26 Julho 2021
"Assim aparece sob uma nova luz a questão do uso em relação ao abuso. Para o Concílio Vaticano II, é mais importante aprender um novo uso do rito romano do que evitar os abusos ligados a uma concepção clerical, formal e separada do ato de culto. Guardini sabia muito bem que o verdadeiro desafio da reforma litúrgica era 'reaprender o ato de culto'. Para aprendê-lo não é mais suficiente a 'luta contra os abusos'", escreve Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 24-07-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
As discussões em torno do Motu Proprio "Traditionis Custodes" revelam, especialmente na consideração da "missa antiga", certa fragilidade a respeito de um dos objetivos fundamentais que caracterizaram o Concílio Vaticano II e seu cuidado pela tradição litúrgica. Como vimos no último post deste blog, mesmo um teólogo de valor como H.U. von Balthasar sabia bem que é necessário distinguir entre "questões últimas" e "questões penúltimas". Vou relembrar brevemente uma de suas afirmações, da qual gostaria de começar em minha reflexão.
a) Razões últimas e razões penúltimas
Em seu texto, Balthasar esclarece perfeitamente um aspecto bastante escondido da questão:
“Sofre ou gera escândalo, como Guardini sentenciou, aquele que pretende ter razão, citando argumentos ‘penúltimos’, que não são peremptórios. Semelhantes razões penúltimas são, neste caso, o clamoroso abuso da nova Ordo litúrgica por parte de um grande número de clérigos, enquanto a razão última fala, apesar de tudo, pela Igreja do Concílio e contra os tradicionalistas. A Santa Missa precisava urgentemente de renovação, sobretudo daquela participação ativa de todos os fiéis na ação sagrada que nos primeiros séculos era algo absolutamente pacífico” (H.U. Von Balthasar, Piccola guida per i cristiani, Milão, Jaca Livro, 1986, 112).
Esta diferença merece uma palavra de comentário e de aprofundamento. O que isso realmente significa? Procuremos considerar cuidadosamente a perspectiva com a qual o Concílio Vaticano II entrou no “in re liturgica”. Ao assumir plenamente a "questão litúrgica", o Vaticano II deixa uma perspectiva restrita, que considerava o "abuso" como o problema central da liturgia. Esta perspectiva deriva de uma série de premissas que merecem ser contestadas abertamente:
- a liturgia é a linguagem dos padres;
- aos padres é prescrito um "ritus servandus";
- se os padres não observam esse rito, cometem um abuso.
Perante esta abordagem distorcida, o Concílio Vaticano II reduziu o problema - que à sua maneira ainda permanece hoje - a uma "questão penúltima". Porque colocou, em primeiro plano, uma "questão última", que não diz respeito ao abuso litúrgico, mas ao uso litúrgico.
b) Do abuso ao uso: a mudança de paradigma
O que a Sacrosanctum Concilium orienta, de forma exemplar, é precisamente essa recuperação da liturgia a partir de uma perspectiva diferente, cujos critérios são, ao contrário do modelo anterior:
- a liturgia é a linguagem comum, cuja ação é participada por toda a assembleia;
- um "ritus celebrandus" é prescrito não só aos sacerdotes, mas a toda a assembleia;
- o empenho fundamental é a “promoção do uso” desse rito, e apenas subordinadamente a “luta contra o abuso”.
O resultado dessa mudança está em uma releitura da tradição do “rito romano” que se alimenta de três inovações estruturais, cujas consequências no plano eclesiológico, pastoral e espiritual são de importância primordial. Promover a participação ativa significa essencialmente "mudar o uso" da liturgia.
c) O "estado de minoridade" de Summorum Pontificum
É evidente que, se examinarmos a situação sob esta perspectiva, parece que o SP teve dois motivos de grave fraqueza, precisamente por causa dessa compreensão pouco clara da primazia do uso sobre o abuso:
- por um lado, assumindo como normais "dois usos paralelos", SP obscureceu de forma grave a intenção decisiva com que o Vaticano II havia indicado, com toda a sua autoridade, até "sete" pontos de não retorno com respeito ao uso da missa tridentina: só a NO, elaborada em cumprimento ao Concílio, garantiu maior riqueza bíblica, oração dos fiéis, homilia, língua atual, unidade das duas mesas, concelebração e comunhão sob as duas espécies (SC 51-58). Esse "uso" torna-se normativo, ao passo que persistir na VO significa inevitavelmente desconsiderar esses imperativos conciliares. O SP havia marginalizado objetivamente a centralidade dessas prioridades.
- por outro lado, entre suas justificativas, o SP permanece vinculado à perspectiva do “primado do abuso sobre o uso”, pois faz do uso da VO uma espécie de “temperamento dos abusos vinculados à NO”. Na realidade, essa leitura é em amplamente falaciosa. Porque a NO introduz "usos mais complexos" do rito romano, que chamam à ação, à responsabilidade, à palavra não apenas o "padre", mas toda a assembleia. Disso deriva, estruturalmente, a não comparabilidade entre VO e NO. São duas fases de desenvolvimento do rito romano, que não podem ocorrer ao mesmo tempo, exceto em casos excepcionais e destinados à extinção.
d) A custódia da tradição
Assim aparece sob uma nova luz a questão do uso em relação ao abuso. Para o Concílio Vaticano II, é mais importante aprender um novo uso do rito romano do que evitar os abusos ligados a uma concepção clerical, formal e separada do ato de culto. Guardini sabia muito bem que o verdadeiro desafio da reforma litúrgica era “reaprender o ato de culto”. Para aprendê-lo não é mais suficiente a “luta contra os abusos”.
Em primeiro lugar, é necessário reaprender os usos: reaprender o uso da liturgia da palavra, o uso da anáfora, o uso do rito de comunhão. Isso é muito mais complexo do que a luta contra os abusos, mas também muito mais vital. Por isso a “custódia da tradição” não pode sequer conceber que os novos usos possam ser preservados, permitindo voltar aos velhos usos. Pelo contrário, trata-se de entrar com decisão numa nova perspectiva, que passa do “ritus servandus” da VO ao “ritus celebrandus” da NO. Essa sabedoria celebratória não pode ser objeto de cuidado se for mantida uma leitura clerical, separada e formalista da liturgia. A remoção da VO é um imperativo do Concílio Vaticano II, para que uma nova "ars celebrandi", que não diga respeito apenas aos padres, envolva desde a raiz a assembleia e molde a oração e a Igreja de uma nova forma: esse uso não pode ser objeto de “livre opção”, nem de qualquer padre, nem de cada Bispo e nem mesmo dos Sumos Pontífices. Aqui, o verdadeiro abuso é constituído pelos apegos emocionais e pelas nostalgias do passado.
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Uso para promover, não abuso para criar empecilhos: a virada litúrgica do Vaticano II. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU