09 Mai 2025
"O desafio para uma leitura progressista não é apenas reinterpretar, mas viver o texto a partir do coração da mensagem cristã. E esse coração pulsa com uma única lei: o amor. Tudo o que não nasce dessa fonte, não vem de Deus", escreve José Carlos Enríquez Díaz, em artigo publicado por Ataque al poder, 06-05-2025.
O relato de Sodoma e Gomorra, especialmente o episódio de Ló em Gênesis 19, tem sido um dos textos bíblicos mais polêmicos em relação à homossexualidade. Tradicionalmente interpretado como uma condenação às relações entre pessoas do mesmo sexo, esse trecho foi usado durante séculos para justificar atitudes discriminatórias. No entanto, uma releitura crítica e progressista do texto revela uma perspectiva bem diferente, mais centrada na hospitalidade, na justiça social e na dignidade humana do que na sexualidade propriamente dita.
A história começa quando dois mensageiros — descritos como “anjos” — chegam a Sodoma e são recebidos por Ló, que insiste em oferecer-lhes hospedagem. A hospitalidade era um valor sagrado no antigo Oriente Médio. Rejeitá-la, ou pior, violentá-la, não era visto apenas como uma falta de cortesia, mas como uma ruptura da estrutura moral que sustentava a convivência social.
Nesse contexto, a ação dos homens de Sodoma, que cercam a casa e exigem que os forasteiros sejam entregues para serem “conhecidos”, representa uma ameaça direta à ordem ética. É fundamental entender que o que está sendo denunciado no relato não é uma orientação sexual, mas uma prática de violência coletiva, de humilhação por meio da agressão sexual.
O ato de “conhecer” não implica desejo ou afeto, mas dominação e submissão. É uma forma brutal de exercer poder sobre o estrangeiro. Esse ato não tem nada a ver com uma relação amorosa entre pessoas do mesmo sexo, mas com a destruição da dignidade alheia.
A reação de Ló, que oferece suas filhas em lugar dos visitantes, é profundamente perturbadora. Essa cena expõe a lógica patriarcal de sua época, em que as mulheres eram vistas como moeda de troca para preservar a honra familiar.
Uma abordagem progressista reconhece que a Bíblia foi escrita a partir de contextos humanos concretos, com suas luzes e sombras. Não é um manual atemporal, mas uma coleção de testemunhos que precisam ser interpretados à luz do amor, da justiça e da compaixão.
Nos profetas, o pecado de Sodoma é descrito com outros matizes. Em Ezequiel 16:49, diz-se que a falta de Sodoma foi sua arrogância, sua indiferença diante do pobre e do necessitado. Isso reforça que a condenação é ética, não sexual.
A partir de uma ética cristã inclusiva, o texto nos interpela sobre como nossas comunidades recebem o diferente. A mensagem de fundo é um alerta contra o abuso de poder, contra a cultura do desprezo e da violência.
Hoje, esse “outro” pode ser a pessoa migrante, o pobre, ou também a pessoa LGBTQ+, muitas vezes marginalizada e atacada com pretextos religiosos. Quando comunidades religiosas usam essa passagem para condenar, estão fazendo uma leitura literalista e desconectada do contexto histórico.
Usar o poder para excluir é repetir o pecado de Sodoma. Uma interpretação fiel ao evangelho não pode se apoiar no ódio nem na exclusão.
O Deus que se revela na Escritura é o Deus que escuta o oprimido, que se identifica com o forasteiro, a viúva, o marginalizado. A mensagem cristã é chamada a ser espaço de acolhida, de dignidade restaurada, de amor libertador.
Assim, longe de ser uma condenação à homossexualidade, o relato de Sodoma é uma denúncia do abuso, do poder que oprime aqueles que são diferentes. Lê-lo a partir de uma ética progressista é abrir os olhos para uma verdade mais profunda: a hospitalidade e a compaixão estão no coração da mensagem bíblica.
Longe de ser um libelo contra a orientação sexual, o relato de Sodoma é uma denúncia profética contra a desumanização do outro. É um texto que aponta para o uso da violência como controle social, para o desprezo pelo estrangeiro e para uma sociedade que esqueceu os valores de justiça e hospitalidade. Essa é a verdadeira transgressão.
Usar essa passagem como arma contra pessoas LGBTQ+ é uma deturpação do texto e uma traição ao seu sentido bíblico. Em Jesus, os cristãos encontram um mestre que rompia as barreiras da exclusão e nunca condenou o amor entre iguais.
A fidelidade ao evangelho está em encarnar o espírito de misericórdia e dignidade, não em repetir literalmente as normas de sociedades antigas. Uma comunidade de fé se define por sua capacidade de amar sem condições. Quando se usa Gênesis 19 para excluir, cria-se uma nova Sodoma: inóspita, violenta, fechada ao outro.
O desafio para uma leitura progressista não é apenas reinterpretar, mas viver o texto a partir do coração da mensagem cristã. E esse coração pulsa com uma única lei: o amor. Tudo o que não nasce dessa fonte, não vem de Deus.