29 Mai 2015
Agora que a euforia com a beatificação do falecido arcebispo Oscar Romero passou, El Salvador está voltando ao normal. Infelizmente, o “normal” neste pequeno país centro-americano inclui níveis de violência que seriam assustadores na maioria dos outros lugares.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada pelo sítio Crux, 26-05-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
No último sábado, as notórias gangues criminosas de El Salvador abandonaram o cessar-fogo que haviam declarado para a beatificação, lançando ataques contra residências particulares de autoridades policiais, militares, juízes e promotores. Em quatro destes incidentes, pelo menos um membro de gangue foi morto e várias pessoas ficaram feridas.
Tais ataques já fazem parte da normalidade em El Salvador, país que tinha a distinção dúbia de ter o maior índice de assassinados do mundo em 2014: 68,6 homicídios a cada 100 mil pessoas, a maioria dos quais nutridos por conflitos entre as principais gangues rivais do país: a Mara Salvatrucha e a Barrio 18, e pelo que equivale a uma guerra aberta entre as gangues em conjunto contra a polícia e os militares de El Salvador.
Muitas vezes, pessoas comuns são atingidas no fogo cruzado. Os salvadorenhos dizem que não vão a lugar nenhum aqui sem pensar nos perigos possíveis e sem se preparar para evitá-los.
De um ponto de vista cristão, tudo isso faz de El Salvador um caso estudo sobre as contradições.
El Salvador é um país predominantemente cristão, no qual os católicos representam 50% da população e uma desconcertante variedade de movimentos evangélicos e pentecostais constituem 40%. Em praticamente cada esquina se encontra uma igreja do tipo: “Igreja da Divina Profecia” ou “A Comunidade de Jesus Cristo Salvador”.
O próprio Oscar Romero é um reflexo da religiosidade profunda do país: um pastor que literalmente deu sua vida defendendo os pobres e as vítimas de abusos dos direitos humanos no princípio de uma guerra civil sangrenta na década de 1980.
No entanto, El Salvador é também um lugar de violência crônica, praticamente ubíqua, onde as reportagens sobre os assassinatos são apresentadas nos noticiários noturnos com a mesma frequência, e com o mesmo sentimento de normalidade, que as atualizações sobre o clima e esportes.
Contra este pano de fundo, é inevitável que a relação entre as igrejas e as gangues seja, aqui, algo complexo.
Por um lado, as igrejas são inimigas naturais dos “maras”, como as gangues são conhecidas aqui. Elas se opõem ao comércio de drogas, que é a base financeira das gangues; elas se opõem também à violência e outras formas de ilegalidade. São rivais na conquista dos corações e mentes dos jovens salvadorenhos que estão escolhendo um caminho na vida.
Por outro lado, as gangues também demonstram um respeito enorme pelas igrejas. Os membros delas dizem haver apenas duas formas de se sair de uma gangue: morte, ou uma decisão genuína de mudar de vida que quase sempre envolve religião.
Por sua vez, a maioria dos pastores veem as gangues como um território missionário, estando dispostos a confortarem membros necessitados e, geralmente, não agindo como agentes da polícia.
Na tarde da beatificação de Romero, um ex-participante da gangue “18th Street” – Barrio 18, assim chamada por causa de uma região de Los Angeles, onde as gangues de El Salvador nasceram nos anos 1980 – chegou com uma escolta policial a um hotel no centro de San Salvador para falar com os jornalistas do Crux sobre a vida dentro daquilo que muitas pessoas aqui consideram como um “estado sombrio”.
“William”, pseudônimo que ele usa, não abandonou a gangue por causa de uma conversão religiosa. Ele foi detido em 2010 e acabou fornecendo informações que levaram à prisão de 30 outros gangsters. Hoje está vivendo numa espécie de programa de proteção a testemunhas, enfrentando uma pena de morte por traição da gangue que ele certa vez reconheceu como a sua “família”.
O policial que o acompanhava também insistiu para ser chamado pelo seu pseudônimo, “Marcelo”, refletindo os riscos das represálias que são comuns às unidades policiais especializadas no combate às gangues.
William, hoje com 30 anos, juntou-se à Barrio 18 em 1998, quando tinha 13 anos. Durante os 12 anos em que participou dela, ele galgou as fileiras da organização alcançando o nível de um chefe regional. Admite ter se envolvido direta ou indiretamente em, pelo menos, 10 mortes.
Talvez o momento mais arrepiante da conversa com William foi quando ele descreveu a orquestração da morte de um motorista de ônibus que havia tornado alvo por fornecer informações a uma gangue rival. William conhecida pessoalmente o motorista e deu o tiro final que o matou.
Perguntado se matar alguém que ele conhecia era uma tarefa difícil emocionalmente, ele disse: “É, eu conhecia o cara, mas eu não gostava dele”.
William contou ao Crux que foi a batizado na Igreja Católica, recebeu a Primeira Comunhão e a confirmação, e que mantém um respeito residual por ela. Quando perguntado se ele levaria a cabo uma ordem para assassinar um sacerdote, por exemplo, ele respondeu que não.
“Se este pedido viesse, eu não teria levado adiante porque, a certa altura de minha vida, fiz uma promessa pessoal de jamais matar um bom católico ou um bom cristão”, disse ele. “Eu iria encontrar um jeito de contornar a situação, então eu não iria precisar fazer isso”.
William disse que, na cultura das gangues, há na verdade uma forte deferência às igrejas. “A igreja sempre foi respeitada”, falou.
“Algumas pessoas, na verdade, usam a igreja como uma espécie de máscara”, disse ele. “Elas vão à igreja para parecer que não estão, de fato, numa gangue, vão para esconder o que realmente estão fazendo. Estes sempre acabam morto [pelas próprias gangues], porque não é permitido fazer essas coisas com a igreja”.
Marcelo concordou.
“As gangues vão respeitar a sua escolha de se refazer, de limpar a sua vida, por exemplo se casando e começando uma família, ou mesmo se tornando uma pessoa religiosa”, disse William. “Por estas coisas eles deixam você sair”.
No entanto, segundo ele esta tolerância vem com uma ressalva: “Eles irão observar você, e se ficarem sabendo que estava mentindo, que está mantendo um pé na sua antiga vida, eles virão atrás e o matarão”.
Mike e Jessica Brown, missionários da Assembleia de Deus que vivem na cidade salvadorenha de Santa Rosa, a uma ora de San Salvador, confirmou que ser autenticamente religioso engendra uma admiração surpreendente.
Mike disse que sentiu um chamado de Deus 18 meses antes de sair para fazer trabalho de missão em El Salvador, então ele, Jessica, e seus quatro filhos venderam a casa que tinham e todas as suas posses em Lancaster, Pensilvânia, juntaram dinheiro para fundar uma missão e se mudaram para uma vizinhança tomada por gangues.
Ex-membro da Marinha Americana, Mike Brown disse que lançou uma espécie de experiência correcional para jovens salvadorenhos, na tentativa de alcançar os jovens antes que se envolvam com as gangues. Ex-trabalhador da construção civil, ele e sua equipe de missionários também constroem casas para os pobres, inclusive para membros de gangues.
“Uma vez que descobrem que você é uma pessoa de Deus, eles não lhe incomodam”, disse. “Eles mostram um grande respeito”.
Isso não quer dizer que pastores em El Salvador, estrangeiros ou locais, não corram riscos de vida. Marcelo, o policial que acompanha o entrevistado, disse que, em 20 anos de experiência, não tem conhecimento de algum sacerdote católico que fosse alvo de gangues, mas que conhece casos de pastores protestantes que foram mortos por cooperar com a polícia.
Se um padre tivesse feito a mesma coisa, ele não tem dúvidas de que as gangues triam matado da mesma forma.
“Não existe nenhuma regra que diz que não pode matar um padre”, disse Marcelo. “Com base nesse nível de violência que temos visto, eu acredito que, sim, é bem possível”.
Em geral, acrescentou Marcelo, as gangues não percebem os padres como uma ameaça porque a maior parte deles tomaram uma decisão estratégica em favor do diálogo.
“Eles normalmente são vistos como quem tenta ajudar os jovens, incluindo os das gangues”, disse. “Se um membro de uma gangue chega para falar com um padre, se ele quer falar sobre alguma situação por exemplo, os padres acolhem. Os padres irão visitá-los na prisão e não informam a polícia sobre os membros das gangues.
Uma outra característica interessante da relação entre as gangues e as igrejas em El Salvador é que os especialistas locais estimam que nada menos do que 60% dos participantes das gangues vêm de ambientes evangélicos e pentecostais, apesar da identidade tradicionalmente católica do país.
Não há nenhuma explicação óbvia para isso, embora um fator possa ser que os evangélicos e pentecostais tendem a ser mais visíveis nas comunidades carentes, onde os jovens estão, em proporção, mais propensos a acabar entrando numa gangue.
“Tenho de dizer: não vejo nenhum padre quando passo pelos bairros onde fazemos as visitas domiciliares”, disse Mike Brown.
Apesar do respeito que as gangues demonstram aqui pela religião, não há muitas evidências de que as igrejas estão tendo um grande sucesso em reduzir o nível de violência e criminalidade.
O Rev. Antonio Rodriguez é um padre salvadorenho conhecido por seu trabalho social junto às gangues. Durante uma breve trégua entre as gangues que se iniciou em 2012, Rodriguez foi condenado por associação ao crime depois de supostamente contrabandear telefones celulares para chefões presos, após o que foi forçado a deixar o país.
Membro da Ordem dos Passionistas, Rodriguez disse não acreditar que as igrejas venham tendo um grande impacto no país. Ele contou uma história de quando levou uma freira e o superior de sua ordem religiosa para visitar um líder de gangue na prisão.
“Eles perguntaram o que a Igreja poderia fazer para mudar a situação”, disse Rodriguez. “A sua resposta foi: vocês estão atrasados. Se tivessem tentado fazer isso no começo, talvez teria mudado alguma coisa, mas não agora”.
William, o ex-membro de gangue, concordou.
“Eles têm tentado estratégias diferentes”, disse ele, referindo-se tanto às igrejas quanto ao governo, “e nada vem dando certo”.
“Medidas enérgicas forçam as gangues a se organizarem melhor, de forma que elas acabam se fortalecendo”, disse William. “Quando há uma trégua, os líderes concordam entre eles em não cometer crimes maiores, mas os crimes pequenos se multiplicam, porque é preciso fazer dinheiro, o mesmo dinheiro que se está perdendo”, disse ele.
“Não acho que as coisas vão mudar”, falou.
Mike e Jessica Brown, o casal pentecostal, expressaram uma visão mais otimista.
Mike contou a história de um líder de gangue chamado Enrique com quem ele fez amizade. Na época em que se conheceram, a esposa de Enrique recém havia tido um bebê, e Brown o convidou para trazer a criança à igreja para que pudessem orar pela sua segurança.
Mike e Jessica construíram o hábito de visitar a casa de Enrique, trazendo presentes para a criança e expressando um interesse genuíno em seu bem-estar. Enrique começou a participar da igreja, disseram, e está tentando trazer a sua esposa junto.
Perguntado se era a favor de um diálogo com as gangues para se construir uma nova trégua ou de uma abordagem a “punhos de aço”, defendida por setores mais conservadores da sociedade salvadorenha, Brown sugeriu uma terceira possibilidade.
“Já tentaram o amor?”, perguntou. “Eu lhe digo: em minha experiência, esta é a única coisa que realmente funciona”.
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Em El Salvador, há uma relação de amor e ódio entre igrejas e gangues - Instituto Humanitas Unisinos - IHU