Kirill cada vez mais “putiniano”: as razões pelas quais ele “demitiu” Hilarion

Patriarca Kirill (Foto: Larry Koester | Flickr CC)

15 Junho 2022

 

A substituição repentina do “ministro das Relações Exteriores” ortodoxo mostra o alinhamento do patriarca de Moscou com a política agressiva do presidente russo.

 

A reportagem é de Stefano Caprio, publicada em Tempi, 13-06-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Em 7 de junho passado, ocorreu em Moscou a sessão sinodal do patriarcado ortodoxo, que tomou uma série de decisões bastante relevantes, das quais a mais surpreendente foi a substituição repentina do primeiro vigário do patriarca, o Metropolita Hilarion (Alfeev), um personagem bastante conhecido também no exterior pela sua função de presidente do Departamento para as Relações Eclesiásticas Externas.

 

A reunião também foi chamada de “Sínodo dos vencedores”, porque absorveu na jurisdição moscovita a Igreja da Crimeia, que havia permanecido dependente de Kiev mesmo após a anexação de 2014.

 

O aviso de Moscou aos ucranianos

 

O patriarcado, acima de tudo, ofereceu uma réplica autoritária à decisão do sínodo análogo, realizado alguns dias antes pelos coirmãos ucranianos, membros da Igreja presidida pelo Metropolita Onufryj (Berezovsky), que sempre permaneceu em comunhão com Moscou e agora declarou a sua independência.

 

Na decisão da cúpula presidida pelo Patriarca Kirill (Gundjaev), expressou-se “o desapontamento com a pressão sobre a Igreja na Ucrânia [“UPZ”, Ukrainskaja Pravoslavnaja Zerkov, para distingui-la da “PZU”, Pravoslavnaja Zerkov Ukrainy, que distingue a Igreja autocéfala], manifestando o nosso apoio àqueles que foram obrigados a omitir o nome do patriarca na liturgia”, e por isso “lembramos que a decisão de mudar o status da UPZ só pode ser tomada dentro do procedimento canônico, que inclui a deliberação do Concílio local da Igreja Ortodoxa Russa”.

 

Para além da linguagem burocrática curial, Moscou adverte que os ucranianos não podem autodeterminar sua própria dimensão eclesial, “provocando um novo cisma” após o ocorrido em 2019, quando o patriarca de Constantinopla, Bartolomeu (Archontonis), concedeu o Tomos de autocefalia, a declaração de autonomia eclesiástica, à Igreja PZU presidida pelo metropolita de Kiev, Epifanyj (Dumenko).

 

“A Crimeia é nossa"

 

Kirill também decidiu proclamar “a Crimeia é nossa”, “Krym Naš!”, o famoso grito de vitória de Vladimir Putin na Praça Vermelha na noite de 18 de março de 2014, quando o referendo da Crimeia decidiu pela anexação à Rússia. Então, o patriarca contestou o triunfo com a sua ausência na reunião e deixou Sebastopol nas mãos de Onufryj; hoje, ele o ameaça de excomunhão caso torne efetiva a declaração de independência, modificando os estatutos que vinculam a sua Igreja a Moscou.

 

Na realidade, a UPZ é autônoma há algum tempo, pois desde os anos 1990 ela obteve de Moscou a faculdade de poder se autogerir, justamente para não deixar a arma do nacionalismo ucraniano aos “autocéfalos”. O Patriarcado de Moscou manteve apenas um primado de honra, para lembrar o vínculo indissolúvel entre russos e ucranianos, que é a principal motivação da “operação militar especial” iniciada em 24 de fevereiro.

 

Todas as contradições do mundo russo

 

O arcebispo Lazar (Švets) de Simferopol, de 83 anos, novo herói nacional da “resistência” às influências externas e às tentações de cisma, permaneceu à frente da Metropolia da Crimeia. Hierarca de longa data, tornou-se bispo em 1980 na Argentina nos tempos de Pinochet, tornando-se exarca patriarcal para a América Latina, onde chegou a celebrar em 1988 o Milênio do Batismo da Rus’, o início do renascimento religioso do pós-comunismo, até renomear a praça em Buenos Aires perto da Igreja russa como “praça do santo príncipe Vladimir”.

 

De volta à sua terra natal, foi protagonista da reabertura de igrejas e mosteiros na Ucrânia, onde chegou a concorrer ao Parlamento em 1990, antes do fim da URSS. A independência de Kiev ocorreu enquanto ele presidia a diocese de Odessa e Kherson, uma das áreas mais afetadas pelo conflito atual, e apoiou ativamente o pedido de autocefalia que os ucranianos dirigiram a Moscou em 1992, mas ao mesmo tempo pediu que a sua diocese permanecesse “nas dependências diretas do patriarca de Moscou”.

 

Lazar, portanto, encarna todas as contradições atualmente em jogo em nível eclesiástico, até mesmo as do “mundo russo” em todos os continentes, onde o Patriarcado de Moscou se propõe como a única verdadeira Igreja Ortodoxa para todos os povos.

 

Quem é Hilarion

 

A exaltação de Lazar se contrapõe à destituição de Hilarion, que, por sua vez, encarna a “nova geração” dos ortodoxos pós-soviéticos, em uma corrida de revezamento ideal de restauração do velho no lugar do novo, muito mais significativa do que aquela com o jovem metropolita Antonij, chamado a ocupar o lugar de “ministro das Relações Exteriores” patriarcal.

 

Hilarion, 58 anos, foi consagrado bispo em 2001, no alvorecer do putinismo, e também se orgulha de uma importante missão estrangeira. Enviado como vigário do lendário metropolita de Surož, Antonij (Bloom), na Inglaterra, em pouco tempo reduziu a nada a síntese da Ortodoxia russa e da cultura anglo-saxônica que caracterizava a Igreja naquelas terras, demonstrando ser o perfeito “agente especial” para a russificação do mundo. Por isso, Kirill, que se tornou patriarca em 2009, cedeu-lhe o seu lugar no Departamento das Relações Exteriores, que Hilarion presidiu, portanto, durante esses 13 anos.

 

O hipotético escolhido

 

O departamento está sediado no mosteiro moscovita de São Daniel, cuja restituição foi um dos primeiros sinais do degelo em relação à religião, antes mesmo de Gorbachev nos anos 1980. Kirill o usou durante anos como a verdadeira sede do poder eclesiástico, deixando ao seu antecessor Aleksij II (Ridiger) apenas os modestos escritórios perto da Catedral de Cristo Salvador, herança da marginalização dos tempos soviéticos.

 

A tomada de posse do grande mosteiro naturalmente fazia de Hilarion o “escolhido” mesmo na hipotética linha de sucessão patriarcal, que em todo caso ainda está longe de chegar a um ponto decisivo.

 

Kirill, aliás, adotou com o seu herdeiro uma política muito congênita a ele, a da “reviravolta dos fidelíssimos”: depois de tê-lo transferido por anos de uma sede a outra, quando o colocou na cúpula da São Daniel, tirou-lhe quase todos os poderes, desmembrando a estrutura elefantina do departamento em uma série de outros dicastérios, onde ele poderia colocar seus outros discípulos, permanecendo como o único chefe de toda a máquina.

 

Boas relações com o Vaticano

 

O papel diplomático de Hilarion, portanto, devia permanecer apenas honorário, limitando-se a executar as ordens do líder supremo e seguindo-o como uma sombra, como ocorreu no histórico encontro em Havana com o Papa Francisco em 12 de fevereiro de 2016. Hilarion sempre se ateve ao roteiro, mas tentando acrescentar elementos que pudessem deslocar algum refletor sobre ele.

 

Em 2009, ele criou o instituto para aspirantes e doutores “Cirilo e Metódio”, um centro de alta especialização teológica que se coloca acima de todos os seminários e academias da Rússia, aproveitando os anos de Oxford e das suas pesquisas no campo histórico-patrístico. Tendo feito também seus estudos de juventude no conservatório, Hilarion ganhou uma certa notoriedade como compositor de música sacra e profana, e suas obras eram inevitavelmente inauguradas no Vaticano, às vezes até antes do que em Moscou.

 

Hilarion e Tikhon

 

Não faltaram, portanto, motivos de tensão entre Kirill e Hilarion, pois o patriarca não tolera que os seus subordinados se movam de modo autônomo e brilhem, mesmo que parcialmente, com luz própria.

 

Kirill, portanto, posicionou ao redor do seu primeiro “delfim” uma série de outros colaboradores próximos, começando pelo seu atual substituto, o muito jovem Metropolita Antonij (Sevrjuk), 36 anos, bispo desde 2015, que ainda em 2009 ele havia cooptado como seu secretário pessoal, a ponto de ser definido como “afilhado de Kirill”.

 

No entanto, Hilarion permaneceu no seu posto por todos esses anos, até porque ele era a contrapartida necessária para outra estrela emergente do clero ortodoxo russo, o atual metropolita de Pskov, Tikhon (Ševkunov).

 

Ele vem de um círculo muito diferente da “ortodoxia política” de Kirill, que colaborava em Moscou com as instituições estatais desde os tempos soviéticos; Tikhon era um monge de Pskov, convertido nos anos 1980, expoente da ala mais intransigente da Ortodoxia, precisamente a dos mosteiros. Mais tarde, ficou famoso como “pai espiritual de Putin”, tendo sido o conselheiro do futuro presidente quando este escolheu o cristianismo como uma fé e uma ideologia ao mesmo tempo, que salvava a Rússia da total desagregação.

 

Hilarion e Tikhon permaneceram assim até agora como os dois antagonistas na interpretação do papel da Igreja no novo Estado, o primeiro mais “institucional” e o segundo mais “ideológico”, entre Kirill e Putin, na nova edição da “sinfonia bizantina” na qual os dois poderes deveriam estar em pé de igualdade com papéis diferentes, exceto pelas contínuas vontades recíprocas de prevaricação.

 

Distanciamentos

 

Agora Kirill parece claramente alinhado com a vontade de Putin, que na guerra ucraniana expressa a ideia agressiva e apocalíptica de uma Rússia ortodoxa que deve salvar os povos irmãos e o mundo inteiro.

 

Tikhon permaneceu nos bastidores, já tendo cumprido amplamente o seu papel de inspirador nos últimos anos, e se limita a controlar a situação a partir da distante Pskov, que também faz fronteira com a Bielorrússia e fica muito perto da Ucrânia.

 

Hilarion também tentou ficar longe das polêmicas, mas os últimos fatos eclesiásticos foram fatais para ele. Após o pronunciamento do Sínodo de Kiev pela independência, ele se limitou a afirmar que em nível canônico “nada havia mudado”, e evidentemente isso foi como um distanciamento da necessidade de se impor aos ucranianos, como se quisesse sugerir que também parassem as ações militares.

 

A saga do patriarca e dos metropolitas

 

A gota d’água que fez transbordar o copo foi a viagem de Hilarion a Budapeste, em 5 de junho, na qual o metropolita devia e limitar a agradecer ao presidente Orbán por ter se oposto às sanções contra Hilarion.

 

Hilarion, por sua vez, deu ampla divulgação do seu colóquio com o cardeal Peter Erdo, um dos prelados católicos mais autorizados da atualidade, para sublinhar a importância de manter contato com interlocutores estrangeiros, talvez até os chefes de Estado ocidentais.

 

A saga do patriarca e dos metropolitas ainda está longe de terminar, conhecendo os personagens e aguardando os desdobramentos de uma situação internacional cada vez mais dramática. Alguns comentaristas interpretam o exílio húngaro de Hilarion como mais uma oportunidade para conquistar um papel independente como protagonista ou até como uma jogada combinada do próprio Kirill, para ter uma carta a mais para jogar, dependendo dos resultados futuros.

 

Certamente, a Igreja Ortodoxa Russa mostrou, não apenas com essas últimas escolhas, que a separação entre política e religião ainda é uma questão atual da Europa e também obriga os laicíssimos ocidentais a relerem a história para conhecer o futuro.

 

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