Crise boliviana evidencia contradições políticas dos últimos anos. Entrevista especial com Eduardo Gudynas

Manifestantes na Bolívia | Foto: Divulgação

Por: Patricia Fachin | Tradução: Cepat | 20 Novembro 2019

A atual crise boliviana evidencia “todas as contradições políticas que estão sendo vividas nesses anos” no país, afirma Eduardo Gudynas, ambientalista e pesquisador vinculado ao Centro Latino-Americano de Ecologia Social – CLAES, à IHU On-Line. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, ele frisa que o “apego impactante ao poder no Estado” explica as “decisões” do ex-presidente Evo Morales, que disputou à última eleição presidencial, mesmo depois de os bolivianos terem rejeitado sua proposta de concorrer ao quarto mandato. “Mas não é apenas um problema da pessoa, nesse caso Evo Morales, mas de todo um grupo de políticos do Movimento ao Socialismo - MAS que apoiou e promoveu a ideia da reeleição perpétua”, pondera.

Há quase trinta anos acompanhando as organizações bolivianas, Gudynas pontua que “os pequenos caudilhos precisavam de Evo para continuar em seus postos dentro do Estado e círculos de poder. Muitos setores empresariais também precisavam dele, já que haviam conseguido acordos que lhes resultavam economicamente vantajosos (como ocorreu com os setores de mineração, petróleo e agrícola). A insistência em manter a mesma pessoa também expressa um esgotamento do MAS como instrumento de mudança política e a incapacidade de fortalecer outras figuras políticas”.

Na avaliação dele, o ponto mais grave da crise boliviana é a situação do Poder Eleitoral, “cuja legitimidade ruiu, permitiu a fraude eleitoral, e conta com vários membros presos”. Nesse cenário, lamenta, “consolidou-se uma direita reacionária, com aspectos violentos e racistas. Isso, com a liderança de Luis Fernando Camacho, que assumiu o protagonismo nos últimos dias, substituindo o candidato de centro-direita Carlos Mesa, que foi o concorrente na eleição presidencial”. Essa direita, adverte, “tornou-se muito poderosa”.

A tradução da entrevista, concedida em espanhol, é do Cepat.

Eduardo Gudynas em conferência no IHU (Foto: Jonathan Camargo | IHU)

Eduardo Gudyinas é graduado pela Faculdade de Medicina da Universidade da República - UDeLaR, do Uruguai, e já exerceu a função de professor visitante em diversas universidades da América Latina e dos Estados Unidos. É autor de Extractivismos y corrupción. Anatomía de una íntima relación (Ed. Quimantú, Santiago de Chile. 4ta ed., 2018), Naturaleza, extractivismos y corrupción. Anatomía de una íntima relación (La Libre, Cochabamba, Bolivia, 2da ed. 2018), Direitos da natureza: ética biocêntrica e políticas ambientais (São Paulo: Elefante, 2019), entre outros.

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como o senhor analisa a decisão do ex-presidente Evo Morales se candidatar a mais uma eleição presidencial, mesmo após os bolivianos decidirem, em referendo de 2016, que o presidente não poderia concorrer a um novo mandato? O que explica, na sua interpretação, a iniciativa de Evo Morales querer continuar à frente da presidência?

Eduardo Gudynas - Essa situação mostra todas as contradições políticas que estão sendo vividas nesses anos. Há um apego impactante ao poder no Estado, e isso explica essas decisões de Evo Morales. Mas não é apenas um problema da pessoa, nesse caso Evo Morales, mas de todo um grupo de políticos do Movimento ao Socialismo - MAS que apoiou e promoveu a ideia da reeleição perpétua. O caudilho presidencial só se sustenta nos ombros dos pequenos caudilhos que ocupam ministérios, o senado, agências estatais e inclusive governos locais. E eles, por sua vez, descansam e se nutrem de segmentos muito importantes dos cidadãos que apoiam o caudilho. Dessa maneira, essa lógica e a sensibilidade vertical se reproduzem.

Os pequenos caudilhos precisavam de Evo para continuar em seus postos dentro do Estado e círculos de poder. Muitos setores empresariais também precisavam dele, já que haviam conseguido acordos que lhes resultavam economicamente vantajosos (como ocorreu com os setores de mineração, petróleo e agrícola). A insistência em manter a mesma pessoa também expressa um esgotamento do MAS como instrumento de mudança política e a incapacidade de fortalecer outras figuras políticas.

Com isso, iniciou uma franca e severa deterioração da qualidade democrática. Dentro dessa deterioração, chega-se à situação dos últimos meses, incluindo as atitudes da autoridade eleitoral, as irregularidades na eleição, os protestos contra o governo e a renúncia de Morales. E, assim, nas sucessivas quedas da qualidade democrática, desemboca-se em um governo ultraconservador, acentuando-se ainda mais a violência nas ruas.

IHU On-Line - Em sua opinião, qual será o resultado da crise boliviana?

Eduardo Gudynas - Na Bolívia, tudo é muito dinâmico e muitas coisas podem acontecer. Mas, no momento, não posso esconder meu pessimismo. O esgotamento do MAS tem várias consequências negativas. Por um lado, o fracasso institucional no qual o país caiu. Não apenas pela renúncia do presidente, vice-presidente, ministros e legisladores, mas por outras questões que nem sempre estão sendo advertidas. Ao longo de todo o levante cidadão, ficou claro que o Poder Legislativo não conseguiu ser um espaço capaz de lidar com a crise política.

E mais, alguns parlamentares do MAS parecem querer acentuar essa crise, ao passo que os parlamentares da oposição parecem incapazes de controlar o governo provisório e apoiam medidas como colocar os militares nas ruas. É como se os representantes do povo, daqueles que sofrem com esta situação, não estivessem presentes no legislativo.

Contudo, mais grave é a situação do Poder Eleitoral, cuja legitimidade ruiu, permitiu a fraude eleitoral, e que conta com vários membros presos. É um poder que deverá ser reconstruído quase do zero para poder acontecer uma eleição confiável.

Finalmente, ao amparo da resistência cidadã à fraude eleitoral, consolidou-se uma direita reacionária, com aspectos violentos e racistas. Isso, com a liderança de Luis Fernando Camacho, que assumiu o protagonismo nos últimos dias, substituindo o candidato de centro-direita Carlos Mesa, que foi o concorrente na eleição presidencial. Essa direita, com alguns atributos semelhantes aos do bolsonarismo do Brasil, tornou-se muito poderosa. Nela habita um tipo de racismo e violência.

Sob essas condições, chega-se aos confrontos em Sacaba, com ao menos oito mortes e mais de 100 feridos. É uma situação gravíssima, onde morre o povo, enquanto os políticos de um lado e do outro usam esses fatos para tentar buscar vantagens pessoais.

IHU On-Line - Como o senhor analisa as diferentes crises que estão ocorrendo em vários países da América Latina, como Chile, Equador, Honduras, Haiti, Colômbia, Bolívia e Venezuela? Elas têm algum ponto comum? Qual é a causa de cada uma das crises?

Eduardo Gudynas – As características de meu trabalho fizeram com que, nas últimas semanas, estivesse em muitos dos países que enfrentam crises: Argentina, Brasil, Chile, Equador e Peru, e também acompanho organizações bolivianas há quase trinta anos. Como resultado desse trabalho, entendo que não há causa comum para o que acontece nesses e em outros países. Existem coincidências, como, por exemplo, as respostas repressivas dos governos do Equador e do Chile, mas existem diferenças substanciais nas mobilizações sociais, na maneira como se expressam e em suas causas.

IHU On-Line - No entanto, existem analistas que argumentam que existem causas comuns ou processos semelhantes. Como vê essas análises?

Eduardo Gudynas - Muitas dessas análises me parecem exageradas, em alguns casos, e, em outros, é evidente que pouco conhecem da realidade dentro de cada um dos países. É como se as peculiaridades históricas, culturais e políticas - coloquemos o caso do Equador, Chile e Bolívia - desaparecessem, esvaecessem. Então, avaliam o que acontece em outro lugar a partir da própria história do comentarista e de suas posições preconcebidas. Cai-se em comparações que me surpreendem, tais como os argentinos que entendem que a renúncia e exílio de Evo Morales da Bolívia seria como a derrubada de Juan Domingo Perón. Seria como se os analistas brasileiros comparassem Evo Morales com João Goulart. Mas, é óbvio que Morales, como boliviano, cocaleiro, sindicalista, não tem muito a ver com essas outras figuras. São análises que eu chamo de “telescópicas” porque usam um telescópio para observar de longe o que acontece nessas terras.

IHU On-Line - Alguns especialistas têm afirmado que a elaboração de novas constituições em países como Equador, Bolívia e Venezuela, embora contenham múltiplos direitos, não proporcionaram uma mudança das estruturas do Estado. Concorda com essa visão? O que dificultou as mudanças na estrutura do Estado nesses países?

Eduardo Gudynas - Na realidade, nesses países houve uma mudança nas estruturas e comportamentos estatais, mas em alguns setores e com alguns propósitos. Por exemplo, reforçaram-se atividades extrativistas, como a mineração e o petróleo, e se efetivaram planos assistencialistas orientados aos mais pobres. Mas, ao mesmo tempo, essas mudanças não serviram necessariamente para fortalecer os direitos, incluindo os novos direitos que foram sancionados nessas constituições. E mais, em vários casos, o Estado atuou contra esses direitos. Aconteceu algo semelhante ao que acontecia no Brasil, já que onde havia oposição, por exemplo, entre a salvaguarda aos direitos dos camponeses ou indígenas e, por outro lado, os interesses de empresas do agronegócio ou petroleiras, o Estado sempre tomava partido pelos interesses econômicos.

Lembro-me sempre que, no processo do Equador, o presidente da assembleia constituinte, Alberto Acosta, dizia, de vez em quando, que a Constituição é o que pessoas desejam. Uma Constituição pertence aos cidadãos. Portanto, a Constituição terá todo o vigor que os cidadãos demandem.

São demandas e exigências que, de vez em quando, devem ser repetidas aos políticos, pois uma vez que se sentam em uma cadeira estatal, rapidamente as esquecem.

IHU On-Line - Quais são os vínculos entre as demandas por direitos e as políticas de desenvolvimento nesses países, e suas relações com essas revoltas?

Eduardo Gudynas – Essa é uma questão de enorme importância. Precisamente, acabamos de concluir uma detalhada revisão e análise do caso da Bolívia que demonstra uma repetida violação dos direitos das pessoas e do meio ambiente, frente aos empreendimentos extrativistas da última década. Esta é uma análise que parte da sistematização realizada pelo Centro de Documentação e Informação da Bolívia - CEDIB e meia centena de organizações cidadãs nacionais ou locais que fizeram relatórios sobre a situação dos direitos frente aos empreendimentos como a mineração, petróleo e agronegócio. Os resultados são impactantes: existem violações em todos os tipos de possíveis empreendimentos sobre a natureza. Em todos eles, sem exceção. Além disso, entre os setores mais afetados estão os camponeses e indígenas. Finalmente, tudo isso ocorre em um âmbito de crescente violência.

Portanto, a deflagração da violência na Bolívia, de ambos os lados, na realidade, surpreende apenas aqueles que conheciam pouco sobre o país. É que lá, há mais de uma década, observa-se como os violentos e a violência, pelo Estado ou por outros atores, avançavam, dia a dia, principalmente no campo.

IHU On-Line - Em suas análises sobre a América Latina, sempre há uma crítica às políticas extrativistas. Com a crise na região, abre-se uma oportunidade para superar o extrativismo ou ele tende a se agravar?

Eduardo Gudynas - Não pode passar desapercebido que os três países que chamamos de hiperextrativistas, Venezuela, Bolívia e Equador, estejam imersos em profundas crises. Entre os outros grandes extrativistas, a situação não é melhor, tal como se observa no Chile, ou mesmo no Peru, onde o poder legislativo foi dissolvido.

Diante dessa situação, existem dois caminhos possíveis. Há aqueles que entendem que o debate deve ser entre diferentes tipos de extrativismos, por exemplo, opondo um empresarial e estrangeiro a outro que estivesse nas mãos de empresas estatais nacionais. Há outros que compreendem que os extrativismos sempre têm impactos severos, sejam eles privados ou estatais e, portanto, é urgente poder deixá-los para trás.

IHU On-Line - No Chile, discute-se a possibilidade de uma nova constituinte. O que a nova constituinte precisaria considerar para não cometer os mesmos erros das constituições do Equador, Bolívia e Venezuela?

Eduardo Gudynas - A saída por uma nova Constituição no Chile tem todas as possibilidades de contribuir para pacificar o país e promover um novo acordo social e político. Lá no Chile também se repetiu uma violência permanente, persistente, que poucas vezes se observa, mas que era muito evidente no meio rural. Existe uma herança autoritária que, sem dúvida, habita na ditadura militar do século passado, mas não se pode esconder que esse verticalismo, esse disciplinamento social e cultural, conta com muitos apoios.

Um processo constituinte pode começar a curar o país. Isso pode acontecer pelo próprio processo, se for participativo e plural. Mas, também pode ser possível, caso introduza temas do século XXI, tais como gênero, povos originários e ecologia. Debater uma nova constituição também é um processo de aprendizagem. É uma forma de aprender a escutar, ser tolerantes e tecer os compromissos para o futuro.

 

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