidas, que na física clássica estavam juntas e conjuntas por uma relação minúscula, com letra minúscula, como podem ver à esquerda [na imagem abaixo], enquanto na perspectiva da física quântica a relação surge quanto ao fundamental. E é nessa relação que se dão os assim chamados “relata”. Ou seja. A e B são emergências, instâncias ações ou até coagulações dessas redes de relações.
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Max Planck, o pai fundador da física quântica, fala: “Considero a consciência como fundamental. Eu considero a matéria como um produto derivado de consciência, não podemos ficar atrás da consciência. Tudo o que falamos consideramos como existente postula a consciência.” E: “Toda a matéria surge e existe apenas em virtude de uma força que leva as partículas de um átomo a vibrar e manter coeso esse diminuto sistema solar, que é o átomo.” E ele conclui: “Temos de aceitar a existência de uma mente consciente inteligente por trás dessa força. Essa mente é a matriz de toda a matéria.”
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Interessante ver essas duas palavras com a mesma raiz etimológica, matriz, de matre, ou seja, mãe. Depois, temos matéria. E a matéria, então, como podemos ver nesse esquema [abaixo], é constituída por átomos, mas os átomos estão compostos por partículas subatômicas. Essas partículas, através da física quântica, tornaram cada vez mais evidentes que se trata de vibrações de energia, vibrações que constituem um campo unificado.
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E este campo é atravessado por aquilo que Marx Planck e outros teóricos da física quântica identificam como consciência. Como é fácil de entender, aos poucos, o paradigma reducionista e materialista de diversos teóricos da física quântica está se aproximando cada vez mais de um paradigma em que a consciência não é mais externa ao estudo da realidade, mas pertence à sua própria constituição. E consciência, de fato, significa vida e vida geradora.
Os desafios do biocentrismo são como a Biologia em correlação com a física quântica, que está sendo revisitada. Temos um livro de Robert Lanza, que se chama Biocentrismo (Il Saggiatore, 2015). Em um primeiro princípio, ele afirma que o que nós percebemos como realidade é um processo que envolve a nossa consciência. O comportamento das partículas subatômicas na realidade de todas as partículas e objetos que percebemos, estão ligados inexplicavelmente a um observador. Sem a presença de um observador consciente, existe apenas um estado indeterminado de ondas de probabilidade.
Essa emergência do biocentrismo, esse surgimento - e aqui apresenta o estudo de um jesuíta, Verschueren -, podemos vê-lo na forma como o nosso genoma está conectado com a vida. A informação de nossos genes não é algo estático, mas através dos estudos de epigenética começamos a entender que há uma inter-relação entre o mundo externo e o mundo interno, entre o ambiente e a nossa própria espécie. O mundo da natureza também está em interação.
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Então, chegamos ao que Carlo Rovelli entendia como interações, e desses nós da rede, enquanto base fundamental da estrutura da realidade. Isso diz respeito também à composição das nossas realidades humanas; a sociedade humana é constituída por relações e cada pessoa também é dentro de si um conjunto de realidades e ligação entre elas. Aqui, gostaria de retomar a expressão “somos todos nós de relações”. Da mesma forma, nossos órgãos, as células, bioquímica, química, física nos dizem que estamos em interação.
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Isso diz respeito ao microcosmo e também à realidade mais profunda que nós chamamos de vazio, que diz respeito não somente à realidade do microcosmo, mas também à realidade do macrocosmo. Ou seja, o movimento desde o menor até o maior. É interessante como a pesquisa científica tenta encontrar uma lei que possa unificar a física quântica. É a relatividade de Einstein, o microcosmo e o macrocosmo.
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Pensemos na conectividade: coloco aqui duas imagens. Na primeira imagem, aquela à esquerda, indica o cérebro. A da direita está mostrando uma imagem do universo. Olhem a analogia, podemos ver o isomorfismo dessas estruturas cerebral em uma e cósmica na outra. Elas nos revelam que a estrutura da realidade cósmica é exatamente aquela interacional, inter-relacional.
O universo tem uma estrutura de fractal, o infinito no finito. O que é um fractal? É uma figura na qual algo é repetido em escalas decrescentes. Então, se colocamos maior a imagem podemos identificar uma cópia e escala da mesma figura. Vejam a imagem abaixo. Aqui em Roma, onde estou, isso é chamado repolho romano. Essa estrutura desse repolho tem cada parte igual à estrutura do todo.
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A Encíclica Laudato Sì', de Papa Francisco, diz que toda a realidade contém em si uma marca propriamente trinitária. Cada criatura traz em si uma estrutura propriamente trinitária. A Trindade é a estrutura fractárica de toda a realidade. Em cada realidade minúscula, macroscópica, nós encontramos a estrutura relacional da Trindade.
Chamo atenção para algo que poderia parecer óbvio, mas que tem um alcance enorme para a compreensão da realidade.
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Esse olho está enxergando a realidade, aquele número que está no centro. Para ele, um 6. Mas, certamente, a partir de outra perspectiva e ponto de vista, esse 6 para um observador pode se tornar um 9 para outro.
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Isso quer dizer que a realidade, na sua profundidade, é relatividade, é relacionalidade. É aquilo que a física quântica afirma quando fala do efeito onda, ou seja, da sobreposição da realidade enquanto indeterminada e marcada pela probabilidade. Essa probabilidade se torna determinada através do observador que determina. Então, a realidade que é provável como o número 6 ou o número 9. Temos aqui a consciência, que joga um papel na determinação da própria realidade.
Retomando esse esquema, podemos afirmar que toda a realidade é conectividade, conexão consciente. Esse é um ponto central dessa mudança de paradigma; as diferentes realidades estão conectadas entre elas e essa conectividade é o que é fundamental na estrutura e na matriz da realidade. Interconexão, inter-relação e consciência: essa é a estrutura da realidade.
Reprodução da apresentação do painelista
Há dois exponentes, um é Carlo Rovelli, que já citamos, e o outro é o físico Frederico Faggin, que fala, em uma de suas obras, que a física e os campos quânticos precisam ter tanto uma realidade externa quanto uma interna. A origem fundamental da consciência de todas as organizações materiais deve existir já nos campos quânticos. Temos, assim, novamente, uma representação dessa compreensão diferente da realidade, de como ela nos ajuda a entender a relação entre matéria e espírito na teologia e, também, na compreensão daquilo que são os nossos dogmas de fé.
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Isso porque temos, geralmente, uma visão materialista que afirma que a partir da matéria surge e é gerado o espírito, segundo a causalidade. Mas a mesma visão com um caráter de emergência poderia dizer que o espírito é aquilo que determina a matéria. Essa visão tensionada pela emergência precisa - e aqui temos o diálogo com a consciência e com a espiritualidade, com a mística e a teologia - de um princípio que não faça com que o espírito saia como um truque de mágica. Precisa afirmar que tudo está no espírito, na consciência, porque a realidade está na sua profundidade; é consciência.
Temos, então, um diálogo muito profícuo entre o princípio de criação, espírito criador, que tem fundamento nessa nova visão da realidade.
Vamos ver como isso envolve uma mudança também das relações que temos no âmbito teológico.
Reprodução da apresentação do painelista
Nós estamos, agora, no antropoceno. É um período marcado pelo homem e suas ações que modificam a realidade. O que isso quer dizer para a consciência religiosa? É aquilo que nós chamamos de passagem do teísmo para o pós-teísmo. Mas o que isso quer dizer?
Pensemos, por exemplo, na identidade de “A”. “A” se coloca em oposição a “não A”, que indica a totalidade daquilo que “A” não é. Este movimento de “A” que se opõem e se separa do “não A” faz parte da identidade de “A”. “A” é “A” porque “A” é não outro “não A”. É o princípio de identidade e não contradição. E, ainda, “não A” é outro de Deus. Veja como princípio de identidade e não contradição marcou a nossa lógica, nosso pensamento. Mas, voltemos e observemos que “não A” é a totalidade de que “A” faz parte, enquanto parte de “A” não é a totalidade exatamente porque a totalidade de “não A” é separada de “A” e a totalidade não é a inteira totalidade, é aquilo que marco com a cor laranja na figura abaixo.
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Observe que “A” é ainda considerada parte da totalidade e a totalidade “não A” acaba sendo considerada também parte de “A”. Esse momento de separação é um momento de abstração. “A” se sente separada de “não A” e “não A” é separado de “A”. Temos duas partes em uma relação relacional biunívoca. “A” tem presciência de “não há” e “não A” precisa de “A” para se afirmar. Mas a inteira totalidade, que está em laranja, envolve “não A”. Então, a parte e a totalidade de todas suas partes.
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Essa inteira totalidade, então marcada aqui com a cor laranja, apresenta o infinito e aquilo que Niccolò Cusano chama de “não outro”. Como podemos falar disso e falar em âmbito teológico? No período paleolítico, a consciência religiosa fazia parte do todo do cosmos. Na passagem para o neolítico, a consciência começa uma separação, ou seja, o cosmos é enxergado como o outro diferente de Deus. O Deus está lá no céu, separado do cosmos, da mãe Terra.
Essa visão criou uma abstração entre a consciência religiosa, da vida, da totalidade, que podemos chamar da totalidade da criatividade divina. Acontece o que antes vimos em sentido teórico, mas agora com Deus. E Deus porque Ele é o outro do mundo e o cosmos é outro de Deus. Na visão teísta, Deus é a totalidade do qual o mundo é parte. Enquanto parte, o mundo não é a totalidade e Deus não é a inteira totalidade, pois o mundo ainda é considerado à parte, uma parte de Deus. São, assim, considerados separados e abstratos e estão em relação biunívoca um com o outro.
A inteira totalidade é a divindade, é aquilo que Niccolò Cusano chamou de “nenhum outro”. A consciência pós-teísta significa voltar, por um lado, a essa unidade originária, mas de forma não mais ingênua e sim através da passagem dessa consciência separada que, por sua vez, ganha novamente a inteira totalidade do infinito. Essa é a perspectiva de muitos autores pós-teístas.
A física traz dentro de si a interação da estrutura na compreensão da realidade. O biocentrismo, no seu interior, tem a consciência e, também, temos a metafísica, que coloca no seu interior o estudo da realidade última e esta é espiritualidade. Biocentrismo, metafísica e física compartilham essa visão da realidade enquanto relação.
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E aqui é fácil de entender o acesso à doutrina trinitária, enquanto estrutura matriz de toda a realidade. É interessante que Agostinho, no De Trinitate, aponta que todos os seres já foram criados originária e primordialmente com determinada estrutura, enredo de elementos previstos e predispostos que se manifestam ao surgirem das oportunidades. Então, Agostinho vê isso como um dos elementos que surge nos eventos, e é o que indica também Rovelli no livro El Goland. Os eventos quânticos, assim como as mães, ficam grávidos de seus filhos; o mundo está grávido dos princípios, das coisas que nascem.
Significa que o mundo traz em si a potencialidade da Trindade e da relação, da inter-relação. São princípios que são criados no mundo a partir daquela suma essência. Claro, estamos falando naquela natureza divina, do espírito, na qual nada nasce e nada morre.
Novamente, voltando à Laudato Si’, observamos que Papa Francisco afirma que tudo está relacionado e todos nós seres humanos caminhamos juntos como irmãos e irmãs numa peregrinação maravilhosa, entrelaçados pelo amor que Deus tem por cada uma de suas criaturas. É o que nos une também, com terna afeição, ao irmão sol, irmã lua, irmão rio e a mãe Terra. E ainda é interessante observar que o conjunto do universo, com as suas múltiplas relações, mostra melhor a riqueza inesgotável de Deus. Essa riqueza é o que Kauffmann chamava de criatividade enquanto nova categoria do sagrado.
No número 139 de Laudato Si’, vemos que Papa Francisco volta com a sua ideia de fundo, a de que toda a realidade contém em si mesma uma marca propriamente trinitária. Toda a criatura traz em si uma estrutura propriamente trinitária.
A criação de Adão, de Michelangelo
Reprodução da apresentação do painelista
Então, poderíamos repensar Michelangelo com o seu quadro “A criação de Adão” e considerar tudo isso numa visão cósmica da realidade. Assim também como a Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, que, no seu interior, então panenteísmo, contém a criação. Criação que não está fora da ciência divina, mas pertence à própria essência divina. A Laudato Si’ volta novamente com essa síntese que eu mencionava antes. De certa forma, o Papa falou que Deus quis se imitar a si mesmo. Aqui aludindo, talvez, à categoria da mística judaica criada no mundo necessitado de desenvolvimento em que muitas coisas que consideramos males, perigos ou fontes de sofrimento fazem parte das dores do parto que nos estimulam a colaborar com o Criador.
Todos os cocriadores, Deus está presente no mais íntimo de qualquer coisa, sem questionar a autonomia de sua criatura. E isso também dá origem à autonomia legítima das realidades terrenas, essa transferência divina que garante a permanência, o desenvolvimento de cada ser e a continuação da ação criadora. E Papa Francisco conclui afirmando que o espírito de Deus encheu o universo de potencialidades que permitem que do próprio seio das coisas possa brotar sempre algo novo. A categoria de criatividade de estrutura relacional da realidade emerge na Encíclica.
Observo como isso já provocou, nos anos de 1960, uma mudança de perspectiva. Vou citar somente Karl Rahner. O que que significa a expressão “o verbo se fez carne”? A carne, o homem corporalmente concreto, histórico, é aquilo que resulta quando o logus, saindo de si mesmo, se expressa. O homem, então, é a expressão de Deus que se expressa no vazio, nada da criatura. É interessante, pois aqui parece aludir ao vazio quântico, pois, se for verdade que o verbo eterno, ao se encarnar, se torna como nós, também estamos no mistério absoluto.
Rahner conclui afirmando que estamos no mistério absoluto, somos Deus. Essa é a expressão panenteísta. Mas não apenas isso, temos algo mais radical em Rahner, pois fala que a assunção de uma realidade espiritualmente criativa por parte do logos constitui uma união hipostática com a matéria. É o logos que se junta à matéria na união hipostática. A realidade total do mundo é, de fato, tocada nas suas próprias raízes, ou na sua estrutura, poderíamos dizer, pela encarnação do logos em virtude do fato de que a matéria precisa ser concebida fundamentalmente desde o começo como uma coisa só com o logos. Autores como Rahner já encarnaram tal perspectiva. E aqui vou colocar a perspectiva de Teilhard de Chardin também.
Reprodução da apresentação do painelista
Na imagem acima, vemos o caminho da evolução desde a biosfera até a cristosfera, passando pela noosfera. Em Jesus de Nazaré isso representa o auge, mas que é também uma antecipação do que vai acontecer no cosmos todo; o cosmos vai se tornar Cristo. O paradigma da encarnação transforma-se num nível criativo. Ou seja, Deus, que comunica no logos, comunica a si mesmo, a toda a realidade, e toda ela recebe conforme a própria capacidade de acolher esse mistério de Deus, que se autocomunica. O ponto auge dessa assunção e recepção, através da autotranscendência, encontrará o seu auge naquilo que Teilhard vai chamar de ponto ômega, a plenitude crística.
Depois, temos Santo Irineu, terceiro século depois de Cristo, que afirma que a palavra de Deus, o filho, por amor ilimitado, se fez aquilo que nós somos para ser aquilo que ele é. É claro que toda a criação se torna nesse caminho através da força. O espírito se torna cada vez mais uma realização do mistério trinitário.
Reprodução da apresentação do painelista
Temos, na imagem acima, a revelação do Primeiro e do Novo Testamento por meio de duas palavras chaves: a humanização de Deus, do alto para baixo, através de certas palavras como sabedoria, espiritual, filho do homem e as outras que podem ver aqui na imagem, com o seu auge em Jesus. Mas, ao mesmo tempo, temos também o movimento de divinização em que a própria realidade da humanidade se diviniza até chegar à plenitude do que nós podemos ver naquele que chamamos filho de Deus, Jesus que é o Messias.
O teísmo, que já consideramos e falamos dele nas suas formas de teísmo clássico e, também, de teísmo pessoal, é distinto do deísmo. O teísmo pessoal também tem algumas distinções, como teísmo aberto. Mas também temos o teísmo clássico, de Tomás de Aquino, com formas interessantes, devido à influência neoplatônica, de panenteísmo. Depois, temos o deísmo no qual Deus é considerado completamente separado do mundo e, então, o mundo na sua absoluta autonomia.
Essa forma de teísmo passou por uma crise, sobretudo, no período dos séculos XIX e XX, e agora estamos em uma fase que eu chamaria de monismo. É o monismo já presente em diversos autores como Spinoza, mas também o sistema de Hegel tem a sua dimensão de panenteísmo que parecia em contraste com o teísmo.
Porém, gostaria de distinguir aqui no monismo uma acepção que eu chamaria de monismo relativo. Esse monismo relativo é aquilo ao que me refiro, porque se trata da forma de conjugar o teísmo com o humanismo, considerado novo como uma dimensão especial do pós-teísmo. São todas as dimensões que têm em comum a figura que chamamos já panenteísmo.
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Para resumir essas diferentes perspectivas, temos três exemplos na figura acima: teísmo, panteísmo e panenteísmo. Quero mostrar como o cosmos e a realidade Deus, nessa dimensão, são resumidas. A dimensão do panenteísmo está na terceira coluna, é o que envolve o mundo no interno, dentro de Deus.
Isso nos leva para uma mudança de perspectiva, uma mudança que exige contemplação profunda da realidade. Mestre Eckhart falava que o olho com que vejo Deus é o mesmo olho com o qual Deus me vê. O meu olho e o olho de Deus são um só olho, uma só visão, um só conhecimento e um só amor. O homem que está fixado no amor de Deus deve estar morto para si mesmo e para todas as coisas criadas, para que não preste mais atenção a si mesmo do que aqueles que estão a mais de mil milhas de distância.
Essa afirmação de Eckhart é uma visão mística e Karl Rahner também nos pedia para nos tornarmos cada faz mais místicos, ou seja, no sentido de compreender o mundo naquela contemplação que na Laudato Si’ também encontramos na relação a Trindade presente em toda a realidade. Toda a criatura traz em si uma estrutura propriamente trinitária tão real que poderia ser contemplada espontaneamente se o olhar do ser humano não estivesse limitado, obscurecido e fragilizado. Essa é a visão que foi revelada pelo pós-teísmo, uma visão entendida como panenteísmo, uma visão do ponto de vista teológico e filosófico, e que também está presente no meu livro mais recente que se intitula “Deus 2.0”, com uma perspectiva de monismo relativo.
Último livro lançado por Gamberini,
Deus 2.0. Repensar a fé no pós-teísmo, Verona, Itália: Gabrielli Editori, 2022
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