PMs, milícias e governo Bolsonaro: uma relação de apoio, favores, vantagens, privilégios e carteiradas. Entrevista especial com Jacqueline Muniz

Segundo a pesquisadora, não há uma adesão institucional das forças de segurança com o atual presidente e sua família – que incide sobre o governo –, mas uma associação de interesses em busca de poder através do discurso da violência

Foto: Tânia Rego | Agência Brasil

Por: Joao Vitor Santos | 07 Mai 2021

 

“Este não é um governo militar no qual as Forças Armadas fazem no país a política do exército, e sim um governo de (com) militares que fazem a sua própria política para atender aos seus projetos pessoais de poder”. Assim a socióloga Jacqueline Muniz define o governo de Jair Bolsonaro, contrapondo aqueles que insistem em falar em adesões. Para ela, o mesmo vale para as corporações das polícias militares nos estados. “Os PMs, provenientes das periferias sociais, são pragmáticos e não têm tempo a perder com o que não afeta de maneira utilitária as suas vidas dentro e fora do serviço. Eles não têm nada a ganhar com esta suposta briga e com ela pouco se importam, uma vez que esta não muda absolutamente nada em suas rotinas funcionais subordinadas à máquina estadual”, completa, na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

 

Com larga experiência em pesquisas sobre o universo das polícias, Jacqueline insiste que não há uma adesão das instituições a esse governo. “A família Bolsonaro não desenvolve relações substantivas com instituições, sejam elas as policiais ou as Forças Armadas, e nem tem apreço por elas. As instituições têm pouca valia para este grupo já que atrapalham os seus negócios políticos”, enfatiza. Segundo ela, é preciso compreender que esses grupos não são homogêneos ou uma massa amorfa. O que há é uma aproximação de sujeitos dessas corporações que buscam satisfazer suas necessidades pessoais ou de seu pequeno grupo.

 

No caso das Forças Armadas, é uma espécie de tentativa de manter um status quo que prova que são importantes, e que não lhes cabe o pijama da reserva e nem as marcas da guerra ou do golpe. Isso porque compreende que a classe militar é “composta majoritariamente de gente de baixo que ascendeu pela carreira militar, que quer ter as coisas de classe média e levar uma vidinha burocrática e tranquila sem conflitos internacionais ou domésticos para atrapalhar”. Já dentro das PMs, a aliança é com sujeitos que também buscam regalias extras, sem abrir mão do contracheque estatal. “Assim, a família Bolsonaro conta com uma proximidade intencionalmente construída com policiais militares da base da pirâmide, os praças, com os quais se pode, mais facilmente, estabelecer uma lógica contratual uberizada de prestação de serviços recíprocos nos negócios da proteção”.

 

E com isso, nascem as milícias. Ao longo de toda a entrevista, Jacqueline analisa as relações de alguns sujeitos das forças policiais do Estado brasileiro com o campo da polícia – e com os políticos. Pois, compreender isso, em particular no caso das PMs, é também compreender as organizações que nascem daí. “Milícia não sobrevive sem braço político de apoio, favores, vantagens, privilégios e carteiradas. Por isso, ela é financiadora de campanhas eleitorais. As carreiras políticas servem como um ótimo investimento criminoso. Estas carreiras políticas são uma importante lavanderia do dinheiro extorquido da população pela milícia”, exemplifica.

 

Jacqueline Muniz (Foto: Arquivo pessoal)

Jacqueline Muniz é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense - UFF, mestre em Antropologia Social pelo Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, doutora em Ciência Política pelo IUPERJ, Universidade Candido Mendes (1999) com a tese “Ser policial é, sobretudo, uma razão de ser: cultura e cotidiano da PMERJ”. Atua como professora adjunta do Departamento de Segurança Pública e do Mestrado de Justiça e Segurança Pública, do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos - IAC da UFF. Ainda é professora do curso Tecnólogo em Segurança Pública e Social CECIERJ/UFF e pesquisadora do Núcleo de Estudos em Conflitos e Sociedade - NECSo/DSP/IAC-UFF.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Como a senhora analisa as mudanças ocorridas nos comandos das Forças Armadas? O que isso revela acerca da adesão dos militares ao governo Bolsonaro?

Jacqueline Muniz – Na política, o que aparece para o público não necessariamente é como as coisas, de fato, são e funcionam nos bastidores. Há uma grande distância entre o que acontece longe e na frente dos holofotes da sociedade, e que é preenchida por negociações e acordos vantajosos para os envolvidos. Sempre que possível, “acomoda-se” os egressos em alguma boquinha estatal ou privada, possibilita-se uma “queda para o alto” com a contrapartida de se passar um tempo esquecido em algum esconderijo institucional do tipo SPA de reabilitação política e econômica. Há que “ficar bem na foto” com jogos de cena pensados.

Assim, a mudança no comando das Forças Armadas foi combinada, acertada em seus detalhes com as Forças e o seus pares no Governo. Deu tempo de treinar a performance pública das personagens, ensaiar suas falas combinadas, mandar os devidos recados para dentro do governo e para fora: STF, Congresso, mercado, mídias etc.

O “pular fora” conjunto dos três comandantes foi a saída política encontrada para encenar algumas divergências (ao agrado da elite política, do poder econômico e da burguesia ilustrada) e dramatizar supostas “insatisfações internas do oficialato” com o governo, especialmente com os militares ministros, sem promover rupturas ou desembarcar integralmente dele. Foi uma troca conveniente de seis por meia dúzia com resultados desejados e com menores arranhões possíveis.

 

 

Governo de/com militares

Este não é um governo militar no qual as Forças Armadas fazem no país a política do exército, à moda Goes Monteiro, e sim um governo de (com) militares que fazem a sua própria política para atender aos seus projetos pessoais de poder, por exemplo, buscar sobrevida civil e empresarial além do pijama. E, se for necessário, usando as Forças Armadas como trampolim e moeda corporativista de troca.

Estima-se cerca de 12 mil militares ocupando funções civis na máquina federal, uma espécie de programa “Meu DAS, Minha vida” que cobre menos de 3,6% do efetivo das Forças Armadas. E que deixa de fora do mercado dos cargos comissionados parte expressiva do oficialato que também quer fazer seu pé de meia, acumulando privilégios corporativos do mundo militar com as vantagens pecuniárias e as liberalidades sociais do mundo civil. Mas esta debandada expressiva de militares para a máquina civil deixou no ar a pergunta: está sobrando militar e faltando serviço nas Forças Armadas? Se é razoável reduzir seu tamanho, benefícios, orçamento etc. diante de ociosidade expressa na cessão expressiva de pessoal para a máquina civil.

A mudança de comandos foi menos uma crise e mais uma treta corporativa, bem típica de uma sociedade política que se articula por arranjos estamentais provisórios colados no fio do bigode: “eles que são militares de alta patente que se entendam”. A novidade foi combinar a história conjunta a ser contada para a sociedade.

 

“Bola nas costas”, mas só dos pares

O pessoal que ficou nas Forças Armadas só estava levando bola nas costas vindas de seus próprios pares que, improvisados como gestores políticos, inconsistentes até na execução dos próprios projetos pessoais de poder, foram criando pisos e tetos de vidro, trazendo seus desmandos, incapacidades e incompetências para dentro delas. O fiasco da produção de cloroquina; o destaque midiático nas compras duvidosas de cervejas, de filé mignon, de chicletes e de leite condensado; o TCU no calcanhar das licitações para aquisição e reposição de materiais; as piadas desmoralizantes do sargento e do cabo fechando Congresso e STF, nas redes sociais; os rituais patéticos de chamamento de golpe por grupelhos que sequer elegem um militar como síndico de prédio; a tragédia de milhares de mortos pela Covid sob a condução ministerial de um general; os espasmos anedóticos presidenciais de autogolpe, estado de sítio etc., que duram menos que uma promoção de picanha em supermercado; a queda da aprovação do presidente e de seu governo de/com militares e, por fim, a gravíssima crise sanitária, econômica e social vivida que envolve também a base popular das forças e seus familiares.

Tudo isso parece suficiente para produzir alguma distância profilática do governo de Bolsoleone e algum flerte com outros poderes da República. Afinal, ninguém gosta de perder prestígio e poder.

 

 

Só vontade de ser classe média

As Forças Armadas, compostas majoritariamente de gente de baixo que ascendeu pela carreira militar, que quer ter as coisas de classe média e levar uma vidinha burocrática e tranquila sem conflitos internacionais ou domésticos para atrapalhar, se viram expostas a todo tempo neste governo, perdendo até para os “memes” nas batalhas virtuais. As Forças Armadas sabem melhor do que ninguém que elas não têm e nunca tiveram condições para darem golpes sozinhas e que, hoje, o recurso repressivo militar é dispensável, oneroso e de baixo rendimento, como evidenciado na saída forçada da presidente Dilma.

 

Novo recado

As Forças Armadas, cansadas da fatura salgada dos mandos patéticos, dos desmandos anedóticos e, sobretudo, das ameaças de gang de esquina feitas à nação serem colocadas em sua conta por atores governamentais e aliados, precisavam também “voltar a respirar” o oxigênio ainda escasseado para a população, diante da pandemia de denúncias e do pandemônio dos sucessivos noticiários negativos. Foi preciso criar um fato político que tirasse as Forças Armadas do reality show de 10ª categoria em que elas se encontravam. Dar um tempo das mídias, das redes sociais e das matérias negativas que vinham arranhando sua imagem e resgatar o seu papel de bala cintilante e retórico de “legalista”.

O novo recado dado foi: queremos ficar na nossa, na paz dos quartéis, no nós por nós com o nosso mundinho de privilégios e benefícios militares. Mas a mensagem antiga segue a mesma: eles não gostam de políticos, mas adoram a política e nunca saíram dela ou das ruas.

 

 

IHU On-Line – Como a crise entre militares das Forças Armadas e governo repercutiu junto aos policiais militares nos estados?

Jacqueline Muniz – A suposta crise com militares foi mais uma crise fabricada sob encomenda no calendário político-eleitoral, uma crise a pedidos. Nosso cacoete liberal-autoritário-esperto-e-voluntarioso sempre espera e demanda um “basta” dos militares até nas cismas da vizinhança. Espera-se um “calor dado” em algum desafeto pelo primo fardado fortão, pelos chefes do nosso playground onde a cidadania sob tutela brinca de democracia.

A tal da crise dos militares foi também reconhecida como “crise” por quem vê o fantasma do golpe militar em todos os lugares, em todos os momentos, e que tira alguma serventia destes alertas traumáticos e proféticos. Acender vela para golpe serve para reacionários mostrarem que são mais fortes do que são. Serve para progressistas desmoralizarem antecipadamente um amanhã indesejado, ainda que improvável. Serve para produzir, pelo medo aparelhado, uma unidade moral tanto contra quanto a favor das ameaças ao Estado Democrático de Direito. Serve, ainda, como um poderoso marketing pessoal para analistas profetas do dia seguinte, gabaritados em ler o futuro e vender suas predições.

Sem bola de cristal, é possível dizer, sem cair na tentação explicativa da tudologia, que os cerca de 450 mil PMs no Brasil não constituem um bloco robótico de minions, uma unidade homogênea e uniforme que desfruta de um pensar unitário. Esta é uma abstração fantasiosa e simplória que destitui as realidades dos PMs e das suas instituições de singularidade e pluralidade. Ela reproduz a “filosofia Capitão Nascimento”, na qual tudo se explica pondo na conta do “sistema”: um ente fantástico, suficientemente abstrato e genérico para dissolver dentro dele as nossas responsabilidades pelas nossas escolhas e ações.

 

 

A corporação como forma de ascensão social

Os PMs não são uma unidade nacional estruturada, um coletivo armado e autônomo acima de suas organizações policiais estaduais, as quais possuem histórias institucionais, culturas organizacionais e desenhos profissionais distintos. As polícias militares são compostas de indivíduos que vieram dos estratos populares, subalternos, e que encontraram nesta função pública uma forma de mobilidade e ascensão sociais com baixa exigência de ingresso.

Os supostos mimimi do oficialato das Forças Armadas com militares da cúpula do governo não têm a menor relevância para a vida intra e extramuro dos PMs, servindo apenas como ingrediente para piadas viris que informam disputas debochadas entre masculinidades e musculosidades, bem típicas do universo policial. Algo do tipo, se o “EB [Exército Brasileiro] enfrentar a PM, ganha a PM” ou “o EB é que é a força auxiliar da PM”, ou ainda, “quem sabe fazer guerra é o PM”. Estas trocas de farpas jocosas ficaram ainda mais evidentes com o emprego regular das Forças Armadas nas GLO [Garantias da Lei e da Ordem]. A uberização do EB fazendo bico no policiamento público e estatal tem sido um recurso comum de todos os presidentes desde FHC para cá.

Enfim, os PMs, provenientes das periferias sociais, são pragmáticos e não têm tempo a perder com o que não afeta de maneira utilitária as suas vidas dentro e fora do serviço. Eles não têm nada a ganhar com esta suposta briga e com ela pouco se importam, uma vez que esta não muda absolutamente nada em suas rotinas funcionais subordinadas à máquina estadual. Não agrega valor simbólico e nem pecuniário, sequer dá ingresso de graça para um show de pagode ou um bônus nas Casas Bahia.

 

Militares, mas de mundos distintos

Ressalte-se que as relações entre militares combatentes e policiais militares, de alto a baixo na cadeia de comando e controle, tendem a ser amistosas com cada um puxando a sardinha para o seu anzol. Eles, ainda que militares, se veem como mundos radicalmente distintos, pouco convergentes e nem sempre conciliatórios.

Dizem que batem cabeça uns com outros porque suas doutrinas são divergentes, e devem mesmo seguir sendo, afinal força comedida (polícia) não é força combatente: uns se definem como “tático-operacional” e outros como “operacional-tático”. Em outras palavras, as Forças Militares são formas de espera que expressam níveis de prontidão, e as PMs são formas de ação que se expressam em níveis de pronto-emprego. Uma e outra guardam fins políticos, meios logísticos e modos táticos distintos, em razão na natureza de seu trabalho.

 

 

IHU On-Line – Podemos considerar que a adesão de policiais militares ao governo de Bolsonaro é maior e mais coesa do que entre os integrantes das Forças Armadas? Como interpretar essas duas formas de adesão?

Jacqueline Muniz – Bolsonaro ganhou a eleição com votos em todos os segmentos sociais, especialmente as camadas populares e médias que fazem a diferença quantitativa nas urnas. Os votos de policiais, parentes e afins, que correspondem a uma parcela modesta do mundo popular e periférico, em uma estimativa generosa, não ultrapassam 3 milhões. Os votos do meio militar, também estimados com gordura, não passam de 2 milhões.

Assim, todos os votos dos PMs e dos militares combatentes, sozinhos, não fazem um candidato subir a rampa do Planalto ou vencer outras eleições majoritárias para governador e prefeito. Precisa de mais gente, de mais categorias de eleitores, de uma pauta comum que mobilize mais pessoas. Os votos dos agentes da lei têm um peso importante e decisivo nas eleições para vereador, deputado, senador, como, aliás, têm também outras categorias, como os metalúrgicos, comerciários, professores etc.

Abrindo um parêntese. Até as pedras sabem que os servidores públicos da segurança, saúde e educação conformam os maiores contingentes de funcionários públicos e que, por isso, têm uma atenção diferenciada de algum político em busca de votos. Os conservadores e reacionários de plantão buscam fidelizar os votos da turma da lei e da ordem, quase sempre fazendo uso de muita bravata, de performances barulhentas com peito de pombo estufado e caras feias para “mostrar (que tem) autoridade” e divulgando propostas “engana bobo”, que começa e termina na frase de efeito “a gente vê o seu lado”, que não ficam, de fato, de pé, mas que funcionam como um canto ilusionista do boto policial e encantamentos da sereia policialesca.

Bolsonaro elegeu-se vereador e deputado com o diferencial de votos de policiais e de militares de baixa patente, um legado eleitoral estendido à sua família. Não há nada de mais nisso. Os políticos têm e/ou constroem sua base de sustentação. Os policiais militares, especialmente, são o seu público-alvo, pois é com este universo que o presidente busca estabelecer algum vínculo identitário, algum reconhecimento. É a fantasia de pertencer ao mundo de militares (policiais) mais próxima do real que Bolsonaro já chegou, uma vez que foi expulso do mundo militar.

 

Bolsonaro ‘meio militar’

Bolsonaro não se tornou um oficial militar em seus modos de ser e estar. Não foi devidamente socializado neste meio, desde a escola até sua graduação. Ficou muito pouco tempo para poder construir uma identidade sólida expressa nas formas de pensar e agir que internalizam os princípios e valores militares. Alcançou apenas a primeira patente – tenente – da hierarquia militar por mérito.

Bolsonaro dificilmente passaria num Enem sobre assuntos militares profissionais. E, menos ainda, nos assuntos policiais e de segurança pública, sobre os quais discursa pelo medo e seu aparelhamento que fabricam inseguranças para sustentarem o seu projeto autoritário de poder e que servem de alimento para a economia política itinerante e em rede do crime. Do mundo militar profissional, ele reproduz apenas as caricaturas gestuais e faladas criadas pelos paisanos sobre o mundo da caserna, uma pantomima que qualquer sujeito ao estilo Rolando Lero faria depois de passar no mercado livre e comprar umas fardas e apetrechos militares.

Ou seja, sua performance midiática como militar é a de um ventríloquo-clichê, de um meme ambulante, que não é, necessariamente, do agrado de todo universo militar profissional. Mas causa simpatia e sentido de proximidade no mundo periférico dos praças da PM e das Forças Armadas que, como Bolsonaro, não desfrutam de uma lealdade ferina à moral e ética militares, mas aos benefícios e privilégios que a carreira, mesmo sendo subalterna, pode oferecer para jovens pobres e não brancos.

 

 

Os praças e seu universo popular de escassez

Os praças da PM vieram de baixo, não vivem o mundo intramuros dos gabinetes das casernas, não possuem o ethos dos oficiais e estão em conflito com este mundo. Dizem que “a motivação para trabalhar é a punição”, “oficial serve só para canetar praça”, “é casado com a PM, mas dorme em camas separadas” ou que “na PM nada se cria, tudo se copia”. Os praças vivem no universo popular da escassez de bens culturais, sociais e econômicos, um mundo de sujeitos pragmáticos, imediatistas que fazem conta de como superar a mobilidade social reversa e se dar bem com sua carteira de polícia. Vivem a precariedade e vulnerabilidade sociais como os demais periféricos, mas com uma arma e uma carteira de polícia na mão.

Os praças se veem como os “filhos feios” do estado com quem ninguém quer sair junto na foto. Não se veem como trabalhadores e sim como policiais, uma raça à parte, como missionários abandonados pela sociedade que acreditam proteger. Como agentes da lei e da ordem, são reprodutores e defensores do status quo, seja este excludente para poucos ou inclusivo para todos. Fazem parte do mundo dos despossuídos, revoltados com a sociedade que “cobra tudo” e com o Estado que pede muito e “não dá nada”.

 

Adesão ao bolsonarismo é pedido de socorro

O discurso bolsonarista do revoltado despossado, injustiçado pelo sistema que defende, serve a este público de “maiores de rua”, “carentes sociais” de reconhecimento e aceitação. O discurso libertário de chutar o pau da barraca, que fala mal do Estado, de seu próprio governo e que se vê liberado das regras sociais para tirar o que puder numa competição vale-tudo no mercado, encontra eco no mundo de precarizados, sobretudo no mundo de quem tem contracheque e arma na mão.

Quem não acumula sobrenome certo, origem socioespacial adequada, cor correta, vive no mundo provisório das posses, anda uma casa para frente e duas para trás na mobilidade social reversa e é feito arrimo de família, está suscetível aos chamamentos da política de auditório, que promete soluções instantâneas no agora-já, imediatistas, desprovidas de medições e, por isto, violadoras e violentas.

Bolsonaro nada realizou para os PMs, mas ofereceu um lugar de autoestima, ainda que ilusório, no embuste da falsa guerra contra o crime – os guerreiros da ordem, os passadores de régua normativa. Assim, a adesão ao discurso de Bolsonaro é, antes, um pedido de socorro (“alguém vai olhar para a gente”) que se faz acompanhar de um cálculo presentista – “tá na nossa vez”. Não se tem uma lealdade substantiva, e sim uma proximidade moral, apoiada por interesses de curto prazo. O amor dura até a página 5 se não se observar a liberalidade no uso da carteira policial, para os policiais corruptos e violentos, e melhorias nos privilégios, nos benefícios, no bolso para a maioria policial.

 

 

IHU On-Line – Análises têm posto que seria mais fácil Jair Bolsonaro articular um golpe muito mais desde as PMs do que a partir das Forças Armadas. De que forma a senhora apreende essa inferência?

Jacqueline Muniz – Vejo tal inferência como pajelança de golpe, um recheio inconsistente com papel de bala pseudoanalítico brilhoso. Em uma frase, trata-se de um pensar cloroquinado, emancipado de evidências que possam embasar tais conjecturas. Trata-se de tautologias produzidas pela própria narrativa do medo e da insegurança que se ambiciona desvendar e combater. Acendedores de vela de golpe, tomam o medo como conselheiro e deixam de olhar a realidade tal como ela é, a conjuntura, viajando na maionese de seus próprios temores. Pode até parecer mais sagaz, certeiro e inteligente ser “ave de mau agouro”, portador antecipado de más notícias. Mas tal raciocínio não passa de um pensar religioso, tão mistificado quanto o de quem olha o mundo com óculos cor-de-rosa.

Se tivéssemos passado a limpo a ditadura militar e seus efeitos, tirando os esqueletos do armário e confrontando nossos fantasmas, já teríamos superado esta forma traumatizada de autoengano com revestimento explicativo. Quem só enxerga martelos acha que a realidade pode ser reduzida a pregos.

Dá muito trabalho dar um golpe. Requer articulação política, planejamento qualificado, recursos mobilizados, capacidade de execução, mecanismos internos e externos de sustentação. Não se dá golpe sozinho, nem mesmo um autogolpe. Há que ter um time jogando junto com uma torcida do seu lado. A impressão que dá é que Bolsonaro, sem ter o que fazer, acorda com vontade de dar golpe e vai ali na esquina e dá um golpe como quem toma um pingado com pão e manteiga. As Forças Armadas acordam, também à toa, e decidem dar um golpe para romper com o marasmo, pondo sua doutrina para funcionar. Golpe custa caro para todo mundo e o resultado desejado por golpistas não é garantido. Vejam os golpes anteriores aqui no Brasil, a bateção de cabeça para dividir seus legados e distribuir suas notas promissórias.

 

 

Ignorância sobre a polícia

Por trás da ideia de um golpe de Bolsonaro com os PMs tem a ignorância ilustrada sobre as organizações de força comedida (polícia) e seu funcionamento. E, ainda, o achismo de ocasião que se faz acompanhar de doses elevadas de preconceito naturalizado contra os policiais. Tudo se passa como se houvesse uma horda de 435 mil zumbis do patrulhamento, avulsos e prontos para sair do Oiapoque ao Chuí, em direção ao Grande Pai e Messias ressuscitador de mortos-vivos com seu grito encantador: “e daí!”.

Tudo se passa como se existisse uma grande milícia de teleguiados armados, com suas cabeças quentes, corações aflitos e dedos nervosos em prontidão para servir à santíssima trindade bolsonariana composta pelo senhor da guerra, o mercador da proteção e o profeta do caos. Tudo se passa como se estivéssemos diante da reedição burlesca da Coluna Prestes ou de uma fotocópia piorada dos Integralistas: a “Cruzada dos PMs” que sairia pela BR-101 afora, golpeando a sociedade e os poderes republicanos, num mundo livre de internet com suas guerrilhas virtuais, lacradores, canceladores, youtubers, blogueiros, hackers dispostos a enxovalhar com figurinhas, vídeos e vazamentos a moral do exército de Bolsoleone.

Esta fantasia de filmes B policiais e de guerra, das telas quentes televisivas, esquece de detalhes básicos. PM é uma função pública estadual. Governantes passam e os servidores públicos policiais permanecem. E quem veio de baixo não está disposto a se aventurar em chiliques políticos para ser exonerado a bem do serviço público e perder o seu ganha-pão e as vantagens estatutárias da carteira de polícia. Não parece razoável supor que governadores, comandantes em chefe das PMs, acordem com vontade de abrir mão de poder, de sua carreira política e jogar na lata do lixo a sua governabilidade.

 

Armas X caneta

Armas apontadas para o palácio fazem estrago, mas podem pouca coisa diante de uma caneta firme cheia de tinta da legalidade e da legitimidade. Todo policial sabe disso e prefere não esgarçar a corda e testar este poder, ao limite. Governadores detêm um conjunto de ferramentas administrativas para desestimular, além da negociação, taras golpistas. As provisões legais da constituição estadual, o estatuto do servidor policial militar, as prerrogativas da justiça militar e da justiça civil, o Regulamento Disciplinar das PMs são alguns expedientes, ao alcance da mão do governante, que permitem exclusão sumária diante da quebra da hierarquia e disciplina militares com a suspensão dos serviços essenciais como a segurança pública e, mais grave, a paralisação do policiamento sanitário em plena pandemia.

 

 

Mas e o crime?

Por que os PMs decidiriam ficar desempregados se não há garantias de que receberão algum pró-labore, alguma rachadinha ou algum espólio para sua família das subcelebrities do golpe? Por que razão policiais corruptos abririam mão de suas sociedades lucrativas com o crime para se engajarem num golpe que vai gastar o seu dinheiro e atrapalhar os seus negócios? Até o crime para funcionar e arrecadar precisa de rotina, de previsibilidade, e não de praças de guerra contra a cidadania, que tem também uma parcela consumidora de mercadorias ilegais. A pandemia trouxe prejuízos para as milícias e o tráfico. Estes precisam honrar sua folha de pagamento, pagar fornecedores e, ainda, seguir operacionalizando as carreiras eleitorais.

Por que razão com arrecadação curta irão patrocinar um golpe com baixa chance de sucesso, que tem em suas fileiras integrantes fominhas e gastadores que quebram, com facilidade, a palavra empenhada? Por que razão vai se comprometer o CNPJ da economia política do crime que alimenta o caixa 2 de campanha dos golpistas de araque, arautos da moral e dos bons costumes? Por que razão os PMs vão se submeter ao vexame de serem enxovalhados em cadeia nacional pelas redes sociais, abalando suas forças morais ou capacidade de lutar num golpe? Nem mesmo em filme B ou em joguinhos de guerra infantis se tem um roteiro de ação tão ruim.

 

IHU On-Line – Quais os riscos de uma articulação de apoiares do presidente com os PMs para reações a governadores e prefeitos, no que diz respeito a medidas tomadas para controle da pandemia?

Jacqueline Muniz – Políticos apoiadores de sublevação policial são como aqueles cachorrinhos chihuahua que são barulhentos, mas de pouco rendimento diante de uma matilha de rottweilers que conforma a governadoria. Não dá nem para o começo. Por isso, fizeram uns alaridos e logo apagaram seus ruídos nas redes sociais. Os apoiadores anabolizados e ruidosos de asas abertas, que se acham uns “armários”, pensam que ocupam muito espaço por m2 nas ruas, mas sequer enchem uma linha de frente do enfrentamento. É muito berro, baixa coesão e nenhuma unidade de ação. Tem-se umas dancinhas de siri para o lado, uns ciscos de galinhola para lá e para cá, que não caminham à frente para enfrentar os galos do terreiro do governador.

Os circos de negacionistas, antivacina, antimáscara e suas musas políticas são como remédio vencido, já surgem com prazo de validade expirada. Seu efeito é criminoso, mas limitado no tempo e no espaço. Eles também pegam Covid, eles também perdem emprego, eles também empobrecem. Sua responsabilidade criminosa de disseminação de uma pandemia alcança tragicamente sua rede de parentes, conhecidos, colegas e afins, mas não tem força para sabotar uma política séria de controle epidêmico que conta com dispositivos de persuasão, contenção e sanção. Exceto se for de interesse do próprio governador agir como uma gilete que corta para os dois lados, propondo medidas restritivas “seguindo a ciência” e, ao mesmo tempo, deixando rolar solto para atender às pressões de grupos econômicos e outros acertos de gabinete. Bem, neste caso a fatura chega rápido demais: já ultrapassamos 400 mil mortos.

Ressalte-se que é parte das missões policiais o policiamento sanitário e a sustentação de medidas administrativas das autoridades de saúde pública em âmbito regional. Fazer vista grossa ou mesmo aderir ao “liberou geral” e ao “escracho libertário” em plena pandemia, como já disse, consiste em violação grave com direito a expulsão sumária. Qual manobra lambona, como esta, que põe em risco a família do próprio policial militar, resiste a um filminho de smartphone instantaneamente postado nas redes e viralizado? Toda ação de agentes estatais no espaço público é, antes, um reality show com direito a vazamentos, viralizações, denúncias, ocultações e cancelamento.

 

 

IHU On-Line – Como podemos compreender a relação da família Bolsonaro com as polícias militares, especialmente a partir do Rio de Janeiro?

Jacqueline Muniz – A família Bolsonaro não desenvolve relações substantivas com instituições, sejam elas as policiais ou as Forças Armadas, e nem tem apreço por elas. As instituições têm pouca valia para este grupo já que atrapalham os seus negócios políticos. Em verdade, eles querem e necessitam de instituições fracas e débeis para melhor aparelharem ideologicamente os seus integrantes. Quanto mais os policiais se veem desamparados institucionalmente, avulsos, solitários e sem perspectivas funcionais, mais facilmente se tornam “bobos úteis”, mercadorias políticas, indigentes clientelizados e devedores de favores que vão do bico ilegal, passando pelo ganho extra nos negócios milicianos até a rachadinha em gabinetes do legislativo e do executivo.

Esse grupo odeia a polícia como instituição. Quem gosta de polícia é defensor dos direitos humanos, são os progressistas que, no Brasil e nas democracias ocidentais, têm sido os responsáveis pelas reformas das polícias e profissionalização dos policiais. Polícias fortes são organizações blindadas da manipulação político-partidária, da apropriação privatista por grupos de poder e da particularização do poder de polícia por seus procuradores. Tudo que não se vê por aqui!

É esta blindagem, sempre atualizada pelas políticas públicas de segurança democráticas, que impede a constituição de governos autônomos policiais ou a milicialização do poder de polícia, o principal poder que uma sociedade livre e plural delega ao Estado para administrá-lo em seu nome. Veja que, aqui, o que importa é ter um poder de polícia como um cheque em branco, uma procuração em aberto para serem preenchidos conforme a convivência com os senhores da guerra que fabricam a insegurança para ofertar a proteção, a conveniência dos mercadores da proteção que transformam em mercadorias ilegais os bens essenciais (água, luz, transporte, internet, moradia etc.) nos espaços populares, a conivência dos profetas do caos que pregam o medo e disseminam ameaças e, por fim, a autorização dos que detêm algum mandato público e o lastro de seus grupos político-econômicos de apoio.

 

A família e os praças

Assim, a família Bolsonaro conta com uma proximidade intencionalmente construída com policiais militares da base da pirâmide, os praças, com os quais se pode, mais facilmente, estabelecer uma lógica contratual uberizada de prestação de serviços recíprocos nos negócios da proteção. Os praças são uma mão de obra mais barata, mais acessível. São a turma de baixo que faz o policiamento ostensivo e, por isso, detém tanto um saber de rua valioso quanto um saber das engrenagens dos órgãos das administrações municipal e estadual com os quais lida diariamente e que são indispensáveis para os negócios milicianos da proteção.

 

 

IHU On-Line – Essa ligação dos Bolsonaros com os PMs poderia explicar as acusações de suas relações com as milícias?

Jacqueline Muniz – Os militares e agentes da lei foram o curral eleitoral natural de Bolsonaro como vereador e assim seguiu como base de apoio clientelizada no Estado do Rio. Um certo segmento dos PMs, que desenvolvem nas ruas uma moralidade elástica e uma ética totalflex ao se colocarem como a linha divisória entre as ilegalidades, torna-se particularmente útil. Isso porque conhecem e transitam pelas fronteiras entre o legal e o ilegal, entre o formal e o informal etc.

Também são eles que, a partir de seu trabalho de policiamento, montam uma rede local e descentralizada de contatos com comerciantes, síndicos etc. para venderem, no varejo, segurança privada, desembaraçar ocorrências e multas de trânsito, agilizar documentações etc. Muitos destes agentes já pagavam outros colegas para trocarem ou tirarem plantão no lugar deles, uma prática conhecida como sargenteação, uma irmã siamesa das rachadinhas de DAS no executivo e no parlamento.

Observa-se uma visão comum e oportunista entre este tipo de PM, com um pé em cada mundo, e os políticos-ralé de que este mercado de cargos públicos comissionados, com suas taxas de adesão e permanência, de verbas de gabinete etc., não é, propriamente, uma transação criminosa e corrupta, e sim, no máximo, “não legal”. Serve, portanto, como uma fonte vista como legítima de captação e manobras pessoais de recursos públicos.

 

O casamento entre políticos e milícias

Se as diversas e pequenas milícias locais, compostas de policiais, se apoiam em políticos para poderem existir, os políticos também precisam das milícias para multiplicarem capitais econômicos e político-eleitorais. Assim, é bastante plausível as taxas sobre os salários de gabinetes, por exemplo, circularem para pequenos empreendimentos imobiliários milicianos, vendas de carros e tudo mais que se use negociar em dinheiro vivo e retornar sob a forma de empréstimos.

O sucesso destas conexões está na sua visibilidade e acessibilidade. É tão conhecido e público que parece legal. São funcionários públicos e ocupantes de cargos comissionados, com endereço e empregos fixos, que movimentam dinheiros que caem em suas contas depositados pelo Estado. Neste tipo de moralidade, isto se chama esperteza e empreendedorismo com a grana do seu próprio mandato e que não envolve pegar de empresas e de empresário, o que seria chamado de corrupção. Os gabinetes de rachadinhas e de outras formas de coleta e redistribuição, parecem funcionar como uma espécie de pequeno BNDES-do-crime, um banco político e pessoal que oferta linhas de crédito e investe em pequenos e médios empreendedores do crime nos bairros populares, possibilitando seu enraizamento, diversificação de negócios e expansão territorial.

Cabe lembrar que os Bolsonaros não faziam parte das altas rodas da elite fluminense e sempre foram vistos como parte do baixo clero da política, objeto de deboche, ausente de classe e estilo para frequentar as salas e antessalas do poder e figurinha fácil de programas televisivos considerados de nível duvidoso. Isto fica evidente até na escolha do endereço residencial no condomínio na Barra da Tijuca, mais adequado a novos ricos e emergentes. O condomínio com alguns moradores integrantes de redes criminosas seria uma versão chanchada das novelas de Manoel Carlos, com a elite de estirpe morando no Leblon.

 

 

IHU On-Line – O presidente mudou o ministro da Justiça e Segurança Pública e, assim que tomou posse, Anderson Torres mudou o comando das Polícias Federal e Rodoviária Federal. Como a senhora lê todas essas mudanças?

Jacqueline Muniz – Mantiveram-se as panelas, mudando apenas as pás que mexem as panelas, para atender as distintas PFs que existem dentro da PF. Isto tem sido feito por meio do rodízio entre os grupos de influência existentes ou as diversas divisões internas dentro da PF.

Diante da ausência intencional de governabilidade sobre a Polícia Federal, o que se tem feito é tão somente “fazer a fila do tá na minha vez de andar”, de modo a seguir acomodando as disputas internas e atendendo aos interesses divergentes para angariar alguma adesão, sabida como pontual e provisória, a algumas pautas do governo. Quem manda na PF é ela mesma, que não oferece lealdade alguma a nenhum governo – à direita, à esquerda, ao centro e ao lado.

Com isso, não se está dizendo que esta seria uma organização apartidária como se deseja, mas ao contrário, ela se mostra hiperpolitizada e partidarizada, sendo internamente confederada, composta de distintas e divergentes frentes policiais. Sua organização territorial, uma polícia sem rua e sem circunscrição, e sua cadeia de comando e controle excessivamente horizontalizada, favorecem ao encastelamento, a criação de rotinas indevassáveis ao escrutínio republicano e a baixa accountability, fazendo de cada superintendência regional um país autônomo, Vaticanos dentro de Roma que só prestam contas a si mesmos como estados emancipados.

A fidelidade da PF é a ela mesma e à sua agenda política de interesses. Por isso, a lealdade às políticas nacionais de segurança pública e de justiça criminal, conservadoras, liberais ou progressistas, são pontuais para manter o poder de pressão e de negociação sempre em aberto.

 

Indicações de dentro para fora

Assim, a dança de cadeiras e os nomes indicados para os assentos são negociados de dentro para fora para atender algum grupo de afinidade ou proximidade governamental. Ainda que a presidência tenha a prerrogativa legal de escolher o chefe da PF para fazer a sua política eleita nas urnas, não é assim que funciona na prática. Quem propõe os nomes da cúpula da PF à presidência é o bastidor da PF.

Sem dispositivos profissionais de controle policial, indispensáveis em democracias, políticos eleitos para governar terceirizam seus governos para grupos de policiais e pedem por favor e no jeitinho. Estes deveriam explicitar os critérios técnico-políticos de suas escolhas e a política pública proposta para as polícias federais, com suas diretrizes, prioridades, objetivos, orçamento, resultados previstos, critérios de avaliação etc.

Aqui se fazem agrados corporativos à categoria profissional ao invés de políticas públicas republicanas para as polícias. Como se pudesse improvisar com espadas que cortam a língua do verbo da polícia e rasgam a letra da lei. Não se cria onça pintada no quintal e chama de gatinho. E este governo, que explicita suas incapacidades e incompetências na sua gestão de ambição conservadora e neoliberal da máquina estatal, age assim. Acreditando que fala o policialês e que, por isso, não terá o braço comido pela oncinha policial quando for jogar uns snacks de militantes e políticos de oposição.

Qualquer um que foi gestor ou pesquisa a nossa máquina estatal aprende uma coisa preciosa: quem não foi convidado para o banquete dos DAS está coletando dados para, conforme as conveniências, abrir uma sindicância, um processo, subsidiar uma CPI.

 

 

A jovem PF

A PF é a nossa polícia plena mais jovem. Como nos ensina a história do FBI, polícias federais estão longe das esquinas e dos olhos diários dos cidadãos. As Polícias Federais, com sua cobertura nacional, são escritórios móveis de investigação distantes do controle social, sendo propensas a se tornarem autarquias sem tutela, tomadas por dentro por grupos de influência, que convertem o poder de polícia da sociedade, administrado pelo Estado, em poder da polícia e do policial, o que produz instabilidade no exercício legal e legítimo do poder.

A tal da ingerência é sempre o berreiro para a sociedade dos insatisfeitos que, no momento, estão de fora do jogo e não mexem a pá de alguma panela dentro da PF. Em verdade, como tenho insistido, nestes 25 anos de pesquisa sobre as polícias, nossas polícias sofrem de excesso de autonomia e de ingovernabilidade, que se expressam em institucionalidades débeis. Tem-se grupos de policiais empoderados em polícias fracas.

É preciso esclarecer que de Sarney (1985-1990) até hoje, nestes 36 anos de retorno à democracia à moda brasileira, hierárquica e desigual, nós tivemos 31 ministros da justiça e 17 superintendentes da PF, evidenciando que cargo estável é de chefe da PF, explicitando que mexer errado com a PF derruba ministro e mesmo presidente.

 

Os governos e as relações com a PF

FHC, que não é bobo, não querendo governar a PF e nem ser chantageado, não deixou ninguém esquentar cadeira, indo para o caminho clientelista mais fácil: a dança das cadeiras. Em oito anos de mandato teve 10 ministros da Justiça e seis chefes da PF. Collor manteve seu chefe da PF por sete anos e levou um impeachment. Dilma manteve o mesmo chefe por quase sete anos, também foi derrubada. A inamovibilidade não agradou a dança das panelas que cruzaram seus braços. Bolsonaro, em dois anos, já soma três ministros da Justiça e quatro chefes da PF. De bobo também não tem nada.

Durante um bom tempo os ministros da Justiça fizeram as vezes de articuladores do governo, além de tocarem suas pastas sem políticas substantivas de segurança e justiça. A ideia óbvia de ministros executando programas de segurança e justiça começou com Lula e terminou com o primeiro governo Dilma. FHC com seus 10 ministros optaram por implementar ações e programas federais de segurança e justiça, mas não uma política nacional, uma vez que deixaram o problema no colo dos Estados com algum dinheiro do Fundo Nacional de Segurança.

 

 

E agora...

Já os ocupantes do atual ministério de segurança e justiça, pouco mostraram o seu trabalho como ministros. Passaram seu tempo ora fazendo sua autopromoção política como o juiz lavajatista, ora agindo como escritório nacional de advocacia do presidente, ora como delegacia nacional de segurança pública. Nenhum ministro, até agora, apresentou a política nacional de segurança pública e justiça criminal para o país e, menos ainda, um plano federativo emergencial para a segurança pública, a justiça criminal e o sistema prisional voltado para a pandemia em diálogo com o Ministério da Saúde, os estados e municípios. Não se tem um plano escrito, público e publicado que se possa acompanhar e que se possa comparar com outros planos liberais, conservadores e progressistas já implementados no Brasil.

Conversa de WhatsApp com a presidência, postagens malcriadas no Twitter, Power Point sem texto, com fotos e símbolos pátrios, listagens de Excel com nomes monitorados retirados das redes sociais, não formam ações e nem produzem governo. Mas, ainda é o que se tem para hoje. Então, cabe aguardar para ver o que muda nesta atual gestão.

 

IHU On-Line – Vivemos o regime de policiamento de exceção? Em que consiste esse conceito e como impacta as lógicas de segurança pública no Brasil?

Jacqueline Muniz – O policiamento de exceção tem substituído as práticas de patrulhamento ordinárias sob consentimento social, amparadas na previsibilidade, na regularidade, na transparência, na suficiência de força potencial e concreta, na oportunidade e propriedade de seu emprego, que emprestam superioridade de método à polícia e que produzem, a baixo custo, o desejado controle itinerante sobre territórios e populações, com legalidade e legitimidade.

O policiamento de exceção consiste em um modo tático de atuação que faz uso de poder de polícia ampliado e desregrado, empregando meios logísticos com elevado potencial repressivo e superior às limitações da doutrina policial profissional do uso potencial e concreto de força, que serve a fins políticos emancipados da autorização social e das regras do jogo do estado democrático de direito. Corresponde à normalização de práticas policiais excepcionais pontuais, com sobregasto de recursos repressivos que não produzem controle sobre território e população, mas têm um elevado impacto publicitário na constituição de um regime do medo que valida e legitima práticas continuadas de exceção. Substitui a regularidade das decisões e ações policiais pela imprevisibilidade, ampliação da incerteza, do perigo e do risco como modo de governo de exceção.

Corresponde, ainda, ao policiamento de espetáculo de uma polícia ostentação que deixa de ser a polícia cotidiana que chega antes que algo aconteça, que se faz presente quando algo está acontecendo para se tornar apenas a polícia que só chega depois que tudo aconteceu, e para atuar como polícia de operações que atende mais a economia política do crime e a polícia dos bens (milícia) do que as missões democráticas e republicanas da polícia do bem.

O policiamento de exceção não está a serviço do estado de direito, da cidadania, dos policiais e da polícia. Serve a qualquer senhor que instaure a suspeição ampliada, a desconfiança recíproca, as incertezas irrestritas como tecnologias de governo. É uma das ferramentas de instrumentalização do matar ou deixar morrer cidadãs e cidadãos policiais, ambos vindos das periferias e da subalternidade.

 

Palanques sobre cadáveres

As mortes de matáveis servem aos palanques eleitorais e às subidas nos caixotes na esquina para demandar mais poder, prometer ser mais enérgico para manter a lei e a ordem sabotadas pela própria guerra criada por estes dispositivos de exceção. Sua aparente neutralidade técnica esconde a ação seletiva e discricionária que operacionaliza as razões de classe, gênero, cor, orientação sexual, adesão religiosa, origem e endereço sociais.

Os policiamentos de exceção fazem da letalidade e vitimização policiais bandeiras positivas de uma moralidade que sintetizo na seguinte expressão: matar tem mérito, morrer tem merecimento. Assim, o policiamento de exceção, banalizando as mortes como algo preventivo, produz policiais mortos-vivos de patrulhamento com prazo de validade e subalternas sementes do mal cortadas pela raiz para servirem de exemplo.

 

Estratégia do ‘tiro, porrada e bomba’

O policiamento de exceção é o dispositivo publicitário do “tiro, porrada e bomba” que promove e justifica a necessidade de uma suposta guerra contra o crime que chancela a ampliação desmedida do poder de polícia e naturaliza seu emprego desmesurado que, no Brasil, é um pode tudo contra a cidadania. Policiamentos de exceção são a expressão da constituição de governos policiais que derivam desta autonomização predatória do poder de polícia. Para tanto, é preciso fabricar crises continuadas de insegurança, aparelhando o medo e agravando o temor das pessoas, com muita teatralidade operacional da trocação de tiros, correrias e barulhos para dar vida à política autoritária dos 3 S.

Primeiro, produz-se SUSTOS na população, promovendo tragédias anunciadas diárias. Segundo, entra em cena o teatro dos SURTOS mandonistas de autoridades que encenam que fazem e acontecem para obterem mais poder. Terceiro, assiste-se aos SOLUÇOS operacionais com a espetacularização de sucessivas operações policiais, pontuais e de efeito anticriminal limitado, mas de elevada visibilidade social. Estas contribuem para a crença de que se vive numa situação fora de controle, excepcional, que segue exigindo ações de exceção como a guerra contra o crime.

Com os policiamentos de exceção, operacionaliza-se a insegurança como um projeto de poder. Eles possibilitam a substituição gradual da segurança pública, de todos, pelo circuito perverso da proteção para alguns que pagam por ela. E, desta forma, permite a consolidação de um regime do medo rentável politicamente.

 

Circuito perverso de proteção

E como funciona o circuito perverso da proteção? Primeiro é preciso criar e intensificar crises, fabricando ameaças constantes e diversificadas que levem ao medo de sobrar e de morrer.

As ameaças continuadas levam a acordos precários, a alianças provisórias e contratos instáveis entre nós, que não ultrapassam o imediato de nossos medos, abrindo espaços para a lógica defensiva de distanciamento social, do tipo “cada um no seu quadrado” ou “farinha pouca meu pirão primeiro” corroendo a empatia, a solidariedade e a cooperação.

Contratos sociais precários ou as nossas regras do jogo sabotadas pela insegurança abrem caminho para o exercício instável do poder, com comandos imprevisíveis que sabotam nossas rotinas e que vão ampliando as incertezas quanto ao hoje e mais ainda quanto ao amanhã. Isto produz uma sociedade exausta existencialmente e cansada emocionalmente de tanto susto, que acaba caindo no conto autoritário de uma autoridade forte que promete trazer de volta a ordem e a normalidade que ela mesma ataca.

Isto leva a tiranias nas favelas e no asfalto, exercidas por governos ilegais e legais, legítimos e ilegítimos que promovem o uso do terror como estratégia de manutenção de sua economia política criminosa. Busca-se ampliar a imprevisibilidade, por exemplo, com práticas excepcionais de vigilantismo e justiçamento, que possuem elevada visibilidade e criam a sensação de policiamento e justiça feitos no imediato, no aqui-e-agora do medo das pessoas.

 

 

O grande espetáculo político

As práticas de terror se tornam um grande espetáculo político com a promoção de uma guerra política-comercial contra o crime, que justifica, em tempo contínuo, as práticas de exceção, que tornam as vidas e os direitos mercadorias com valores e importância desiguais conforme as credenciais de cor, classe, gênero, orientação sexual, moradia e adesão religiosa. O tempo extraordinário da guerra suspende a vida ordinária, legitimando práticas excepcionais que colocam entre parênteses o Estado de Direito, que vai se tornando o direito do estado na esquina exercido pelo senhor da guerra da ocasião e pelos mercadores da proteção.

Como não há vitória ou derrota possível e demonstrável numa guerra contra o crime, ela serve como uma luta interminável e infinita que exigirá novos e renovados inimigos, que possam ser identificados cada vez mais próximo dos cidadãos amedrontados. A simulação de uma guerra sem fim com finalidade moral é o principal teatro de operações, é a dimensão mais visível e ampliada da produção de inseguranças.

A guerra é um espetáculo de alta visibilidade que necessita de uma polícia de espetáculo, uma polícia de operações. É preciso fazer muito barulho, ter uma polícia barulhenta que se faz notar e se exibe com sirenes e giroflex ligados. Há que ter a zoeira alta e a chapa quente do chamado “tiro, porrada e bomba”, para o espetáculo ficar o mais próximo de filmes de ação.

 

Repressão e insegurança

É importante frisar que a dimensão mais visível do trabalho policial aos olhos comuns é a repressão, pois ela corresponde à ação concreta e em tempo real da polícia. A maximização da repressão como um fim em si mesmo serve aos propósitos do agravamento da insegurança coletiva. Quanto mais “trocação” de tiros, mais confronto armado, mais intervenção provocativa, melhor para esquentar a chapa. Manter a chapa quente da insegurança repercute e amplia os medos individuais e coletivos que tiram dos nossos armários os preconceitos e as discriminações antes ocultadas ou adormecidas lá no fundo de nós mesmos.

Os preconceitos e discriminações ativados pelo medo agravado estimulam o clamor social contra a falta de segurança. A legítima demanda por ordem pública vai se pervertendo em demandas autoritárias por ordem que tragam, no imediato, a normalidade perdida de volta, uma normalidade cada vez mais excludente e restritiva que encolhe ainda mais os cercadinhos defensivos.

Tem-se, com isso, a adesão ao populismo penal e suas fórmulas instantâneas de invenção de justiça substantiva imediata. Somos levados a acreditar que governar é proteger, é ser protegido pelo fortão destemido que, para manter seu poder, seguirá produzindo ameaças sobre quem paga para ser protegido. E assim segue o circuito da proteção!

 

IHU On-Line – Como compreender as relações entre o tráfico de drogas e as polícias militares atualmente?

Jacqueline Muniz – São várias as relações possíveis. A relação de controle profissional do crime feita pela polícia do bem que enxuga gelo, nada e morre na praia por uma guerra que não é sua e que se vê traída pelos de dentro da polícia e do governo. A polícia do bem costuma ser vítima do “tiro amigo” dos policiais comerciantes, tidos como “operacionais” e que fabricam saldos operacionais falsos conhecidos como “kit sucesso” e renovam os alvarás das firmas, subindo o preço dos arrendamentos, fazendo as coletas para o político, vendendo armas para o crime etc.

E tem as relações empresariais dos grupos de policiais que deixaram de ser prestadores de serviços para o crime para se tornarem sócios e/ou patrões. Quanto mais à vontade no crime, mais se tem chancela política.

Todas estas personagens têm apadrinhamento político, pois é com dinheiro do crime que se pode fazer campanhas milionárias, montar currais eleitorais e, ainda, ter ficha limpa no TRE. Afinal, não se declara dinheiro e gastos criminosos e nem dá parte de seu roubo em delegacias.

 

 

“Ou se omite ou vai para guerra”

Há um ditado muito usado no meio policial que tenta, sem êxito, separar a violência e a corrupção policiais para fins pessoais da violência, daquela corrupção e do espólio de guerra autorizados pela política, e em nome de uma missão civilizatória do asfalto rumo às favelas insurretas. No Rio, o “PM ou se omite, ou se corrompe ou vai para a guerra”. Fica implícito que as polícias foram deixando de ser polícia, no sentido estrito do termo, à medida que deixam de policiar para fazerem uma suposta guerra que serve a propósitos estranhos à segurança pública e à própria razão de ser policiais.

Também está no subtexto do ditado, ao menos para quem vive no Rio, que os policiamentos ostensivos, desde a decretação da guerra contra o crime pelo governador Moreira Franco em 1987, têm sido gradativamente realizados por firmas legais e ilegais de vigilância, pelos grupos armados como o CV, TCP e ADA e, fundamentalmente, como previsível, pela polícia miliciana dos bens.

É dizer: quem tem realizado o controle territorial são os domínios armados sob a chancela informal de setores do Estado. Segundo o último relatório do GENI - Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos, da UFF, coordenado pelo meu colega e parceiro Prof. Dr. Daniel Hirata, as milícias estão presentes em 41% dos bairros do Rio, com uma cobertura territorial de 58,6% da cidade onde vivem 33,9% da população.

 

Insegurança pública é projeto autoritário

Desde minha participação na CPI das milícias, em 2007, tenho insistido que a insegurança pública é um projeto autoritário de poder que tem dado certo. E que sua publicidade de alto impacto é a falsa guerra contra o crime que cria dificuldades para vender a facilidade da paz da propina e dos alvarás. Tenho mostrado que com a guerra contra o crime, governa-se com o crime e não contra ele. Que o que se veio produzindo no Rio de Janeiro, com raros momentos de ruptura ou paralisação, é uma economia política criminosa itinerante e em rede que tem o Estado como uma grande imobiliária, uma grande agência reguladora do crime que administra as concessões de territórios populares para Governos criminosos autônomos ou domínios armados. São estes domínios armados que produzem soberania sob população e território e, com isso, fazem a regulação dos mercados ilícitos.

O tiro, porrada e bomba dos policiamentos de exceção servem como um poderoso recurso publicitário e operacional que aquece o mercado dos alvarás de funcionamento das firmas criminosas, possibilitam uma redefinição geopolítica dos controles territoriais dos domínios armados. Não há ausência do estado em áreas populares e sim terceirização da prestação de serviços de proteção sob sua regulação. Também não há estado ou poder paralelos, uma vez que o poder é uma relação com vasos comunicantes e os domínios armados para existirem e operarem (sejam eles milicianos, traficantes ou consorciados como o Exército de Israel) necessitam de uma medida de tolerância de setores do executivo, do legislativo e do judiciário, bem como da existência de parcerias ou acordos.

Por isso, tenho dito que a guerra contra o crime é antes uma guerra comercial para a produção de monopólios e quase-monopólios na extorsão de impostos informais e ilegais da população, para garantir a circulação das mercadorias ilegais de grande valor agregado como são os bens e serviços públicos ilegais, administrados pelos grupos armados. A guerra contra o crime é o marketing do terror a serviço do regime do medo e seu projeto autoritário e lucrativo de poder. É fundamental fazer muito barulho, ter muito tiroteio, muitos confrontos armados e balas perdidas/achadas para produzir o efeito barata tonta na população de perto e de longe.

 

 

Perda de controle

O Rio de Janeiro conta com dois aplicativos para monitorar tiroteios: o fogo cruzado e o onde tem tiroteio (OTT).

Tem ainda um monitoramento feito por um jornal de São Gonçalo, região metropolitana, chamado TEM BARRICADA AÍ!

Começamos a perder o controle da segurança pública para os consórcios político-criminosos, há três décadas, quando decretamos a guerra contra o crime. Hoje, sabemos que a guerra não combate os grupos armados. A guerra cria os grupos armados. Na guerra comercial pelo domínio territorial armado perde a polícia do bem e ganham as polícias dos bens, as milícias.

 

IHU On-Line – O que nos levou a esses modos de ser e agir das corporações e como chegamos a degradações que culminam em formas de poder paralelo como as milícias?

Jacqueline Muniz – Como disse logo acima, não existe estado paralelo ou poder paralelo. Estas são imagens midiáticas, mas com baixa capacidade explicativa. Escondem mais do que revelam o que parecem apontar. Escondem as relações de conivência, conveniência e convivências necessárias para se ter uma economia política do crime.

 

 

IHU On-Line – Mas o que tem tornado possível a milicialização dos meios de força policial no Brasil?

Jacqueline Muniz – Tenho insistido que o problema dos meios de força policial é de governabilidade. Eles sofrem de emancipação predatória e se recusam a qualquer expressão de controle civil. Tem-se autonomia demais e controle de menos do poder de polícia que dobra vontades e restringe liberdades. Controlar o poder de polícia, exercer governo civil sobre o mandato de uso potencial e concreto de força é a razão primeira das reformas policiais continuadas nas democracias. Todas elas procuram blindar as polícias dos usos clientelistas e das apropriações privatistas. Isto corresponde a garantir que as polícias possuam independência político-partidária e dos interesses do mercado, sejam subordinadas ao seu mandato estatal e às políticas públicas conduzidas pelo executivo.

Sabemos que as espadas, por sua própria natureza, têm um potencial de autonomização que se faz, em uma certa medida pactuada dentro do Estado e autorizada pela sociedade policiada, necessário para a produção de pronto-emprego policial e prontidão militar. Sem delimitação, controle e constante aprimoramento desta autonomia não se tem como garantir a estabilidade e a previsibilidade no exercício do poder por governos legais e legítimos. Sem governabilidade sobre as polícias tem-se a constituição de autarquias sem tutela que aprisionam governantes em seus gabinetes, chantageiam parlamentares, silenciam oponentes, pautam a justiça e ameaçam a sociedade.

O poder de polícia que está no Código Tributário de 1966 e as competências policiais herdadas da última reforma policial de 1968, são uma procuração em aberto produzida durante o regime militar. E seguem desse jeito por conta dos lobbies das polícias na Constituição de 1988. O artigo 144 é uma reprodução remendada de entulhos do passado e que atenta contra o desenho federativo. Corresponde a uma mudança em que tudo fica no mesmo lugar.

 

Tentativas de reformas

Nas tentativas de reformas policiais no Brasil, imperam o moralismo prescritivo e o gerencialismo voluntarista pautados em premissas fake-science. O mimimi da ingerência política é o discurso-chantagem para ampliação do poder coercitivo para fins particulares. É a cantilena corporativista que tem possibilitado a milicialização, cujo nome adequado é constituição de governos autônomos policiais: um fenômeno comum quando a espada se autonomiza da sociedade, do estado e do governo eleito. Não somos únicos e nem originais nisso. É um fenômeno repetitivo sempre que se tem mandatos policiais abertos, autonomizados.

 

 

IHU On-Line – O que são as milícias dentro dessa sua perspectiva?

Jacqueline Muniz – As milícias são governos autônomos ilegais que operam nos territórios populares, exploram a vida econômica e regulam a vida social dos moradores. Para existirem e exercerem o seu domínio armado, com fins lucrativos, elas precisam contar com a tolerância e a vista grossa dos poderes públicos e as costas quentes de setores políticos.

As milícias saem de dentro do Estado. Elas são compostas, na sua maioria, por agentes da lei. Milicianos não estão escondidos e nem são invisíveis. Ao contrário, eles têm endereço e trabalho fixos no Estado, são conhecidos, circulam entre autoridades, participam de festas VIPs, fazem a segurança de gente importante. Eles são bem relacionados, posam de “cidadão de bem” e são chegados aos poderes políticos para os seus negócios poderem funcionar.

O negócio da milícia é produzir ameaças para vender proteção. É promover a guerra para vender a paz. Como um governo criminoso, ela cobra taxas sobre a oferta de bens e serviços essenciais. Quem mora em locais sob domínio armado miliciano é coagido a pagar o mesmo imposto várias vezes: paga para o Estado, paga para o governo miliciano. Para o seu negócio funcionar tem que aumentar o sentimento de medo e a insegurança da população com tiroteios, falsas operações. Tem que ter apoio político velado.
Sem político, não tem milícia

Milícia não sobrevive sem braço político de apoio, favores, vantagens, privilégios e carteiradas. Por isso, ela é financiadora de campanhas eleitorais. As carreiras políticas servem como um ótimo investimento criminoso. Estas carreiras políticas são uma importante lavanderia do dinheiro extorquido da população pela milícia.

Mesmo com a pandemia, a cobrança de taxas pela milícia não parou. Ela tem obrigado os comerciantes a abrirem as portas, moradores a pagarem as taxas de proteção. Sem arrecadação a milícia enfraquece, perde poder no território e influência política por cair sua contribuição para o caixa 2 de candidaturas políticas.

A milícia é a polícia dos bens que tem acuado e tirado das ruas a polícia do bem, deixando os moradores reféns do estado duas vezes: da polícia miliciana e da polícia de operações que não é capaz de policiar territórios e população. Como tenho insistido aqui, faz tempo que os policiamentos em certas regiões do estado são feitos por grupos criminosos. A segurança pública tem que voltar a ser pública e administrada pelo Estado e não ser mais terceirizada para firmas clandestinas, grupos armados etc.

 

IHU On-Line – O que fazer?

Jacqueline Muniz – Tem-se que sair em busca da governabilidade perdida sobre os meios de força. Ainda dá tempo e pode começar amanhã. Se o problema é político, a solução é política! Para garantir a governabilidade democrática, enfim, a estabilidade, a previsibilidade, a transparência e o controle da sociedade no exercício do poder, é preciso controlar as espadas. Aprendemos, ao longo da história de constituição do Estado e na luta por direitos, muitas lições.

Que as espadas, ou os meios de força combatentes e comedidos, quando autonomizados, cortam a língua do verbo da política, qualquer política, e rasgam a letra da lei. Que quando o seu vigia fica forte demais ele te dá um golpe, senta na sua cadeira e governa em seu lugar. Quando o seu vigia é fraco demais ele se torna leal a quem promete mais. Que não pode ser a espada que define ela mesma a intensidade e profundidade do seu corte. Não pode ser o meio, a arma, que desenha a mão e que define o pensamento. Quando isso acontece tem-se emancipações predatórias do poder coercitivo, do poder de polícia que chantageia governantes, silencia o parlamento, manipula o judiciário e acua a sociedade.

Há, portanto, que delimitar a extensão do poder de polícia e controlar o seu exercício coercitivo com protocolos públicos e transparentes de uso potencial e concreto de força. Há que construir mecanismos de governabilidade sobre as instituições que exercem o poder de polícia. É indispensável blindá-las do uso político partidário e da apropriação mercantil por grupos de poder. Para não se ficar refém da opressão de seus procuradores e da clientelização pelos interesses particulares e corporativistas.

É preciso institucionalizar o Comando Civil dos meios de força combatente e comedida. É preciso quebrar monopólios corporativos no exercício do poder de polícia. É preciso produzir controle político-administrativo do potencial de autonomização dos meios de força. É preciso produzir controle sobre capacidade coercitiva dos meios de força comedida, de modo que seus meios logísticos (armamentos), seus modos táticos (formas de atuação) se subordinem aos fins da política pública, com dispositivos de accountability e responsabilização. Tudo isso está ao alcance das nossas mãos, e não requer mudar a Constituição. Pode começar amanhã a construção política da institucionalidade das organizações de força. As espadas emancipadas podem muito, mas não são mais fortes que a cidadania mobilizada!

 

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