05 Abril 2019
O Papa Francisco nomeou o arcebispo Wilton Gregory para liderar a Arquidiocese de Washington, colocando o prelado que orientou o desenvolvimento dos procedimentos dos bispos dos Estados Unidos contra os abusos sexuais do clero no comando de uma Igreja que foi sacudida por escândalos de abuso no ano passado.
A reportagem é de Joshua J. McElwee e de Heidi Schlumpf, publicada em National Catholic Reporter, 04-04-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Ao transferir Gregory de Atlanta, Francisco também nomeou o primeiro arcebispo afro-americano para a capital da nação, colocando-o na fila para provavelmente se tornar o primeiro cardeal negro nos 230 anos de história da Igreja dos Estados Unidos.
Dom Wilton Gregory, novo arcebispo de Washington, nos Estados Unidos (Foto: Darron Cummings/AP Photo/CBS Chicago)
O anúncio da nomeação, que havia sido comentada na semana passada, foi feito no boletim diário do Vaticano no dia 4 de abril.
Gregory, 71 anos, atuava como arcebispo de Atlanta desde 2005.
Convertido ao catolicismo na adolescência, o arcebispo é natural de Chicago, onde trabalhou como padre antes de ser nomeado bispo auxiliar do falecido cardeal Joseph Bernardin. Mais tarde, ele atuou de 1994 a dezembro de 2004 como bispo de Belleville, no sul de Illinois.
Foi em Belleville que Gregory foi escolhido para liderar a Conferência dos Bispos dos Estados Unidos (USCCB, na sigla em inglês) para um mandato de três anos em 2001, colocando-o à frente do episcopado estadunidense quando a cobertura dos escândalos de abuso em Boston no início de 2002 levou a uma irrupção de protestos públicos sem precedentes.
Durante os meses seguintes, o então bispo moveu seus cerca de 300 colegas – incluindo arcebispos e cardeais mais velhos do que ele – no sentido de elaborar um documento para estabelecer procedimentos uniformes para lidar com os casos de abuso. Mais tarde, ele também conduziu negociações com o Vaticano para tornar alguns desses procedimentos como normas vinculantes da Igreja norte-americana.
Entre as criações Gregory está o National Review Board, uma comissão permanente liderada por leigos encarregada de monitorar a implementação por parte dos bispos dos novos procedimentos. Um dos seus membros originais elogiou a decisão do papa de nomear o ex-presidente nacional para assumir a Arquidiocese de Washington.
“Ele realmente fez um trabalho fenomenal como presidente ao enfrentar a crise dos abusos sexuais de menores”, disse Nicholas Cafardi, advogado civil e canônico e ex-decano da Faculdade de Direito da Duquesne University.
“Eu acho que o passado prevê o futuro”, disse Cafardi ao NCR. “A arquidiocese precisa de alguém que cure. Wilton é definitivamente um curador.”
Quem também elogiou Gregory foi Anne Burke, outro membro do primeiro National Review Board e natural de Chicago, que disse que ele nunca interferiu nas investigações por parte do conselho.
“Essa é uma lição que todos os outros bispos e cardeais dos Estados Unidos deveriam ter aprendido com ele: deixem que os leigos façam aquilo que sabem fazer melhor”, disse ela.
Gregory chega em Washington enquanto a arquidiocese se recupera de uma notável série de revelações ligadas à contínua crise dos abusos nos últimos 10 meses.
O último arcebispo, o cardeal Donald Wuerl, renunciou em outubro depois que um relatório do Grande Júri da Pensilvânia provocou protestos contra o modo como ele lidou com os padres abusivos no início dos anos 1990. Revelou-se que o seu antecessor, Theodore McCarrick, era um assediador sexual em série, tendo sido removido do prestigioso Colégio dos Cardeais da Igreja em julho passado, antes de ser demitido do clero por Francisco em fevereiro.
Um dos amigos de Gregory em Chicago disse que a sua nomeação a Washington representava uma “indicação perfeita” para a arquidiocese sitiada.
Em 2002, o arcebispo “falou a verdade” e foi “profético”, apesar da reação de outros prelados, disse a Ir. Anita Baird, das Filhas do Coração de Maria.
“Se os bispos tivessem avançado ainda mais, não estaríamos na situação em que estamos agora”, disse ela, referindo-se às discussões atuais dos bispos dos Estados Unidos sobre como atualizar os procedimentos de 2002 de autoria de Gregory, para fornecer um método transparente de denúncia de futuros prelados como McCarrick, que abusam do seu poder para prejudicar os outros.
John Carr, ex-diretor de longa data dos programas políticos nacionais e internacionais dos bispos dos Estados Unidos, que trabalhou com Gregory, chamou o arcebispo de “um líder cuidadoso, fiel, forte e inteligente”.
“Washington é ao mesmo tempo uma diocese desmoralizada e uma Igreja local vital e diversa”, disse Carr, que agora lidera a Initiative on Catholic Social Thought and Public Life, da Georgetown University.
“O arcebispo Gregory é um pastor que pode nos ajudar a lidar com a nossa mágoa e raiva, e é um líder que pode ajudar a renovar o nosso senso de missão”, disse.
Ele também será perito em navegar na política da capital do país, disse o Pe. Michael Pfleger, de Chicago, que conhece Gregory há décadas.
“Ele não apenas lidará com ela, mas também será uma verdadeira voz de consciência e fé nestes tempos em que eu acho que o nosso país sofre de uma laringite espiritual”, afirmou.
Gregory cresceu no South Side de Chicago, onde frequentou a St. Carthage Grammar School, hoje fechada. Ele atribui sua conversão ao catolicismo à influência das irmãs que dirigiam a instituição.
O futuro arcebispo frequentou o antigo Seminário Preparatório de Quigley e depois o Seminário de Mundelein. Foi ordenado padre aos 25 anos de idade pelo falecido cardeal John Cody, de Chicago, e obteve seu doutorado em liturgia no Pontifício Ateneu de Santo Anselmo, em Roma.
Após 10 anos de trabalho pastoral e de ser mestre de cerimônia de Cody e de seu sucessor, Bernardin, ele foi nomeado bispo auxiliar de Chicago pelo Papa João Paulo II em 1983 e bispo de Belleville pelo mesmo pontífice em 1993.
O Pe. Louis Cameli, um padre de Chicago que aconselha o atual cardeal da cidade, Blase Cupich, disse que Gregory adotou uma abordagem pastoral ao chegar a Belleville, uma pequena cidade do outro lado do Rio Mississippi, na divisa com St. Louis, que lhe serviu muito bem.
“Eles o amavam, porque ele já estava pronto para recebê-los e ouvi-los”, disse Cameli. “Esse é um dom que ele tem. Ele une as pessoas.”
“Ele é muito iluminado, tem um bom ouvido e ouve as pessoas”, disse o padre. “Eu nunca encontrei ninguém que trabalhe mais ou seja mais sincero do que ele ao tentar ajudar as pessoas.”
Raphael Middeke, que atuou como editor do jornal diocesano de Belleville com Gregory, disse que o então bispo estava conectado com os católicos do sul de Illinois.
“Ele interagia muito facilmente com as pessoas”, disse Middeke, descrevendo Gregory como “confiante e colaborativo”.
O ex-editor também elogiou a forma como Gregory lidou com os casos de abuso, mesmo antes de 2002, dizendo que ele era “muito decidido em estar aberto e abordar a questão de frente”.
Susan Reynolds, professora assistente de Estudos Católicos na Escola de Teologia Candler, na Emory University, disse ser grata pelos esforços de Gregory de se concentrar na justiça racial, tanto em Atlanta quanto antes.
A teóloga ressaltou o trabalho do arcebispo sobre a carta pastoral de 1984 entre aqueles que então eram os 10 bispos afro-americanos do país.
A carta, intitulada “O que vimos e ouvimos” [disponível aqui, em espanhol], enfocava a riqueza da experiência católica negra, apesar de uma história de servidão e racismo, e convocava aqueles que são “os filhos da dor a serem agora uma ponte de reconciliação”.
“Obviamente, seu legado como presidente da USCCB em 2002 (...) tem sido visto como a característica mais notável da sua biografia neste momento específico”, disse Reynolds. “Mas eu acho que o seu trabalho e as suas palavras sobre justiça racial são uma parte igualmente vital do seu legado.”
O Pe. Patrick Smith, que lidera uma paróquia em Washigton que remonta sua fundação aos esforços de um grupo de católicos negros emancipados em 1858, chamou a nomeação de Gregory de uma “fonte de esperança” para os afro-americanos.
“Ter como pastor-chefe da Igreja de Washington alguém que conhece em primeira mão o que é ser negro nos Estados Unidos e na Igreja (...) não tem precedentes”, disse Smith, pároco da Igreja de Santo Agostinho, no noroeste da cidade.
A nomeação de Gregory ocorre no 51º aniversário do assassinato de Martin Luther King Jr., em 1968.
Em uma homilia de 2018 em uma missa no feriado federal do ícone dos direitos civis, o arcebispo disse que a cena política do país hoje “é tão problemática quanto em 1968”. Ele mencionou em particular as revelações do movimento “MeToo” sobre o abuso de mulheres e o uso de slogans contra os migrantes.
Mas Gregory convocou as pessoas a terem esperança, apontando para as promessas que Jesus faz nas Bem-aventuranças.
“As Bem-aventuranças apresentam um ícone de esperança que deve sustentar a todos nós, até que Cristo seja tudo em todos”, disse o arcebispo. “Pois certamente ele vencerá, não apenas nas palavras de uma canção, mas no devido tempo, com uma vitória duradoura da justiça.”
Gregory chamou a atenção do público pela primeira vez em abril de 2002, quando, como presidente da Conferência Episcopal, foi chamado a Roma para participar de uma cúpula sem precedentes sobre o abuso sexual do clero, com o Papa João Paulo II e com 12 dos 13 cardeais estadunidenses.
Enquanto os prelados voltavam para casa, a revista Time nomeou Gregory como “Pessoa da Semana”, em 25 de abril de 2002, citando seu papel na reunião em Roma e como um dos primeiros bispos a falar sobre o abuso do clero como crime e a se desculpar diretamente aos sobreviventes.
Em uma reunião dos bispos dos Estados Unidos, realizada em Dallas em junho de 2002, Gregory obteve uma aprovação unânime da “Carta para a Proteção de Crianças e Jovens”, que promete que o clero acusado será “imediatamente” suspenso do ministério e que mesmo um único ato comprovado de abuso resultará na remoção permanente da pessoa.
Gregory conseguiu que as normas obrigatórias fossem aprovadas em uma reunião dos bispos em novembro de 2002, após o trabalho de uma comissão mista de autoridades vaticanas e de prelados dos Estados Unidos para responder a algumas preocupações do Vaticano sobre os novos procedimentos.
O Pe. Clete Kiley, padre de Chicago que trabalhou para a Conferência dos Bispos de 1997 a 2006 e foi membro daquela que originalmente era a Comissão Ad Hoc sobre Abusos Sexuais, elogiou Gregory como líder.
Kiley, que é amigo do arcebispo desde que eles estavam no seminário juntos, disse: “Se eu pudesse escolher alguém para Washington, eu teria escolhido Wilton, por causa do que ele fez sobre os abusos sexuais”.
O padre disse que Gregory “sempre teve os pés no chão”. Mencionando que o arcebispo fez seus estudos de doutorado em Roma, onde alguns padres podem desenvolver um senso de clericalismo, Kiley brincou: “Ele voltou normal”.
Chegando a Atlanta em 2005, Gregory supervisionou o boom do catolicismo na região, graças principalmente ao crescimento da cidade na segunda metade do século XX. Uma arquidiocese que contava com cerca de 31.000 católicos em 1960, chega agora a 1,15 milhão.
De fato, para a maioria das estatísticas, Washington, que abrange o território da capital do país e cinco condados no sul de Maryland, é uma arquidiocese menor do que Atlanta, que abrange toda a metade norte do Estado da Geórgia.
De acordo com o Anuário Pontifício 2019 do Vaticano, o diretório oficial da Igreja global, a Arquidiocese de Washington tem cerca de 2,3 milhões de habitantes, 659.000 das quais são católicas.
Mas, provavelmente devido ao seu status como sede de muitas ordens religiosas e de várias faculdades católicas, Washington tem muito mais clérigos do que Atlanta: mais do que o dobro do número de padres diocesanos, 389 contra 183; quatro vezes o número de padres religiosos, 460 contra 93; e quatro vezes o número de irmãs, 468 contra 82.
Gregory sofreu duras críticas em 2014, depois que a Arquidiocese de Atlanta gastou mais de 2 milhões de dólares para construir uma nova residência para o arcebispo, depois de receber uma doação de cerca de 15 milhões de dólares de um membro da família da autora de “E o vento levou”, Margaret Mitchell.
O arcebispo pediu desculpas pela decisão, escrevendo em uma edição de março de 2014 da sua coluna semanal, que ele não tinha levado totalmente em consideração o exemplo que estava dando ao aprovar a medida.
O território de Washington fazia parte originalmente da Arquidiocese de Baltimore, a primeira diocese católica do país. O Papa Pio XII criou uma Arquidiocese de Washington separada em 1939, mas encarregou o arcebispo de Baltimore, Michael Curley, de liderar ambas as dioceses.
A Arquidiocese de Washington recebeu sua primeira residencial arquiepiscopal em 1947, com a nomeação do arcebispo Patrick O’Boyle, que foi nomeado cardeal pelo Papa Paulo VI em 1967. Desde então, todos os arcebispos de Washington foram criados cardeais.
Parece improvável que Francisco opte por criar Gregory cardeal antes de Wuerl completar 80 anos, a idade em que os cardeais não podem mais participar de possíveis conclaves, em novembro de 2020.
Entre as outras pessoas que Gregory nomeou para participar do primeiro National Review Board dos bispos dos Estados Unidos está o ex-governador de Oklahoma, Frank Keating, que atuou como seu presidente fundador.
Keating recordou ter aceitado a nomeação de Gregory e lhe dizer na época: “Se fizermos isto certo, você nunca será cardeal, e eu nunca serei um Cavaleiro de Malta”.
Hoje, o ex-governador é membro dos Cavaleiros.
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Papa nomeia criador dos procedimentos antiabusos dos bispos dos EUA como arcebispo de Washington - Instituto Humanitas Unisinos - IHU