Cardeal Koch: uma crise que abala o ecumenismo

O Patriarca Kirill em Liturgia na Catedral da Intercessão de Gatchina. (Foto: Saint-Petersburg Theological Academy | Flickr CC)

15 Julho 2022

 

É uma posição impossível que o Patriarca Kirill legitime a brutal guerra na Ucrânia por razões pseudorreligiosas, disse o Cardeal Kurt Koch em entrevista ao “Tagespost”. O presidente do Dicastério para a Promoção da Unidade dos Cristãos quer fazer da relação entre Igreja e Estado o objeto do diálogo católico-ortodoxo.

 

A entrevista é de Stephan Baier, publicada por die Tagespost, 29-06-2022, e reproduzida em italiano por Nuova Europa, 07-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis a entrevista.

 

Eminência, a guerra na Ucrânia foi precedida por anos de lutas eclesiásticas dentro da Ucrânia, bem como entre Moscou e Constantinopla. Essa escalada dentro da Ortodoxia contribuiu para a guerra?

 

As tensões internas dos ortodoxos servem certamente também como pano de fundo para a situação atual na Ucrânia e testaram duramente as relações entre Moscou e Constantinopla. Mas seria deplorável se tivessem levado à terrível guerra na Ucrânia ou fossem usadas para legitimá-la. Porque os conflitos eclesiásticos nunca devem ser "resolvidos" pela força.

 

O Patriarca Ecumênico Bartolomeu queria restaurar a unidade entre as várias Igrejas Ortodoxas na Ucrânia, mas até agora esse objetivo só foi alcançado minimamente. Ele esperava que a maioria dos bispos da Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Moscou (UOK-MP) se unisse a essa Igreja recém-instituída. Entretanto, isso não aconteceu.

 

O Patriarcado de Moscou descreveu a iniciativa de Bartolomeu como uma "invasão" a que se deve resistir.

 

Não posso compartilhar esse ponto de vista, que também é contrariado pelos terríveis eventos ocorridos desde 24 de fevereiro, pois nesta guerra os ortodoxos do Patriarcado de Moscou na Ucrânia também são mortos e suas igrejas destruídas.

 

O patriarca russo Kirill justifica a guerra em discursos e sermões e cria sua própria narrativa. Quanta culpa tem o Patriarcado de Moscou?

 

A justificativa pseudorreligiosa da guerra pelo Patriarca Kirill deve abalar todo coração ecumênico.

 

Do ponto de vista cristão, uma guerra de agressão não pode ser justificada, mas, no máximo, sob certas condições, a defesa contra um agressor injusto. Banalizar a brutal guerra de agressão de Putin como "operação especial" é uma maneira imprópria de usar a linguagem.

 

Devo condenar essa posição como absolutamente impossível.

 

No dia 16 de março houve uma vídeo-conversa entre o Papa Francisco e o Patriarca Kirill da qual o senhor participou. Francisco queria falar com a consciência de seu irmão de Moscou?

 

Na segunda metade de fevereiro foi agendado um encontro via zoom entre o Metropolita Hilarion e minha pessoa para preparar ainda mais o segundo encontro entre o Papa Francisco e o Patriarca Kirill marcado para junho. Como a guerra na Ucrânia já havia estourado, aproveitei a reunião do Zoom para apresentar o pedido para que o papa e o patriarca se posicionassem juntos contra a guerra. Como o Metropolita propôs repetidamente uma declaração conjunta sobre a perseguição aos cristãos no mundo de hoje, salientei que partilho dessa preocupação, mas que tal declaração seria totalmente implausível se não fosse dita uma palavra contra o fato de - como na Ucrânia - os cristãos lutam contra os cristãos e os ortodoxos se matam uns aos outros.

 

Logo após esse encontro, recebi a resposta de que o patriarca não estava pronto para uma declaração conjunta com o papa. Apenas algumas semanas depois, Moscou pediu uma conferência via Zoom com o papa.

 

Não foi algo ingênuo? Roma não deveria ter imaginado que a conversa seria explorada por Moscou?

 

Isso pode ser visto em retrospecto. O Santo Padre aceitou a sessão via Zoom certamente na esperança de poder dar a sua contribuição para uma rápida conclusão da guerra. Ele enfatizou com ênfase que "nós" - papa e patriarca - não somos "clérigos de estado", mas "pastores do povo" e que deve ser sua responsabilidade acabar com a matança e a destruição o mais rápido possível.

 

Logo após o encontro via Zoom, o Patriarcado Ortodoxo Russo emitiu uma declaração afirmando que o patriarca estava grato pelo papa e ele terem uma visão comum do conflito na Ucrânia, Roma teve que comunicar publicamente o que o papa realmente havia dito.

 

Em várias declarações, o Santo Padre condenou fortemente a guerra na Ucrânia e pediu o fim da guerra.

 

O senhor seria a favor de um novo encontro no formato Havana 2016 entre Francisco e Kirill?

 

Vale lembrar que um encontro com o chefe da Ortodoxia Russa já havia sido um grande desejo do Papa João Paulo II. Tal encontro havia sido acordado por ocasião da Segunda Assembleia Ecumênica Europeia em Graz em 1997, mas foi cancelado por Moscou pouco antes.

 

O fato de o Papa Francisco ter conseguido encontrar o patriarca ortodoxo russo pela primeira vez na história foi recebido pela opinião pública com certa euforia e deu esperança de uma melhora nas relações mútuas.

 

Mas o encontro em Havana já havia sido explorado por Moscou na luta com o patriarca ecumênico em nível interortodoxo.

 

Apesar disso, isso não mudou nossas relações com o Patriarcado Ecumênico que, pelo contrário, continuaram e se intensificaram. Para nós é claro que o patriarca ecumênico tem o primado de honra na Ortodoxia. E sempre respeitamos sua decisão de que o diálogo teológico entre a Igreja Católica e as Igrejas Ortodoxas seja conduzido de forma não bilateral, mas apenas multilateral. Portanto, nunca houve um diálogo teológico entre Roma e Moscou, mesmo que Moscou o desejasse.

 

Pode haver um diálogo ecumênico entre Roma e Moscou na situação atual?

 

Por um lado, as portas nunca devem ser fechadas. Sempre deve haver uma fresta aberta, porque senão nada pode ser feito. Por outro lado, infelizmente é impossível prever quanto tempo durará a terrível guerra na Ucrânia. Se um novo encontro entre o papa e o patriarca tivesse que ocorrer em um momento em que as ações de guerra ainda estão em curso e o patriarca Kirill mantiver sua indefensável justificativa para a guerra, o encontro estaria exposto a graves equívocos. Porque poderia ser mal interpretado como o apoio de um papa à posição do patriarca, o que prejudicaria seriamente a autoridade moral do papa.

 

Sou grato ao Papa Francisco por cancelar o encontro com o Patriarca Kirill em Jerusalém, agendado para meados de junho.

 

Kirill postula uma unidade nacional de russos e ucranianos com base no batismo da Rus de Kiev em 988. Então pensa que o sacramento do batismo seja constitutivo da nação. É uma heresia?

 

Na minha opinião, o patriarca não faz derivar a unidade do próprio batismo, mas do fato de que o grande príncipe de Kiev Vladimir se fez batizar com o rito bizantino em 998 e declarou o cristianismo a religião do estado. A invocada unidade, no entanto, é hoje cruelmente desmentida: se russos e ucranianos saíram da mesma fonte batismal, mas hoje os russos atacam os ucranianos e travam uma guerra contra eles, então a unidade é desmentida.

 

Em minha opinião, a heresia está no fato de que o patriarca ousa legitimar a guerra brutal e absurda na Ucrânia em bases pseudorreligiosas. No fundo, torna-se visível um problema fundamental que reside na relação entre Igreja e Estado, que na Ortodoxia é visto e modelado em termos de sinfonia entre as duas realidades.

 

Do lado católico, a luta pelas Investiduras e suas consequências derrubaram as ilusões em relação ao Estado, mas também no Oriente haveria uma desilusão com ele com cinco séculos de dominação otomana ou setenta anos de comunismo soviético.

 

No Ocidente, o cisma entre as Igrejas e as sangrentas guerras religiosas dos séculos XVI e XVII também contribuíram para tornar decisiva a ideia orientadora da separação entre Igreja e Estado, mantendo ao mesmo tempo a colaboração entre as duas instituições. Apesar de todas as mudanças e desenvolvimentos, o Oriente adere em grande medida ao ideal tradicional da sinfonia entre Igreja e Estado.

 

Essa importante diferença tem sido amplamente ignorada nas conversas ecumênicas até hoje. A situação hoje exige uma intensa discussão sobre as diferentes concepções. Os ortodoxos continuam pedindo esclarecimentos à Igreja Católica sobre sua dimensão universal e o papado. Nós católicos, por outro lado, devemos questionar a Ortodoxia sobre seus conceitos de autocefalia e de território canônico – sobretudo porque este último conceito é difícil de conciliar com o respeito à liberdade religiosa. Além disso, os ortodoxos não conseguem mais manter seus princípios na diáspora.

 

No debate sobre a relação entre sinodalidade e primado, às vezes se argumenta que o primado papal seria o último obstáculo entre católicos e ortodoxos. Para os católicos, porém, o ministério petrino não tem apenas um fundamento prático ou histórico, mas também teológico.

 

O tema principal do diálogo teológico entre as Igrejas Católica e Ortodoxa é a relação entre sinodalidade e primado. Nesse sentido, conseguimos dar um passo significativo com o documento de Ravenna em 2007. O documento expressa a convicção de que sinodalidade e primado são interdependentes e que a Igreja precisa de um protos, um primeiro, em todos os níveis de sua vida - local, regional e universal. O fato de católicos e ortodoxos poderem dizer juntos que um protos também é necessário em nível universal da Igreja foi um passo importante.

 

É claro que esse ponto de vista não foi reconhecido pelo Patriarcado Ortodoxo Russo que, aliás, publicou seu próprio documento sobre o primado universal, que difere amplamente do documento da Comissão Internacional mista. Mas mesmo nesse diálogo ainda não foi possível trocar pontos de vista sobre a visão bíblica de Pedro e sobre sua posição no círculo dos doze. Em vez disso, fala-se de primazia em um sentido bastante abstrato. Mas uma visão puramente funcional da primazia não é suficiente.

 

Nós, católicos, estamos convencidos de que com o ministério do Sucessor de Pedro recebemos do Senhor um dom precioso, que não devemos guardar para nós mesmos, mas transmitir, porque vemos nele um importante serviço à unidade. Em sua encíclica sobre o empenho ecumênico [Ut unum sint], o Papa João Paulo II expressou a convicção de que o ministério do Sucessor de Pedro é um ministério de unidade e que se manifesta também e sobretudo no ecumeno.

 

À ortodoxia talvez não estaria faltando de forma bastante evidente o ministério da unidade? Assim, o Patriarcado de Moscou nega ao patriarca ecumênico o direito de conferir autocefalia.

 

O metropolita Hilarion criticou repetidamente o patriarca ecumênico por se comportar como um papa ortodoxo. Certamente não é uma declaração amigável em relação a nós, católicos, quando a palavra "papa" é usada como um rótulo negativo. Se o Patriarcado Ortodoxo Russo reconhece ou não a primazia da honra do patriarca ecumênico e sua competência para conferir autocefalia não cabe a mim julgar, mas deve ser discutido entre os ortodoxos.

 

Em sua luta com o Patriarcado Ecumênico, Kirill parecia ter algum sucesso antes da guerra. Agora seu poder e reputação na ortodoxia mundial estão se deteriorando.

 

O observador atento deve perceber que a posição do Patriarca Kirill é controversa na Ortodoxia mundial. A UOC-MP (Igreja Ortodoxa Ucraniana - Patriarcado de Moscou) também decidiu que não quer mais permanecer ligada a Moscou. Ainda não está claro em que direção ela irá se orientar no futuro. De fato, a autocefalia não pode de dar por si mesma, mas só pode ser recebida pela mãe Igreja. Com a UOC-MP, o Patriarcado Ortodoxo Russo perdeu grande parte de seus fiéis.

 

O diálogo ecumênico com a Ortodoxia está se dissolvendo em muitos diálogos?

 

A Ortodoxia decidiu conduzir o diálogo teológico com a Igreja Católica em nível multilateral e não bilateral. Essa decisão é vinculante para mim. De acordo com qual fórmula desejará manter o diálogo conosco no futuro, é responsabilidade da Ortodoxia. Se o diálogo fosse conduzido apenas em nível bilateral, temo que ainda mais tensões seriam criadas dentro da Ortodoxia.

 

Não podemos e não devemos encontrar a unidade entre as Igrejas Católica e Ortodoxa dividindo a própria Ortodoxia. O fortalecimento da unidade na Ortodoxia também deve ser uma preocupação para nós, especialmente na atual situação muito difícil da Ortodoxia mundial. 

 

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