22 Janeiro 2021
"Na batalha que coloca grande parte do corpo episcopal e do catolicismo estadunidense contra o Papa Francisco, Biden corre o risco de resultar uma vítima colateral. O papel de "grande reconciliador", de que a nação necessitaria desesperadamente, deveria ser assumido pela Igreja local, que não pode fazer isso porque há décadas decidiu desempenhar o papel de grande divisor. Caberá ao novo presidente assumi-lo, o que faz parte do seu mandato a nível político e social, mas certamente não no plano da Igreja a que pertence. A Conferência Episcopal não parece estar interessada em uma reconciliação do catolicismo estadunidense com o Papa Francisco e, portanto, com o próprio Biden - mas Biden certamente está", escreve o teólogo e padre italiano Marcello Neri, professor da Universidade de Flensburg, na Alemanha, em artigo publicado por Settimana News, 21-01-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Joe Biden assumiu o cargo como o 46º presidente dos Estados Unidos e, com ele, sua administração no comando de uma nação em desesperada necessidade de reduzir o nível de conflito de múltiplas divisões que o dilaceram em tantas ‘sub’ e ‘para’ Américas. O discurso inaugural mostrou plena consciência disso e não quis exacerbar ainda mais nenhuma delas. Ao aspecto retórico que caracteriza toda boa liturgia juntou-se a lucidez da percepção do estado de coisas.
Mas foi também o dia em que o catolicismo, com seu presidente, se viu convocado ao cerne da vida institucional dos Estados Unidos, talvez como nunca antes. Da missa da manhã na Catedral de São Mateus em Washington, com a presença da Vice-Presidente K. Harris e dos representantes dos dois partidos na Câmara e no Senado que aceitaram o convite de Biden para participar da Eucaristia, até a oração de invocação durante a cerimônia de posse, que foi preparada e lida pelo jesuíta Leo O'Donovan, ex-presidente da Universidade de Georgetown de Washington.
No final da tarde (hora europeia), após Biden ter prestado juramento como 46º presidente dos Estados Unidos, o Papa Francisco enviou-lhe uma calorosa mensagem de bons votos para o novo compromisso institucional, breve mas não convencional: “Rezo para que as suas decisões sejam orientadas pelo preocupação pela construção de uma sociedade caracterizada por uma autêntica justiça e liberdade, junto com um respeito inabalável pelos direitos e pela dignidade de cada pessoa, especialmente os pobres, os vulneráveis e aqueles que não têm voz. Da mesma forma, peço a Deus, fonte de toda sabedoria e verdade, que oriente seu empenho de apoiar compreensão, reconciliação e paz nos Estados Unidos e entre as nações do mundo para levar avante o bem comum universal”.
O presidente da Conferência Episcopal dos Estados Unidos, J. Gomez, em uma manobra inusual, também enviou uma carta ao novo presidente - publicada logo após seu juramento. Comparado com o texto do Papa, aquele dos bispos estadunidenses mais que votos parece ser o programa declarado de uma oposição total em matéria de aborto, contracepção, casamento e gênero.
Como alguns comentaristas notaram, além da oportunidade de enviar (ao que parece pela primeira vez a um presidente que acaba de tomar posse) tal carta, o que é surpreendente é o pressuposto de que sobre essas questões entre os bispos católicos e o católico Biden não possa haver nenhum diálogo, nenhum confronto argumentativo, mas apenas a constatação de duas posições conflitantes - e que, portanto, o conflito só pode ser a única forma de relação institucional sobre o assunto. “O que eu não entendo - disse o card. Tobin, bispo de Newark - são as pessoas que usam tons extremamente duros e querem cortar todas as linhas de comunicação com o presidente por causa disso”.
A carta de Gomez pegou seus colegas bispos de surpresa, que a receberam apenas algumas horas antes de ser publicada, sem antes ter sido discutida coletivamente nos fóruns apropriados. O card. B. Cupich, arcebispo de Chicago, imediatamente tomou distâncias dela, julgando-a um texto mal concebido, que afirma a pretensão de ser uma palavra dos bispos sem que os bispos tenham podido expressar uma palavra em sua redação. R. McElroy, bispo de San Diego, em seu comunicado simplesmente ignorou a carta da Conferência Episcopal e se referiu à mensagem enviada pelo Papa Francisco com a qual ele se alinhava totalmente.
O tom e o estilo dizem mais do que palavras, como a capacidade de discernir ou não o uso destas últimas caso se opte por quebrar um protocolo estabelecido. Grande parte do corpo episcopal estadunidense tem tentado ficar no meio termo entre a mensagem papal e a carta de Gomez, equilibrando-se para não tornar a primeira obviamente irrelevante, encontrando-se representados na segunda. Nesse ponto, o católico Joe Biden pode legitimamente começar a se perguntar se realmente é ele o verdadeiro objeto da disputa, que continua a dividir a Igreja dos EUA, ou se não se trata de Francisco (alcançado via Biden pela Conferência Episcopal com sua carta).
Na batalha que coloca grande parte do corpo episcopal e do catolicismo estadunidense contra o Papa Francisco, Biden corre o risco de resultar uma vítima colateral. O papel de "grande reconciliador", de que a nação necessitaria desesperadamente, deveria ser assumido pela Igreja local, que não pode fazer isso porque há décadas decidiu desempenhar o papel de grande divisor. Caberá ao novo presidente assumi-lo, o que faz parte do seu mandato a nível político e social, mas certamente não no plano da Igreja a que pertence. A Conferência Episcopal não parece estar interessada em uma reconciliação do catolicismo estadunidense com o Papa Francisco e, portanto, com o próprio Biden - mas Biden certamente está.
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Biden e Francisco ... e os bispos dos EUA. Artigo de Marcello Neri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU