Sair da guerra civil bioética. Artigo de Riccardo Cristiano

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07 Julho 2022

 

A recente decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos em matéria de aborto corresponde a uma radicalização de posições no debate público - não apenas nos EUA. O resultado é um maior distanciamento dentro do corpo social, com um aumento do conflito que corre o risco de ameaçar sua estabilidade. A proposta de mediação de Riccardo Cristiano se insere nesse quadro.

 

O artigo é de Riccardo Cristiano, jornalista italiano, publicado por Settimana News, 06-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

O pontificado de Jorge Mario Bergoglio - o papa que diz que, para a Igreja, este é o tempo de discernimento e de iniciar processos em vez de ocupar espaço - poderia ser aquele que nos ajuda a sair da guerra civil bioética sobre o início e no fim da vida humana.

 

Esta opõe os defensores do eu soberano - um soberano absoluto que se dispõe de si como bem entende - e os guardiões do direito de Deus que a priori arquivam os direitos do ser humano como tal. É evidente que se o confronto cultural é reduzido dessa forma, chega-se justamente à guerra, pois o confronto civil e a coexistência de ideias se tornam impossíveis.

 

Por isso - como leigo - gostaria de pedir à Igreja, aos teólogos, aos pastores, que reabrissem o diálogo sobre a defesa da vida - "da concepção à morte natural" - como sempre foi dito. Na minha opinião - e não só na minha opinião, pelo menos ouvindo a ciência - a pessoa vivente é o resultado de um processo que atinge a vida humana, assim como a morte: neste último caso, trata-se de um processo condicionado - como bem sabemos - à disponibilidade de medicamentos, terapias e equipamentos capazes de auxiliar a vida biológica.

 

A vida como processo natural

 

A primeira evidência é, portanto - para mim - que a formação e a conclusão da vida pertencem a processos naturais sobre cuja continuidade e complexidade, juntamente com o sentido de mistério, é necessário concordar imediatamente. A distância agora tida como certa da chamada obstinação terapêutica e a aceitação quase unânime dos cuidados paliativos demonstram que, no que diz respeito à vida que está em seu fim, é possível compreender-se uns aos outros ou quase.

 

Enquanto isso, o absolutismo do eu soberano é tal que propõe um referendo sobre o homicídio consenciente. No entanto, na minha opinião, isso tem favorecido o entendimento entre aqueles que são razoáveis: os recentes desenvolvimentos sobre o "suicídio assistido" indicam que um entendimento de bom senso é possível e a aprovação do relativo projeto de lei na Câmara é uma prova concreta disso.

 

Portanto, se o mundo leigo, secular e liberal abandona, pelo menos em parte, a cultura do eu soberano, pode encontrar uma Igreja que, como escreveu o padre Ferrer no último número de La Civiltà Cattolica, sabe considerar que "as normas morais são necessárias, mas, por si só, insuficientes para determinar como operar na situação particular. A lei sem consciência não tem sentido. Somente a consciência do agente moral pode formular a norma concreta para a ação”.

 

Acredito que o encontro - na profunda diversidade que permanece - também seja possível no processo que dá origem a uma nova vida humana e, portanto, sobre o drama do aborto. Porque a vida biológica e a pessoa - me parece - não são a mesma coisa: não surgem no mesmo instante. A vida biológica tem curso desde o momento da concepção, pois cada célula está viva. Mas a vida torna-se propriamente humana por meio de um processo, que ocorre quando esse organismo vivo se torna uma pessoa com os direitos próprios de todo ser humano.

 

Pensando assim, as duas abordagens mais populares hoje me parecem ideológicas.

 

Ideologias contrapostas

 

A ideologia do eu soberano a vejo na manifestação – justamente ideológica e não aceitável – de que se possa dispor do que nasce, com arbítrio. Inclusive a própria sentença da Suprema Corte estadunidense recém revogada - a mais permissiva do mundo - reconhecia os direitos do potencial nascituro, permitindo o aborto até o sexto mês, com limitações entre o primeiro e o segundo trimestre, prevendo apenas a proteção da gestante no terceiro trimestre: esse momento já incluía uma visão da vida humana considerada como tal apenas quando autossuficiente.

 

Mas a outra é também uma visão ideológica. A vida deve ser defendida sempre. Tudo bem. De fato, a defesa intransigente da vida do novo nascido não desaparece no dia seguinte ao nascimento, enquanto não conheço legislações pró-vida que garantam ao recém-nascido assistência social e sanitária incondicional, pelo menos por um período de tempo razoável.

 

Aborto: lei 194

 

Entre esses dois extremos está a sabedoria - a meu ver - da lei italiana 194. De fato, não constitucionaliza um direito: a interrupção voluntária da gravidez decorre de necessidades terapêuticas, não de um direito.

 

A Lei 194 de 1978 define a interrupção voluntária de uma gravidez "terapêutica", admitindo-a nos casos em que a gravidez ou o parto constituam um perigo para a saúde física ou psíquica da mulher "em relação ao seu estado de saúde, ou às suas condições econômicas, sociais ou familiares, ou as circunstâncias em que ocorreu a concepção, ou previsões de anomalias ou malformações do concebido”.

 

Na 194 fica claro o cuidado que a lei quer para a mulher, muitas vezes subestimado: não só porque os primeiros artigos introduzem importante vontades de assistência e ajuda às mulheres em dificuldade diante de uma gravidez inesperada e, portanto, tentadas pela escolha abortiva, mas também porque no artigo 4º se reconhece o que eu chamaria de estado de exceção.

 

Falar de um estado de exceção em direito significa falar do "caso limite". A própria ideia de legislar nesse sentido é problemática por si só, pois pode levar à normalização da exceção. Mas, precisamente o que é excepcional, pode nos ajudar a nos mover na excepcionalidade normal de um processo que leva da não existência ao tornar-se organismo vivo, depois uma pessoa. É por isso que, na minha opinião, podemos ficar de fora dos extremismos opostos.

 

As palavras do papa

 

O Papa Francisco durante duas entrevistas televisivas - a primeira transmitida pelo Canale 5 em 10 de janeiro de 2021 - afirmou que todos os cientistas, crentes e não crentes, concordam em dizer que um mês após a concepção o embrião já é um organismo vivo. Essas certezas científicas estiveram no centro de outras declarações de Francisco: por exemplo, em entrevista a uma emissora espanhola.

 

O Avvenire assim as relatou em 4 de setembro de 2021: “Em qualquer livro de embriologia dado a um estudante de medicina na faculdade, diz-se que, na terceira semana da concepção, às vezes antes que a mãe perceba [que está grávida], todos os órgãos do embrião já estão delineados, inclusive o DNA. É uma vida. É uma vida humana. Alguns dizem que não é uma pessoa, mas uma vida humana!”.

 

Acredito que a intenção de Francisco fosse a de argumentar o seu “não” ao aborto de uma forma ainda mais convincente. E, de fato, suas palavras me fizeram pensar, pelo menos a mim. De sua parte, acho que a menção à distinção entre vida, vida humana e pessoa, que nem sempre é feita, é de enorme honestidade intelectual.

 

E, no entanto, qualquer um que tenha familiaridade, ao contrário de mim, com a teologia diz que o próprio Tomás de Aquino admitia que a vida humana chega e posteriormente, depois de ter chegado, leva à formação da pessoa. Então, como negar que existe um tempo entre a concepção e a formação de uma nova vida humana?

 

Uma proposta de mediação

 

Para mim, durante as primeiras etapas do processo da vida - que se inicia com a fecundação do gameta feminino pelo gameta masculino - não se pode dizer que existe vida humana e mais ainda uma pessoa, desde a concepção. Seria como dizer que o processo se conclui no mesmo momento em que começa.

 

Existe, portanto, um tempo – digamos intermediário – durante o qual um processo vital extraordinário transforma a vida em vida humana: poderíamos ainda pensar nele como um tempo de discernimento para a plena paternidade? Acho que, durante esse tempo, aqueles que dramaticamente - dramaticamente no sentido de uma ação bem ponderada - renunciam a levar a gravidez a termo e não conseguem matar a vida humana.

 

Um sistema "contraceptivo" poderia aparecer. Não é assim. Sei que a Igreja Católica não reconhece a legitimidade da contracepção, mas isso não a impede de poder distinguir e discernir entre prevenção e supressão: essa passagem, para mim, é fundamental para o entendimento com o mundo laico.

 

Quanto dura esse tempo intermediário? Certamente não sou eu quem pode dizer isso. Certamente é um tempo breve. Acredito que, embora breve, com todas as cautelas do caso, seria muito importante reconhecer que esse tempo existe.

 

O tuciorismo é aquela doutrina moral segundo a qual, quando a norma pode ter diferentes interpretações, é necessário seguir o que a lei prescreve, ao pé da letra, mesmo que a opinião contrária seja provável. É claro que isso confere maior certeza ao sujeito, mas nega a complexidade, remove e não permite o diálogo e o confronto sobre diferentes posições.

 

Certa vez perguntei a um muçulmano por que o Islã proíbe o consumo de vinho que, no entanto, é abundante no paraíso islâmico. Explicaram-me que Maomé não proibiu beber vinho, mas sim ir bêbado à mesquita. Só mais tarde os teólogos se perguntaram sobre o problema de esclarecer em que momento alguém fica embriagado. A solução, para não se enganar, foi a proibição.

 

A certeza responde evidentemente a uma necessidade do ser humano que se sente permanentemente num terreno escorregadio, aliás, perigoso! No entanto, ele sabe ser mais livre do que sua necessidade de certezas: a relevância do momento da concepção - a inteligência e o estado de confiança do humano - permitem à mulher e, portanto, ao casal o discernimento necessário.

 

Um encontro possível

 

A abertura à liberdade de consciência - daqueles poucos dias - poderia produzir o efeito de um encontro entre o crente que admite que a vida não é vida humana, nem pessoa, já no momento da concepção e o não crente que abandona a ideia da soberania absoluta de si e, portanto, do aborto como um direito.

 

A plena compreensão, para mim, viria do reconhecimento das etapas desse processo: a primeira é a que antecede a definição da vida humana, a que segue é a que leva à definição da pessoa, momento em que há a última fase, aquela em que uma pessoa espera por nascer.

 

Compartilhar essas reflexões envolve uma glosa importante: o recurso, em minha opinião desejável, ao estado de exceção antes do momento da definição da pessoa, não configuraria um direito. Precisamente isso deveria levar as partes a concordarem sobre os direitos sacrossantos da pessoa, reconhecida como tal por toda a vida! A grande novidade seria nos descobrir concordes sobre os direitos da pessoa humana, sempre, com possível distinção sobre o tempo de exceção sobre o qual convidar à reflexão, para o bem de todos.

 

Acredito que seja possível porque vejo duas prioridades: buscar o bem maior em concordância entre as diferentes sensibilidades e assumir que o mal maior é levar as mulheres de volta ao cone desumano do aborto clandestino que a ideologia da vida não pode evitar. Esta última, durante anos, constituiu o principal motivo que levou partes importantes do mundo católico a defender a 194: do teólogo Gianni Gennari nos anos do referendo a Assuntina Morresi do Comitê Nacional de Bioética, que escreveu sobre isso em Tempi. A aceitação do mal menor é a rejeição do mal maior que corre o risco de matar mãe e nascituro.

 

Acredito que hoje seja uma prioridade nos entendermos novamente: recriar uma ideia de comunidade, mesmo entre portadores de posições diferentes que saibam encontrar uma base aceitável para o encontro.

 

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