Governo de coturnos. O Exército na política nacional. Entrevista especial com Eduardo Raposo

Desfile Militar em Brasília | Foto: Victor Soares - Agência Brasil

Por: João Vitor Santos | Edição: Ricardo Machado | 15 Fevereiro 2019

A participação das Forças Armadas no governo nacional não é de hoje. Do Império Ultramarino Português à atual vice-presidência da república, da proclamação da república aos governos desenvolvimentistas de Vargas e Dilma Rousseff, os militares sempre tiveram um papel estratégico, seja pela atuação prática (como braço armado dos regimes autoritários ou na garantia de execução de projetos como a construção de Belo Monte e a “neutralização” dos protestos contrários à Copa do Mundo e Olimpíadas), seja pela inspiração política (desenvolvimentismos, milagre econômico, abertura ao capital internacional).

“A transformação econômica que ora ocorre no Brasil está ligada à lógica dos ciclos da economia mundial que alterna políticas desenvolvimentistas e políticas liberais. O aspecto cíclico do capitalismo elege, alternadamente, ou o Estado ou o Mercado como protagonistas do processo de desenvolvimento econômico, deixando para o outro a tarefa de criticar e ‘resolver’ os impasses criados pelo primeiro”, aponta Eduardo Raposo, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

“As crises que ocorreram no contexto de políticas econômicas liberais foram resolvidas com a participação do Estado, como os casos das crises de 1929 e de 2008. As crises econômicas protagonizadas pelo Estado foram ‘resolvidas’ com a interferência do mercado como nos casos da crise do final dos governos militares e a crise do governo Goulart. O ciclo atual aponta para a vez das políticas econômicas liberais diante da crise econômica originada pelo esgotamento de políticas desenvolvimentistas praticadas sobretudo no segundo mandato de Dilma Rousseff e, também, do final de uma década de crescimento econômico mundial puxada pela China”, complementa.

Junto com os militares, advogados, engenheiros e economistas, ocupam o topo da elite política nacional. Entretanto, pensar a participação dos militares no governo Bolsonaro requer uma compreensão mais complexa e para além da caserna. “A presença dos militares no atual governo, requer contextualizá-la no âmbito de alguns fenômenos que estão transformando a vida política, econômica e social em todo o mundo. Apesar das significativas diferenças de cada região do planeta, apresentam, porém, alguns elementos comuns. No Brasil três demandas e três transformações foram vocalizadas e encarnadas pelo atual governo: liberalismo econômico, conservadorismo nos costumes e segurança pública”, explica Raposo.

Em seu primeiro discurso pós-eleições, Bolsonaro afirmou que se inspiraria em Duque de Caxias. Ao longo de toda sua carreira política, Bolsonaro nunca demonstrou ter um perfil pacificador e conciliador, características que marcaram a trajetória de Duque de Caxias, ainda no Império. O contexto nacional, porém, coloca sua declaração à prova. “Surgem, também, como protagonistas da vida política, social e eleitoral no país, grupos conservadores que deverão dividir espaço com os grupos identitários e só a democracia poderá conjugá-los”, frisa o entrevistado. “Nenhuma teoria solitária dá conta de uma arqueologia tão ampla de conflitos, o que exige reflexões sociológicas plurais. Entender o Brasil em sua dimensão complexa requer a valorização tanto dos elementos civilizatórios e estruturantes, quanto dos elementos políticos e estratégicos contidos em maior ou menor grau em diferentes sociedades e tradições sociológicas”, propõe.

Eduardo Raposo (Foto: Arquivo pessoal)

Eduardo Raposo, graduado em Direito pela Universidade Cândido Mendes - UCAM, é doutor e mestre em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - IUPERJ. Pós-graduado também pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris, onde obteve um Diploma de Estudos Aprofundados e onde passou o mês de dezembro de 1998 como professor convidado. Desde 1990 é professor e pesquisador associado do Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Foi seu diretor por cinco anos, tendo coordenando a implantação de seu programa de pós-graduação.

Entre as publicações mais relevantes, estão: Banco Central do Brasil: o Leviatã Ibérico. Uma interpretação do Brasil contemporâneo (São Paulo, Hucitec; Rio de Janeiro, PUC-Rio, 2011); “Mãos visíveis e invisíveis na construção do Brasil moderno” (in M. C. d’Araujo (org.), Redemocratização e mudança social no Brasil (Rio de Janeiro, Fundação Getulio Vargas, 2014); e, com Luiz Roberto Cunha e Maria Antonieta Leopoldi, Dionísio Dias Carneiro, um humanista cético (Rio de Janeiro, PUC-Rio/LTC, 2014).

A presente entrevista, adverte o entrevistado, no que concerne às posições dos oficiais do Exército Brasileiro sobre os diferentes temas aqui abordados, se utiliza do survey realizado no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-Rio, de autoria do professor Eduardo Raposo e das professoras Maria Alice Rezende de Carvalho e Sarita Schaffel, que será publicado brevemente pela Editora da PUC-Rio com o título Para Pensar o Exército Brasileiro no Século XXI.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é o papel histórico da corporação militar no Brasil?

Eduardo Raposo – Alguns papeis entrelaçados e complementares podem ser percebidos no desenvolvimento histórico da corporação militar brasileira. Papéis institucionais, na delimitação da territorialidade nacional, papeis sociais, constitucionais e militares stricto sensu, são alguns deles. Na verdade, a presença dos militares na vida pública nacional se confunde com a própria formação do Estado brasileiro.

Em nossas origens remotas, o Estado com sua burocracia, que incluiria a existência de um Exército profissionalizado e presente em todo território nacional ainda não existia e a função militar era exercida pela autoridade privada do sistema patriarcal. Aos poucos criaram-se as instituições públicas nacionais e entre elas as Forças Armadas.

Alguns eventos foram marcantes nessa evolução, como a transferência da Corte Portuguesa para o Brasil, em 1808, que teve efeito imediato sobre a reorganização política, econômica e institucional da “colônia”, agora promovida a capital do governo do Império Ultramarino português. Nesse processo, foi de grande importância a criação da Academia Real Militar e de novos órgãos ligados à Marinha e ao Exército. Nessa nova fase do desenvolvimento institucional brasileiro, ganhou impulso a unificação, a centralização e o fortalecimento das forças militares, então espalhadas pelas capitanias, em um território de dimensões continentais.

O papel militar na delimitação da territorialidade nacional, pode ser visto em inúmeros episódios. Nas expedições organizadas pelos reis de Portugal, nos séculos XVI e XVII para rechaçar franceses, ingleses e holandeses que ameaçavam o domínio português, no Tratado de Madri (1750), na conquista e posse da Amazônia (século XVIII), na retomada e defesa de Fernando de Noronha (1737-1738), na ocupação de Mato Grosso (1801) e Goiás, (século XVII- XVIII) entre outros tantos.

O historiador Frank MacCann em seu livro Soldados da Pátria (São Paulo: Companhia das Letras, 2007), acredita ter sido o Exército, até os anos de 1930, a única instituição que tinha verdadeiro conhecimento da totalidade do território brasileiro, sendo um baluarte contra as forças centrífugas regionais, tão atuante em nossa vida política. Os partidos políticos eram regionais – na verdade só foram constituídos nacionalmente a partir da redemocratização de 1945 – a Igreja católica, por sua vez, apesar de presente em todo o país tinha um clero de origem internacional. Apenas o Exército tinha uma presença verdadeiramente nacional.

Quando se fala do papel militar stricto sensu – sua vocação original – alguns conflitos não podem ser esquecidos. Para citar apenas dois de maior magnitude, lembro da Guerra do Paraguai, considerado o maior conflito ocorrido na América do Sul (1864 - 1870), assim como, já na República, os conflitos ligados à Segunda Guerra Mundial, com a participação da Força Expedicionária Brasileira - FEB nos combates da Itália (1938-1945).

O papel do Exército Brasileiro hoje (Artigo 142 da Constituição Brasileira) é a defesa da pátria e a garantia dos poderes constitucionais. Responsável, no plano externo, pela defesa do país em operações eminentemente terrestres e, no interno, pela garantia da lei, da ordem. Nesse âmbito encontram-se as operações na cidade do Rio de Janeiro e no Estado do Ceará, ameaçados pelo crime organizado e nas operações de paz e ajuda humanitária, como no caso do Haiti.

Perguntados aos oficiais sobre a utilização das Forças Armadas na manutenção da ordem social, 75% dos respondentes, distribuídos de maneira bastante homogênea entre os oficiais dos diferentes postos, se mostraram favoráveis. Vale notar que os Generais de Exército foram 100% a favor.

Sobre a utilização das Forças Armadas no combate ao tráfico de drogas as respostas não são tão unânimes. 51% dos oficiais foram a favor e 49% contra. Vale notar que os generais de Brigada e de Divisão se dividem em uma conta certa, 50% a favor e 50% contra; e os generais de Exército foram 100% a favor.

IHU On-Line – Como se deu a construção da identidade do oficial do Exército Brasileiro e quais são os principais elementos que compõem essa identidade?

Eduardo Raposo – A construção da identidade do oficial do Exército Brasileiro pode ser vista tanto a partir da criação de estruturas institucionais nacionais quanto do ponto de vista da socialização – mentes e corações – dos jovens que ingressam na carreira militar.

De maneira geral, a construção da identidade nacional das instituições e do povo brasileiro foi fruto de um lento processo de desligamento do Brasil da Metrópole Portuguesa. Aos poucos, nos vimos obrigados, em todos os campos da vida nacional a nos descobrirmos enquanto nação independente. Na música, superando um certo sotaque italiano – ainda existente nas composições de Carlos GomesVilla-Lobos foi um dos principais inventores do Brasil musical, explorando temas e manifestações da cultura de um Brasil que nascia. Na literatura autores como José de Alencar já invocavam heróis brasileiros, como os índios, que passaram a protagonizar seus romances. Na sociologia uma leva de autores – Tavares Bastos, Oliveira Vianna, Alberto Torres, Victor Nunes Leal etc – sobretudo no século XIX e XX, indagavam com algum sucesso quem éramos como sociedade independente e politicamente organizada.

O Exército Brasileiro também passou por esse processo de “abrasileiramento”. O historiador José Murilo de Carvalho, em seu livro Forças Armadas e Política no Brasil (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005), nos fala dessa construção. Chama atenção para o fato de que a independência do Brasil, por ter se dado sem grandes confrontos, preservou, inicialmente, a estrutura do Exército português. Mesmo após a independência (1822) e da abdicação de D. Pedro I (1831), por força desse processo, ainda havia coabitação e atritos entre oficiais brasileiros e portugueses.

Com a proclamação da República, com as reformas no sistema de ensino do Exército e com o desenvolvimento do próprio Estado nacional brasileiro, a identidade do oficial foi se consolidando.

Importante neste processo foi o sistema de socialização ao qual os jovens aspirantes foram submetidos. Escolas e instituições militares onde valores institucionais, ritos e procedimentos, baseados na hierarquia e na disciplina, são cultivados bem como o convívio com os mais antigos e a restrita observação dos regimentos militares, temas que foram desenvolvidos por Everton Araújo dos Santos em seu livro O Carisma do Comandante (Rio de Janeiro: Editora PUC Rio, 2018).

Há, porém, no Exército brasileiro, três tipos de formação de oficiais que em razão de diferentes trajetórias e imersões a que são submetidos em seus treinamentos, produzem diferentes níveis de identidades. São os oficiais que cursaram a AMAN e que se destinam a ser combatentes; os do quadro complementar (QCO) e os temporários.

Os aspirantes a oficial combatente entram com aproximadamente 17 anos, na Escola Preparatória do Exército Brasileiro (EsPCEx), carregados ainda da mentalidade aprendida na sociedade civil, de onde vieram e dos valores adquiridos no convívio de suas famílias e grupos sociais aos quais pertenceram. Porém, aos poucos, se transformam, passando a afirmar os valores da instituição militar “acima” de seus valores pessoais – fenômeno que ocorre no âmbito das “instituições totais”, conceito clássico criado por Erving Goffman.

Os oficiais combatentes, para atingirem os postos mais altos e chegarem ao generalato, além de se formarem na AMAN (que corresponde ao nível da graduação universitária) seguem os cursos preparatórios ministrados para os cadetes na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais - ESaO (que corresponde ao mestrado) como, também, a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército - ECEME (que corresponde ao doutoramento). Os tenentes do Quadro Complementar de Oficiais (QCO) seguem outro processo de socialização. Oriundos da Escola de Formação Complementar do Exército (EsPCEX), esse quadro é formado por oficiais já possuidores de um diploma universitário em uma das carreiras das Humanidades (Administração, Direito, Letras etc.) e se submetem a uma breve passagem pela Escola de Formação Complementar do Exército, na cidade de Salvador-Bahia. Há, também, o quadro de oficiais temporários, que também diferencia-se quanto à intensidade de sua formação e inserção na instituição militar, recebendo um treinamento militar de apenas 45 dias, só podendo permanecer nas fileiras do Exército por um período de oito anos.

Na formação de sua identidade há, por parte do oficial militar a crença, apoiada em sua própria experiência, em valores meritocráticos, considerando-se que para chegarem aos postos mais avançados da carreira, necessitam ser bem-sucedidos em exames em diferentes níveis. Acreditam, no que diz respeito a suas progressões na carreira, no desempenho profissional (96,2% das opções mais assinaladas), seguida da aquisição de diplomas e cursos (92,4%, segunda opção mais apontada).

Faz parte de sua identidade a escolha da carreira militar pela estabilidade que a mesma oferece, a vocação pela profissão escolhida, e o desejo de prestar um serviço público à sociedade. Acreditam que os valores que melhor representam o espírito militar são organização, disciplina/obediência (25%), seguida de responsabilidade, dedicação e disponibilidade (24%), seguidas ainda por honestidade, integridade e honradez (18%). Outros valores fortes são espírito de corpo, camaradagem e lealdade (16%), sendo a carreira militar vista como uma “espécie de sacerdócio”.

IHU On-Line – Alguns pesquisadores têm afirmado que as Forças Armadas de hoje são completamente diferentes das do regime militar. A partir das suas pesquisas, que diferenças e semelhanças tem observado entre as Forças Armadas de hoje e as do passado?

Eduardo Raposo – A geração de oficiais de hoje não é a mesma da que participou de 1964. Acredito que houve um aprendizado político. Apesar do contexto de 1964 ter se caracterizado pelo confronto de dois projetos autoritários em disputa, no contexto da Guerra Fria, o desgaste da instituição militar durante o regime autoritário foi grande. O momento é outro, com pleno funcionamento das principais instituições da República, com processos de integração global e a consciência que a democracia para ser perene exige a observância de condições que estão para além da simples tomada do poder. Os oficiais de hoje estão mais conscientes desses fatores.

Quando perguntados sobre os fatores considerados prejudiciais à democracia, apontaram, primeiramente, o baixo nível educacional da população brasileira (48,6%), seguida da corrupção (39,0%). E ainda, a falta de organização política do povo (4,2%) e a desigualdade social (2,3%) entre outras. Importante notar que quanto mais alta a patente, mais subiram os percentuais dos oficiais que apontavam a corrupção como o principal inimigo da democracia, chegando a 100% os generais do Exército que assim pensam.

IHU On-Line – Qual é o perfil dos militares brasileiros, considerando a origem social e o nível educacional deles?

Eduardo Raposo – Alguns dados podem ser expressivos sobre o perfil dos oficiais do Exército Brasileiro, não apenas sobre seu nível social e educacional, mas, também, sobre seu gênero, cor, religião e estado civil.

Comparando-se a escolaridade dos pais (homens) com a escolaridade dos filhos oficiais, os dados do survey mostram que apenas 23,6% tem cursos universitários, o que mostra que houve significativa ascensão educacional e, consequentemente, social desse grupo, considerando-se que o oficial tem nível universitário.

Quanto à cor, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios / IBGE-2014, nos mostra que 53% dos brasileiros se autodeclaram pretos ou pardos. Assim, torna-se significativo que entre os oficiais que responderam ao survey, 31,7% da elite do Exército nacional, que são os oficiais, assim tenha se declarado. Interessante notar que esse percentual se concentra entre os segmentos mais jovens dos oficiais, sendo bastante reduzidos os de origem oriental (1.0%) e indígena (1.0%).

Apesar do Exército brasileiro ser formalmente laico, há uma forte ligação da instituição militar com a religião, existindo mesmo um serviço de assistência religiosa (SAREx) para o qual padres, pastores e espíritas concorrem a se tornarem oficiais de carreira, bem como o culto a padroeiros por parte das diferentes Armas, Quadros e Serviços do Exército.

A julgar pelo survey, em 2015, 75,6% dos oficiais do Exército são católicos (50,2%), entre praticantes e não praticantes, média inferior à da popular católica brasileira, 64%, a contar pelo Censo de 2010. São sucedidos pelos espíritas Kardecistas (16,5%) e pelos evangélicos pentecostais e neopentecostais (14,3%), havendo aqui uma inversão em relação à população nacional, na qual os evangélicos ocupam o segundo lugar. Há, também, uma pequena parcela de ateus (2,2%) que curiosamente aumenta nos postos mais adiantados da carreira militar. Interessante notar que 50% dos generais de Exército se declaram sem nenhuma religião, contrastando com os tenentes que representam apenas 10% dos ateus.

A entrada de mulheres na AMAN é novidade que data do ano de 1990. No Brasil, segundo dados de 2017, foram estimadas 28 mil mulheres nas três Forças, efetivo que tende a aumentar.

Apesar das iniciativas concebidas para o ingresso de mulheres na carreira militar desde os anos de 1990, a presença feminina no Exército brasileiro ainda é muito restrita. Na pesquisa elas são apenas 5% da população respondente ao survey, o que em números absolutos somam apenas 94 mulheres. Na maioria brancas (74,7%) considerando-se a faixa entre 31 e 40 anos (55,9), 52,7% são casadas, sem filhos ou com um único filho.

Em sua maioria, tanto os homens quanto as mulheres participantes da pesquisa são oriundos da região Sudeste 57,2% e 56,5% respectivamente, que concentra a maior parte das organizações militares, seguidas pelo Sul e depois Nordeste. Considerando-se os estados, o Rio de Janeiro aparece com 34,4%; RS (12,2%); SP (11,6); MG (9,4%). Ao todo, 76% da população pesquisada é composta por oficiais casados e 10,6% de solteiros, logicamente estes são os mais modernos (que ingressaram mais recentemente na carreira) e 5,2% são divorciados e/ou separados.

IHU On-Line – Quais são os valores que regem a formação dos militares no país hoje?

Eduardo Raposo – No caso das instituições totais, como são os Exércitos modernos, sua capacidade em afirmar seus valores “acima” dos valores de seus membros é – juntamente com procedimentos baseados na hierarquia e na disciplina – central na construção do espírito militar.

Como visto acima, esse processo ocorre em um ambiente onde a instituição fornece a seus membros empregos estáveis, assistências médica, espiritual, educacional, habitacional e recreativa, entre outras, o que favorece a substituição dos valores relativos a identidades individuais, adquiridas na vida civil de jovem cadete, pela identidade e valores do militar adulto.

Denis de Miranda, em seu livro A Construção da Identidade do Oficial do Exército Brasileiro (Rio de Janeiro: Editora PUC Rio), aponta, baseado na lista publicada no Vade-Mécum de número dez (VM 10) [1] outorgado pelo Comandante do Exército, seis valores que são referências fixas, fundamentos imutáveis e universais, considerados suficientes para distinguir o perfil que se espera de um integrante da Força Terrestre: patriotismo, civismo, fé na missão do Exército, amor à profissão, espírito de corpo e aprimoramento técnico-profissional.

IHU On-Line – Os militares sempre foram conhecidos pela defesa do nacionalismo. Como eles se posicionam sobre esse tema hoje?

Eduardo Raposo – Os processos macroeconômicos – como a globalização e a integração tecnológica mundial –, e as diferentes modalidades de organizações de estados nacionais que correm pelo mundo, apesar de se comunicarem, obedecem a constrangimentos e a ciclos bem diferentes. Preferências e convicções políticas e ideológicas podem ser bem mais independentes do que as forças que organizam os ciclos econômicos do mundo moderno. Vemos em diferentes épocas de nossa história essas duas vertentes ora se aproximarem ora se contraporem. No Brasil, durante a República Velha, como apontado por Frank MacCann, apenas os militares eram verdadeiramente nacionalistas, inclusive por definição constitucional. Muito diferente foi o cenário que prevaleceu no Brasil dos anos de 1950 por ocasião da campanha nacionalista “O petróleo é Nosso”. Havia então quase uma unanimidade a respeito do nacionalismo, professado não apenas pelos militares, mas, também, pela maioria dos grupos políticos atuantes no cenário nacional. No período do regime militar de 1964, sobretudo em sua fase final, apesar do nacionalismo dos militares e apesar do fechamento da nossa economia, o mundo já era bem, bem mais interdependente.

Hoje, globalistas e nacionalistas ainda se opõem, mas em outro momento da história. O mercado, com sua violenta internacionalização – não apenas da produção como também do consumo – dos costumes e da tecnologia, desenvolveu mais ainda sua vocação globalista que não pode ser desprezada sob o risco de ficarmos defasados em relação aos centros dinâmicos da economia mundial. Isso não significa que se deve abrir mão de estratégias e dos interesses nacionais e permanecermos eternos fornecedores de matérias primas pouco beneficiadas e importadores de tecnologia cara, como foi grande parte de nossa história econômica. Hoje, a Embraer – empresa símbolo de sucesso – tem fortes ligações com as Forças Armadas sendo, também, ligada aos mercados internacionais.

IHU On-Line – Quais são os referenciais teóricos que estão na base da formação dos militares na Academia Militar das Agulhas Negras - AMAN?

Eduardo Raposo – Como já enfatizado, a AMAN é única escola de nível superior que forma oficiais de carreira – Armas de Infantaria, Cavalaria, Artilharia, Engenharia e Comunicações, do Quadro de Material Bélico e do Serviço de Intendência do Exército – para o Exército Brasileiro. Os jovens oficiais lá ficam por quatro anos quando seguem disciplinas ligadas às ciências militares, exatas e humanas (línguas, direito, técnicas militares, treinamento físico, relações internacionais, psicologia, economia, química, história etc…).

Vale a pena registrar uma pequena nota sobre a inclusão do curso de sociologia na grade curricular dos cursos de formação de oficiais do Exército Brasileiro, intenção original de Benjamin Constant, que vem do final do século XIX não tendo, porém, se concretizado, segundo Jeová Motta, em reação às suas ideias positivistas. Em 1934 a inclusão do estudo da Sociologia na grade curricular de cursos de oficiais foi novamente considerada por Góes Monteiro, mas, de novo, não chegou a sair do papel. O curso, foi instituído em 1940 com o título de “introdução da Sociologia e da Geografia Militar” tendo durado, porém, apenas dois anos.

Mais recentemente, em 2012 houve a adoção do Ensino por Competências na AMAN abrindo-se espaço para o planejamento de novo currículo. Finalmente, em 2014 foi criada a Cadeira de Sociologia, contando, inicialmente, apenas com um oficial professor, o Major de Artilharia Denis de Miranda, mestre e atual doutorando em Ciências Sociais na PUC-Rio. A partir de 2016 novos oficiais especialistas em Sociologia foram integrados à Cadeira que alcançou autonomia em 2017, quando deixou de ser subordinada ao curso de Filosofia.

IHU On-Line – Após o regime militar houve uma certa resistência à presença dos militares em vários setores da sociedade brasileira. Como se deu a presença e a participação dos militares no país depois da reabertura e quais são as consequências disso? Qual é o significado da participação dos militares no governo Bolsonaro?

Eduardo Raposo – A participação dos militares na vida política nacional não se deu apenas com a presença, na Presidência da República, de Deodoro da Fonseca (1889-1891), Floriano Peixoto (1891-1894), Hermes da Fonseca (1910-1914) e Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), mas também de seus membros no primeiro escalão de inúmeros governos e por meio de “revoluções” e golpes de Estado, como em 1930 e 1964. Nesse primeiro evento participaram em segundo plano, quando Getúlio Vargas foi a principal liderança, tendo, depois em 1964, assumido diretamente o comando.

Algumas formações educacionais foram escolhas preferenciais das elites políticas brasileiras. José Murilo de Carvalho nos lembra da presença majoritária dos bacharéis em direito no tempo do Império. Hoje, em pesquisa por mim realizada sobre as elites políticas brasileiras nos últimos 50 anos de nossa história, constato que os bacharéis em Direito continuam presentes dividindo, porém, espaço com os militares e os técnicos (engenheiros e economistas). Esses três grupos, com suas subdivisões, alternaram-se, confrontaram-se e aliaram-se, compondo o perfil dos governos que se sucederam em nossa história recente. Escolhas que resultaram de demandas, para as quais essas formações, combinadas de maneira original, representavam algum tipo de resposta.

A presença dos bacharéis em Direito na política nacional foi majoritária em todos os governos democráticos. Com a implantação do regime militar, diminuíram sua presença sobretudo à medida em que o mesmo ia sendo aprofundado.

Os técnicos (engenheiros e economistas), de formação “científica”, chegaram à esfera pública dos países do mundo ocidental juntamente com o processo de industrialização e urbanização que, no Brasil, ocorreu a partir dos anos de 1930, concomitantemente à instalação das políticas corporativas do governo Vargas e ganharam protagonismo com a criação de instituições públicas e de ensino voltadas para a modernização e para o desenvolvimento econômico.

Os economistas de orientação liberal predominaram sobre os desenvolvimentistas nos governos atingidos ou ameaçados por processos agudos de inflação: Castelo Branco, Collor de Mello, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso nos dois mandatos, e Lula da Silva, no primeiro mandato. Os economistas desenvolvimentistas, sobrepujaram os liberais em governos que investiram no crescimento acelerado da economia: Costa e Silva, Médici, Geisel, João Figueiredo, Lula (segundo mandato) e Dilma Rousseff.

Para refletir sobre a ascensão dos militares na política, pode ser útil voltarmos ao impasse ocorrido no início do governo Jânio Quadros, em 1961, quando os três ministros militares (Exército, Marinha e Aeronáutica) posicionaram-se contra a posse do vice-presidente João Goulart. Porém, o Comandante do III Exército – José Machado Lopes –, apoiando o governador do Rio Grande do Sul. Leonel Brizola, passou a apoiar sua posse, no que foi seguido por outros generais. Esse impasse resultou na implantação do regime parlamentarista, mas não desfez a cisão, que teve como desfecho a deposição de Goulart, pelo Golpe de março de 1964. Como visto, durante os governos do ciclo autoritário, de Castelo Branco a João Figueiredo, os militares estiveram presentes majoritariamente.

Diminuíram suas presenças também em razão da fusão, no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso (1999), dos três ministérios militares e da criação do Ministério da Defesa, comandado por um civil. Nos governos subsequentes, de Lula da Silva e Dilma Rousseff, não tiveram nenhum representante em suas elites políticas.

Governo Bolsonaro

Sobre a presença dos militares no atual governo, necessário contextualizá-lo no âmbito de alguns fenômenos que estão transformando a vida política, econômica e social em todo o mundo. Apesar das significativas diferenças de cada região do planeta, apresentam, porém, alguns elementos comuns. No Brasil três demandas e três transformações foram vocalizadas e encarnadas pelo atual governo: liberalismo econômico, conservadorismo nos costumes e segurança pública.

A transformação econômica que ora ocorre no Brasil está ligada à lógica dos ciclos da economia mundial que alterna políticas desenvolvimentistas e políticas liberais. O aspecto cíclico do capitalismo elege, alternadamente, ou o Estado ou o Mercado como protagonistas do processo de desenvolvimento econômico, deixando para o outro a tarefa de criticar e “resolver” os impasses criados pelo primeiro. As crises que ocorreram no contexto de políticas econômicas liberais foram resolvidas com a participação do Estado, como os casos das crises de 1929 e de 2008. As crises econômicas protagonizadas pelo Estado foram “resolvidas” com a interferência do mercado como nos casos da crise do final dos governos militares e a crise do governo Goulart. O ciclo atual aponta para a vez das políticas econômicas liberais diante da crise econômica originada pelo esgotamento de políticas desenvolvimentistas praticadas sobretudo no segundo mandato de Dilma Rousseff e, também, do final de uma década de crescimento econômico mundial puxada pela China.

Outro ponto são as mudanças defendidas pelo atual governo em direção a padrões mais conservadores nos costumes. No correr dos anos de 1970, iniciaram-se manifestações de uma sociedade mais identitária (negros, mulheres, LGBT etc.) que se fortaleceram nas décadas subsequentes. Grupos que haviam sido fortemente reprimidos nas décadas anteriores se organizaram e passaram a participar da vida política e social no mundo e mais recentemente também aqui no Brasil. Os grupos conservadores foram de certa maneira esquecidos, saíram, porém da obscuridade não apenas como eleitores, mas, também, como protagonistas da vida política e social, ampliando suas presenças pelas redes de comunicação social. É necessário lembrarmos que Hilary Clinton perdeu eleições dadas como ganhas concentrando sua campanha sobretudo em grupos identitários. Com as eleições perdidas sobressaiu, no meio de um discurso, uma frase expressiva de Barack Obama: “nos esquecemos de muita gente”.

O terceiro ponto tem a ver com o desejo de ordem de grande parte da sociedade brasileira, atormentada pelos altos índices de violência e pelos processos de corrupção envolvendo políticos de todos os partidos, empresas estatais e grandes empresários. Desejo que se materializou com a presença de militares em postos importantes do primeiro escalão do governo.

Bolsonaro, em sua pregação política, fez críticas e promessas que atingiram mentes e corações que estavam decepcionadas e ávidas sobretudo por essas três demandas: o desejo de ordem, que tem a ver com sua ligação pessoal com o Exército Brasileiro; os valores conservadores, bastante visíveis nos setores religiosos que apoiaram sua candidatura, e o desejo de desenvolvimento econômico, com a eliminação dos entraves reconhecidos por grande parte da população como tendo origem nas burocracias do Estado em suas diferentes instâncias. Crítica compartilhada, tanto pelos setores empresariais do país como também por membros das classes populares, como mostram pesquisas dentre as quais uma realizada pelo Instituto Perseu Abramo/PT no ano de 2017, nas periferias da cidade de São Paulo, sobre percepções e valores políticos. Esta pesquisa aponta a valorização do mercado e vê o Estado como apropriador do dinheiro dos impostos, fornecendo serviços sociais de péssima qualidade.

IHU On-Line – Já é possível especular qual será o papel dos militares no governo Bolsonaro?

Eduardo Raposo – Somente especular. Como nos ensinou o pensador florentino, Nicolau Maquiavel, a política é feita de fortuna (circunstância) e virtude (atuação). A fortuna é mais fácil de ser conhecida, pois trata-se de um conjunto de condições criadas pelo passado. A virtude, porém, nos remete a capacidade do político de se adaptar ou aproveitar os constrangimentos representados pela fortuna. A ”virtude” dos militares vai sendo delineada aos poucos, e se dá no âmbito da capacidade e da ação política. Como disse, esses militares não são da mesma geração dos que participaram de regime de 1964. Acho que aprenderam muito e podem mesmo caminhar para exercer um papel moderador em uma sociedade radicalizada, como no atual Brasil, onde o centro político, onde ocorrem as negociações e a possibilidade de algum entendimento, derreteu-se, sobrando posições antagônicas e de difícil conciliação.

IHU On-Line – Logo após a divulgação do resultado das eleições, Bolsonaro afirmou que iria seguir os passos do patrono do Exército Brasileiro, Duque de Caxias. Qual o significado dessa afirmação?

Eduardo Raposo – Celso Castro em seu livro O Espírito Militar (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990) chama atenção para o fato de que no início da República, Osório era o militar mais cultuado do Exército brasileiro. Somente a partir dos anos de 1920 é que Caxias surge como modelo ideal do soldado brasileiro. Foram certamente as duas maiores referências militares do Império. Têm, porém, características que os diferenciam. Osório é percebido como guerreiro, enquanto Duque de Caxias é considerado o Pacificador do Brasil, responsável pela manutenção da unidade e da integridade nacional. Não sei se essas características estavam presentes na mente de Bolsonaro quando fez tal afirmação.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Eduardo Raposo – A tarefa das ciências sociais nesses próximos anos será enorme para produzir diagnósticos razoáveis e objetivos sobre os novos acontecimentos políticos brasileiros dos últimos anos – período conturbado com crises vindas do esgotamento de alguns ciclos da vida pública tanto nacional quanto internacional.

São Paulo – após mais de 20 anos no poder com o PSDB e o PT – perde protagonismo. Encerra-se, também, um ciclo de políticas econômicas desenvolvimentistas, iniciadas mais recentemente no segundo mandato do governo Lula da Silva. Surgem, também, como protagonistas da vida política, social e eleitoral no país, grupos conservadores que deverão dividir espaço com os grupos identitários e só a democracia poderá conjugá-los.

Surgiram, também, e cada vez mais fortes, conflitos que opõem grupos sociais insatisfeitos ao péssimo padrão dos serviços públicos básicos e fundamentais oferecidos pelo Estado. Regimes autoritários, desemprego, políticos corruptos, injustiça social, péssimas condições dos transportes públicos, de hospitais e do sistema educacional mobilizam uma população já há muito sacrificada. Conflitos que em algum sentido ecoam a chamada Primavera Árabe [2], o Occupy Wall St. nos Estados Unidos [3], e os Indignados na Espanha [4]. Todos inconformados com os governos de seus países.

A visão mais otimista sugere que esses conflitos, hoje desdobrados em querelas jurídicas, sejam o sinal da afirmação de uma sociedade que quer impor-se a uma elite política que sempre contou com privilégios e trabalhou para sua própria sobrevivência.

Nenhuma teoria solitária dá conta de uma arqueologia tão ampla de conflitos, o que exige reflexões sociológicas plurais. Entender o Brasil em sua dimensão complexa requer a valorização tanto dos elementos civilizatórios e estruturantes, quanto dos elementos políticos e estratégicos contidos em maior ou menor grau em diferentes sociedades e tradições sociológicas.

Notas: 

[1] SECRETARIA GERAL DO EXÉRCITO (SGEX). Vade-Mécum de Cerimonial Militar do Exército: Valores, Deveres e Ética Militares (VM 10). 2002 . (Nota do entrevistado)

[2] Manifestações ocorridas no Oriente Médio e Norte da Africa a partir de dezembro de 2010, protagonizadas sobretudo por jovens. Os países onde ocorreram as maiores manifestações foram: Tunísia, Egito, Líbia, Síria, Argélia, Bahrein, Djibuti, Iraque Jordânia, Omã, Iémen, Kuwait, Líbano, Mauritânia, Marrocos, Arábia Saudita, Sudão e Saara Ocidental. A despeito das diversas causas que as mobilizaram, entre as centrais estavam a luta pela liberdade e o combate a governos corruptos e autoritários. (Nota do Entrevistado)

[3] Movimento que teve início na cidade de Nova York/EUA em setembro de 2011. Protestava contra a corrupção denunciando sobretudo a impunidade dos responsáveis e beneficiários pela crise financeira mundial de 2008. (Nota do entrevistado)

[4] Ocorrido em várias cidades Espanholas em maio de 2011, se caracterizou pela aversão à classe política, reivindicando mudanças no modelo político e econômico. (Nota do entrevistado)

 

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