Quando o espírito de maio de 1968 começou a morrer...

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18 Mai 2013

Depois de Maio poderia ser mais um filme sobre as revoltas que uniram estudantes e operários franceses em maio de 1968 por um novo mundo, distante das amarras dos grandes dogmas. A preocupação do diretor francês Olivier Assayas, no entanto, não é com o passado, mas sim com o mundo que nasceu dessa efervescência revolucionária.

Seu próprio título enuncia e a legenda de abertura nos avisa: o filme se passa nos arredores de Paris em 1971, três anos depois das greves massivas que pararam o país. Conhecemos o contexto cambiante e os novos rumos que se delineiam por meio da história de um grupo de jovens no último ano do Ensino Médio.

O comentário é de Marina Mattar e publicada por Opera Mundi, 05-05-2013.

O movimento estudantil já não era mais o mesmo, a aliança entre as fábricas e as universidades se rompeu e a reação conservadora fortaleceu as forças contra as quais o movimento se ergueu: apenas um mês depois da revolta, em junho de 1968, o partido conservador de Charles De Gaulle ganhou as eleições parlamentares com maioria esmagadora, conquistando 353 dos 468 assentos; grupos de esquerda foram colocados na ilegalidade; e as tropas de choque da polícia se fortaleceram. Por outro lado, a luta revolucionária se radicalizava em direção aos grupos terroristas da década de 1970 e voltava a se aparelhar nos moldes contestados pelos jovens em maio de 68.

Gilles (Clément Métayer) e seus amigos não chegaram a participar das lutas de maio de 1968, mas são fortemente influenciados pelo seu espírito contestador, que combina tão bem com a juventude. Eles não querem seguir a vida burguesa de seus pais, desejam mudar o mundo e experimentar uma nova forma de existência. As opções com que se defrontam refletem o momento histórico: uma hora se é da luta armada; na outra, um artista preocupado com suas obras; e, em seguida, se está em busca de novas respostas ao desencanto ocidental no misticismo do Oriente e nas drogas que surgem.

A sensação de que são jovens perdidos pode ser pela idade dos personagens, mas também pelo começo do fim da exaltação de maio de 1968. Como o trailer oficial do filme explica: “depois das palavras, depois das utopias, depois dos sonhos e depois das lutas”. Não são tanto os indivíduos que aparecem, mas os erros e caminhos que levaram ao mundo de hoje.

Quais foram os destinos das pessoas envolvidas no maio de 1968 e, mais importante ainda, de suas ideias contestadoras? Essa parece ser a pergunta que coloca Assayas, ele mesmo um membro dessa geração “perdida”. Como o próprio diretor, Gilles deve decidir entre o engajamento político e a carreira artística. “Você sempre foge do combate”, “E você, faz melhor que eles?” e “Não se trata do que você arrisca, mas de ser coerente consigo mesmo” são apenas algumas das críticas dirigidas ao personagem que teme “perder sua juventude” por não viver o presente intensamente.

É o momento das descobertas da vida aliado a um período turbulento de muitas novidades que se impõem com força aos jovens, e seu professor já lhes avisou, profeticamente, no início do filme, que “entre o inferno e o nada, há apenas a vida, que é a coisa mais frágil do mundo”. Entre escolhas radicais e o medo, os personagens traçam caminhos que não levam à ruptura nem à construção de um “homem novo para um mundo novo”.

Lendo uma das edições da Internacional Situacionista durante viagem de trem, Gilles constata que a revolução, muito diferente daquela idealizada por Marx ou Lenin, é inevitável desde os eventos de 1968. Apesar de perceber os problemas e dilemas da esquerda pós-1968, que ainda não admite os massacres ocorridos na Revolução Cultural na China de Mao Tse Tung, o personagem não sabe o que estaria por vir. Mas nós e o diretor sabemos: a revolução não só não aconteceu como os sonhos da esquerda se esfacelaram ou estagnaram.

Acreditava-se que maio de 1968 marcaria o início de uma nova era, de novas respostas aos problemas enfrentados tanto no capitalismo quanto no socialismo soviético. Jovens e operários juntos se negavam a aceitar o autoritarismo do governo, dos partidos e dos sindicatos e diziam “é proibido proibir”. As aspirações revolucionárias deram lugar às tentativas de reformas por vias democráticas e uma onda de conservadorismo varreu as juventudes por todo o mundo.

Assayas parece querer entender como acabou o sonho de transformar o mundo, um esforço que Daniel Cohn Bendit, uma das principais figuras do movimento estudantil de maio de 1968 na França, também se dedicou no aniversário de 20 anos das revoltas em seu livro Nós que amávamos tanto a revolução. Os jovens revolucionários ou morreram ou envelheceram demais para procurar novas alternativas. "Hoje em dia, perdemos a fé em transformar o futuro", afirma o diretor francês, de 56 anos, à AFP.

Mostrar a falência do “espírito de Maio de 68” nem sempre é bem-recebido pelo público. Como lembrou o crítico de arte Luiz Zanin, Depois de Maio foi criticado no Festival de Veneza por não recuperar “aquela aura febril e poética” do período e apenas denunciar seu colapso. Ainda assim, o filme recebeu os prêmios de melhor roteiro no Festival de Veneza de 2012 e de melhor filme francês em 2013 (Prix Louis Delluc).

No longa, nós, espectadores, já identificamos como essas ideias foram eclipsadas. A França que se desenha é a França contrária à aprovação do casamento gay, que elegeu Nicolas Sarkozy e que quer banir os imigrantes e seus descentes. É o prelúdio da apatia conservadora e da vitória da direita neoliberal.

Depois de Maio mostra aos jovens, como eu, que nossas liberdades atuais vieram de lutas e escolhas radicais de pessoas como nós e que, de certa maneira, regredimos muito nesses anos em relação aos jovens de outrora. As práticas de nossa geração, dita como “sem bandeiras” por ter nascido em um mundo – fruto de 1968 - onde “tudo já é permitido”, parecem ter se descolado das ideias e do espírito que embasaram a liberalização do uso de entorpecentes, do sexo e da experimentação. Talvez tenha sido por isso que o diretor decidiu escolher trabalhar apenas com não atores, escolhidos enquanto passeava nas ruas, - a única exceção foi Christine, interpretada por Lola Creton.

A partir da vivência dos personagens do longa de Assayas, podemos nos perguntar: somos tão livres e contestadores como eles? Até onde nossas relações e nossas vidas não acabaram por recuperar valores tradicionais tão contestados e identificados com os “velhos” da época? “É preciso matar o polícia que existe dentro de cada um de nós”, já diziam os muros de maio de 1968.

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