Pesquisa mostra que o Brasil e outros países periféricos atuam como um centro de extração de dados e acumulação de capital a partir da expansão das suas plataformas para os países vizinhos, promovendo um novo tipo de colonialismo
Com a ascensão da economia digital, o capitalismo de plataforma e a extração de dados se tornaram centrais na geopolítica global, reconfigurando as relações de poder econômico, político e epistemológico. O debate sobre "imperialismo de dados" ou "colonialismo de dados" é crucial para compreender como as plataformas do Norte Global reproduzem assimetrias históricas em relação ao Sul Global. No entanto, o olhar regional revela nuanças complexas: o Brasil, com sua posição de potência regional, emerge como um ator que, ao mesmo tempo que se subordina às potências centrais, projeta sua influência sobre países vizinhos.
Neste contexto, surge o conceito de subimperialismo de plataforma, desenvolvido pelo pesquisador Kenzo Soares Seto. A teoria evidencia a existência da expansão de plataformas de países do Sul Global, como o Brasil, para o domínio do mercado e da plataformização do trabalho em suas respectivas regiões de influência.
Em entrevista por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o professor discute como essa dinâmica se materializa, destacando o "papel do Brasil como hub de acumulação e extração de dados na América Latina". O pesquisador explica que o conceito busca entender como as plataformas com origem em países do Sul Global se expandem para outros países da mesma região, “em geral para aquelas regiões que historicamente já são esferas de influência dos países onde essas plataformas têm sede”. Seto resgata a teoria da dependência e o pensamento de Ruy Mauro Marini para evidenciar a ligação do fenômeno com o que Marini denominou “capitalismo dependente” no Brasil, um modelo marcado pela “superexploração do trabalho”.
Para Seto, a plataformização do trabalho no Brasil é “um prato cheio” para a expansão subimperialista. Ele exemplifica com a disputa de gigantes regionais, citando o iFood brasileiro contra concorrentes estrangeiros. “É o caso do Uber Eats, que abandonou o mercado brasileiro, que é o maior mercado do continente, porque não conseguiu concorrer com as práticas monopólicas do iFood – o iFood tem basicamente metade do mercado latino-americano em termos de receita de delivery”, salienta.
O pesquisador detalha a nova dimensão do subimperialismo: se o modelo clássico se baseava na industrialização tardia, o de plataforma adiciona a extração de dados. “Os dados dessas relações mediadas de trabalho e consumo de outros países latino-americanos são extraídos e enviados para o Brasil, onde vão alimentar o processo de pesquisa e desenvolvimento, os modelos de inteligência artificial e de big data”, pontua o professor.
A superexploração do trabalho, central ao modelo de Marini, se reflete nas condições do trabalho plataformizado, tornando-o “um trabalho globalmente precarizado”. Seto afirma que, “historicamente, a nossa condição estrutural de superexploração do trabalho precário é um prato cheio para o desenvolvimento de plataformas baseadas em trabalho precário”. Além disso, a precarização se intensifica pela ausência de regulamentação no Brasil. “Na ausência dessa regulação, a maioria das plataformas de trabalho brasileiras não garantem um salário mínimo, que é justamente essa definição do que é a superexploração”, complementa.
Kenzo Soares Seto (Foto: Reprodução/LinkedIn)
Kenzo Soares Seto é pesquisador residente na Yale Law School, Universidade de Yale, e fellow do Institute for the Cooperative Digital Economy (ICDE) da The New School. Foi servidor do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e professor na Escola de Comunicação da UFRJ, onde defendeu sua tese de doutorado “Muito Além do Vale do Silício: o imaginário dos trabalhadores da tecnologia no Brasil entre o subimperialismo de plataforma e os algoritmos dos oprimidos”, além de pesquisador visitante na Lisbon School of Economics. Por uma década foi também assessor parlamentar em nível municipal, estadual e no Congresso nacional, onde atuou no diálogo entre a sociedade civil e o parlamento sobre temas como a regulação das plataformas digitais.
IHU – Pode nos explicar o que é imperialismo de plataforma e como ele se organiza no contexto global?
Kenzo Soares Seto – Não existe um conceito isolado de imperialismo de plataforma. O que alguns autores mencionam é o imperialismo de dados ou imperialismo digital, categorias que têm suas especificidades, mas que em termos gerais estão muito próximos ao conceito de colonialismo de dados. O que é a reprodução a partir dos ecossistemas digitais, onde as plataformas ocupam um papel central, das assimetrias históricas nas relações de poder econômicas, e também políticas e epistemológicas, entre o que se convencionou chamar de Norte Global e Sul Global ou, mais recentemente, de mundo minoritário e mundo majoritário.
Historicamente, são os países centrais do capitalismo, os países imperialistas e os países periféricos, que anteriormente foram colônias. Alguns autores vão falar de imperialismo de dados quando consideram a extração dos dados digitais de sujeitos de países do Sul Global ou plataformas do Norte Global ou, ainda, o papel que os estados nacionais dos países imperialistas possuem em reforçar esse domínio do mercado digital dos países do Sul Global por meio das suas plataformas.
Existem autores que debatem como uma forma contemporânea de continuidade do imperialismo, por exemplo, as previsões extraterritoriais de marcos jurídicos legais da União Europeia, que acabam condicionando, nesse exemplo, os países da África a harmonizar seus regulamentos de dados à legislação europeia, de modo que seus mercados digitais permanecem subordinados aos padrões europeus de produção de dados. Enfim, em vez de desenvolverem projetos de governança, lógicas próprias de governança dos seus dados, no que seria talvez uma possibilidade de uma soberania digital, de uma soberania de dados nesses países.
Nesse contexto de debate sobre colonialismo de dados, colonialismo digital, imperialismo digital, imperialismo de dados, cada uma dessas diferentes categorias, embora sejam próximas, tem autores distintos que as mobilizam, que eu introduzo o debate de maneira original do subimperialismo de plataforma.
Então, se pegarmos o principal país imperialista no mundo, os Estados Unidos, as suas plataformas, ao expandirem os seus serviços e o seu alcance para países do terceiro mundo, inclusive o Brasil, reproduzem não só as relações econômicas de subordinação, mas inclusive relações políticas.
O Cloud Act, por exemplo, dos Estados Unidos, prevê que o Estado norte-americano se reserva o direito de poder ter acesso a qualquer informação de cidadãos, inclusive de outros Estados nacionais que estão hospedados naquelas nuvens. Assim, o Estado brasileiro, ao fazer uso de nuvens de grandes empresas norte-americanas, na prática está passível de ter seus dados extraídos, analisados e mobilizados pelo imperialismo norte-americano, para fins fins geopolíticos e até questões de espionagem industrial. É sempre necessário recordar o papel do caso Snowden e quanto ele trouxe de espionagem da Petrobras e mesmo do celular da então-presidenta Dilma Rousseff, por parte da Agência Norte-Americana de Segurança.
Outro exemplo é quando as plataformas de redes sociais norte-americanas contribuíram ativamente para influenciar a política interna em países, que resultaram em mudanças de regime. Podemos citar o papel que executivos do Google, da Alphabet, cumpriram durante a Primavera Árabe no Oriente Médio, sobretudo no Egito, ou do Twitter, em relação ao incentivo manifestações no Irã.
Com isso, podemos falar dessa articulação entre plataformas e imperialismo, que é absolutamente contemporânea.
IHU – O que seria o subimperialismo de plataforma?
Kenzo Soares Seto – Nesse contexto, onde a literatura e a discussão política estão muito centradas na expansão das plataformas norte-americanas ao redor do planeta, o conceito do subimperialismo de plataforma é, sobretudo, uma provocação a pensar que existem também, mesmo que não na mesma intensidade e sempre de forma, em algum grau, subordinada ao imperialismo central, relações de poder entre países do Sul Global e países do mundo majoritário.
Então, não podemos cair no erro de pensar que o Sul Global é um outro colonial homogêneo, que existe apenas em contraposição aos países do Norte Global. Ao contrário, o Sul Global é profundamente heterogêneo, onde existem, por exemplo, historicamente potências regionais, estados nacionais que buscam exercer, mesmo que não necessariamente se contrapondo aos países centrais, ao capitalismo dos Estados Unidos e às potências europeias, sua hegemonia, a sua influência sobre a sua região, como “sócios menores” na sua região do imperialismo central.
E o Brasil é um país – eu recupero o conceito de subimperialismo proposto incialmente por Ruy Mauro Marini – que cumpriu, historicamente, esse papel, de forma que os capitais brasileiros se expandiram para os outros países latino-americanos, para os vizinhos, que são ainda mais subdesenvolvidos do que o Brasil, que pelo seu desenvolvimento desigual combinado, tem características únicas no hemisfério Sul. O capitalismo brasileiro, embora seja dependente e não rompa com o domínio dos capitais estrangeiros dos Estados Unidos e da Europa, se associa [ao capital estrangeiro imperialista] e, ao mesmo tempo, se expande para outros países.
Quais são essas relações de poder entre países do Sul Global que ocorrem no contexto da economia digital? É o fato – e esse é o centro do conceito de subimperialismo de plataforma – de que existe a expansão de plataformas de países do Sul Global para o domínio do mercado regional, para o domínio também dos países vizinhos aos países onde elas inicialmente emergiram e onde ficam suas sedes. Portanto, se a maioria da literatura sobre capitalismo de plataforma foca na dominação de plataformas do Norte Global, o conceito de subimperialismo de plataforma busca entender como as plataformas e os capitais associados a essa plataformização da economia com origem em países do Sul Global se expandem para outros países do Sul Global, em geral para aquelas regiões que historicamente já são esferas de influência dos países onde essas plataformas têm sede.
Eu propus esse conceito inicialmente para entender o Brasil disputa o mercado latino-americano por plataformas que organizam trabalho, sobretudo trabalho de delivery inicialmente, mas que depois se expandiram para mediar diversas formas de trabalho e mercados. Existe uma disputa na América Latina por quais plataformas com origem na região, com capital que muitas vezes é associado ao capital estrangeiro, mas que tem parte significativa de capitais nacionais de países latino-americanos, vão disputar o mercado continental. Eu dou exemplo do iFood brasileiro que disputa com o Rappi o mercado de delivery latino-americano.
É importante destacar que, embora a existência dessas plataformas não signifique que o Brasil, a Colômbia ou outros países, mas sobretudo o Brasil, estão rompendo com a sua dependência das plataformas e da infraestrutura tecnológica dos Estados Unidos e do Norte Global como um todo, elas são fortes o bastante para, nos seus nichos, por exemplo, derrotar, rivalizar com plataformas do Norte Global. É o caso do Uber Eats, que abandonou o mercado brasileiro, que é o maior mercado do continente, porque não conseguiu concorrer com as práticas monopólicas do iFood – o iFood tem basicamente metade do mercado latino-americano em termos de receita de delivery.
Essa noção que eu propus inicialmente para o Brasil, outros pesquisadores em diálogo, a partir da minha proposição original, se apropriaram para pensar também em países como a Turquia e a China. No Sudeste Asiático também há essa expansão de plataformas de alguns países da região para seus vizinhos.
Na minha proposta original, eu pensava como o Brasil atua como um hub, um centro de extração de dados e acumulação de capital de outros países latino-americanos, a partir da expansão das suas plataformas para os países vizinhos, onde esse conceito de subimperalismo é retomado, como eu já mencionei, do Marini, mas pensando a partir agora da interseção entre capitalismo dependente e capitalismo de plataforma. O que ocorre quando uma plataforma brasileira, como no exemplo do iFood, se expande para outros mercados, ela passa não só a organizar relações de trabalho e de extração de valor, mas uma nova dimensão que o subimperalismo clássico, que era baseado na industrialização tardia brasileira, não possuía, que é a dimensão da extração de dados. Então, os dados dessas relações mediadas de trabalho e consumo de outros países latino-americanos são extraídos e enviados para o Brasil, onde vão alimentar o processo de pesquisa e desenvolvimento, os modelos de inteligência artificial e de big data.
É claro que isso é sempre um retrato, eu não estou dizendo que isso é um processo necessariamente consolidado, porque um elemento importante no debate do subimperialismo brasileiro é que ele é um processo sujeito a flutuações históricas muito grandes. A economia brasileira vive ciclos de expansão e retração que são associados também à sua capacidade de maior projeção de poder ou menor projeção de poder, que também é diretamente ligado à instabilidade do regime político brasileiro. Então, existem momentos onde o Brasil consegue projetar mais poder internacionalmente, seja para a América Latina, seja mesmo para a África, e momentos onde se torna menos capaz e mais submisso aos interesses dos países centrais do capitalismo.
Depois de mim, tem autores como o Özgür Yilmaz, que estendeu a discussão do subimperialismo de plataforma proposta por mim para pensar a China. Ele analisa plataformas, como, o WeChat, o TikTok e o Weibo, se integram a uma estratégia dirigida pelo Estado chinês, que de tanto querer garantir autonomia tecnológica contra a dominação geopolítica, atua como vetores de influências chinesas na região da Ásia em geral. E existem autores que investigam como as plataformas turcas se expandem para países vizinhos.
Não por acaso, essa discussão está tomando forma naqueles países que historicamente são potências regionais. Embora a China agora seja mais que uma potência regional, historicamente, em momentos anteriores, foi uma das maiores potências da região. Enfim, temos que pensar a Turquia, o Brasil e todo esse debate inserido também no marco do BRICS.
IHU – Quais os principais países do Sul Global que praticam esse subimperialismo de plataforma e que diferenças há entre eles?
Kenzo Soares Seto – Eu já abordei na resposta anterior. Mas o fenômeno central que estou tentando entender é esse processo de expansão de plataformas de países no Sul Global para os seus países vizinhos.
Nesse sentido, as diferenças entre a China, a Turquia, o Brasil e outros países como Malásia e Indonésia, é que a China se diferencia de todos os demais, porque consegue projetar seu poder agora cada vez mais em escala planetária. A China talvez, embora ainda não seja um país imperialista – isso é uma polêmica teórica que eu não vou entrar, mas certamente não é como os Estados Unidos, um país hegemônico na ordem global – busque, no futuro próximo, disputar diretamente com os Estados Unidos para essa primazia de construção de hegemonia. Não é o caso da Turquia e do Brasil ou dos países do Sudeste Asiático, que são atores regionais.
IHU – Como o Brasil assumiu, no contexto latino-americano, um papel central no imperialismo de dados e na plataformização do trabalho?
Kenzo Soares Seto – Para entender a centralidade brasileira no contexto latino-americano, a relevância do conceito de subimperialismo de plataforma é recuperar essa perspectiva epistemológica latino-americana da teoria da dependência e, sobretudo, nesse caso do pensamento do Marini, para entender como é que os países do terceiro mundo, ex-colônias, se diferenciaram. Assim, para compreender essa centralidade na economia de plataforma e de dados, precisamos entender a centralidade que o Brasil já tem desde a industrialização tardia de alguns países do terceiro mundo, enquanto outros não se industrializaram nem tardiamente. É tentar compreender essas nuanças: por que algumas economias, mesmo se mantendo dependentes na América Latina, sofrem um processo de desenvolvimento relativo que foi vedado a outros países coloniais, como, por exemplo, quase todo o continente africano ou muito dos nossos vizinhos latino-americanos.
O que o Marini vai dizer é que a industrialização sul-americana não rompe com a dependência, mas permite a formação de capitais próprios a partir da superexploração do trabalho, que é um elemento fundamental para entender a plataformização da economia latino-americana. O que é essa superexploração, segundo o Marini? É o fato de que na América Latina, sobretudo no Brasil, o valor da força de trabalho está sempre abaixo do necessário para a reprodução dos trabalhadores, das suas necessidades por meio do mercado formal. Isso significa que a mão de obra é muito mais barata do que comparada aos países centrais do capitalismo.
Significa também que isso se trata de um processo de extração de mais-valia absoluta que reproduz a precariedade, a desigualdade profunda das sociedades latino-americanas. Trata-se de uma parcela enorme da força de trabalho que está praticamente na miséria, aquém do trabalho formalizado.
Isso é muito atual no Brasil. Tem um número enorme de trabalhadores que não conseguem ter o mínimo das suas necessidades socialmente estabelecidas, garantidas, a partir dos seus salários. São os salários de fome, que vão dar conta da satisfação das necessidades de outras maneiras, como, por exemplo, o processo de autoconstrução das casas nas favelas – mas esse é outro debate.
O que o Marini fala é que essa é uma industrialização muito limitada, porque, se a maioria dos trabalhadores são superexplorados, o mercado doméstico não tem condições de absorver toda a demanda dessa industrialização. Mas, ao mesmo tempo, em grande parte não tem condições de disputar o mercado dos países centrais. Os países centrais não estão dispostos a permitir que, de forma geral, os produtos das indústrias do Sul Global ganhem seus mercados. De forma que necessita se expandir para os seus vizinhos.
O fato da superexploração fazer com que a maioria dos trabalhadores de um país como o Brasil não tenha um enorme poder de compra e não estejam inseridos no mercado formal faz com que os capitais brasileiros busquem se expandir para os seus vizinhos. E isso acontece também no mercado de plataforma.
Isso significa que o Brasil, diferentemente de outros países latino-americanos, tem capacidade de acumulação de capitais a partir da superexploração, do seu volume de superexploração, porque o Brasil é uma das maiores economias do mundo, tem 200 milhões de habitantes. Isto se pactua com o desenvolvimento desigual e combinado da burguesia brasileira, associada ao capital estrangeiro, que também é atraído para essa superexploração e busca se reproduzir. Esses aspectos fazem com que tenhamos condições muito únicas, comparado aos nossos vizinhos latino-americanos, de investimento em tecnologia e, sobretudo, tecnologia da informação.
O Brasil tem uma infraestrutura robusta de internet e tem supercomputadores – os maiores de todo o hemisfério sul e dedicados integralmente, por exemplo, a desenvolvimento de inteligência artificial da América Latina. Então, o mercado doméstico, por mais baixo que seja, dá condições para a expansão de plataformas como o iFood. E, ao mesmo tempo, permite com que, mesmo num país onde a maioria das pessoas são superexploradas, tenha centros de produção de conhecimento e formação de mão de obra qualificada, permitindo que o país tenha o maior contingente de trabalhadores da tecnologia da informação (cientistas de dados, engenheiros de software, cientistas da computação etc.) em relação a qualquer outro país latino-americano.
O que possibilita a inserção do país na cadeia produtiva global da economia de plataforma, da economia digital como um todo, não só a partir do trabalho precário, que certamente existe, por isso que as nossas plataformas são sobretudo plataformas de trabalho, que se organizam a partir do trabalho precário, mas também a partir de dimensões mais qualificadas, que é esse trabalho associado à análise de dados. Se outros países da América Latina são mais diretamente colônias digitais, onde toda a produção de dados [é exportada], com esses dados extraídos, processados e analisados, vão se tornar informação valiosa apenas nos países centrais, no caso do Brasil não é assim. O Brasil tem uma força de trabalho capaz, infraestrutura e capital mínimo necessários para desenvolver qualquer etapa de análise desses dados, não só de extração.
Em suma, o Brasil, a partir do seu desenvolvimento desigual e combinado, que se expressa, segundo o Marini, no seu papel subimperialista na América Latina, tem os capitais que vencem a competição com os capitais de outros países, como Argentina e México, durante a industrialização tardia dos países latino-americanos. Embora eles estejam sempre associados, não rompam com os capitais dos Estados Unidos e da Europa, eles conseguem ampliar [seus capitais] para os mercados domésticos de outros países. Isso faz com que o Brasil tenha capacidade de investimento nessa economia da informação e nesse mercado de plataformizado. Por exemplo, o Brasil, desde 2008, apresenta um saldo comercial na escala de US$ 20 bilhões e as receitas de remessas de lucros e juros de países da América Latina saltaram de US$ 3 bilhões para US$ 12 bilhões para o Brasil em cerca de 4,5 anos.
O Brasil possui, pela superexploração da força de trabalho, um ambiente muito propício para o desenvolvimento de um trabalho plataformizado, que, historicamente, é um trabalho precário. Então um elemento fundamental para entender que, se nos países do capitalismo central, na América e na Europa, a precarização associada à plataformização do trabalho é relativamente uma novidade histórica, comparada ao padrão de trabalho razoavelmente digno para os cidadãos europeus, norte-americanos, não para os imigrantes, é claro. Durante os 30 anos gloriosos existia o estado de bem-estar social europeu, por exemplo, e no Brasil, não.
Historicamente, a nossa condição estrutural de superexploração do trabalho precário é um prato cheio para o desenvolvimento de plataformas de trabalho baseadas em trabalho precário. Mas, ao mesmo tempo, em função de um âmbito desigual e combinado, esse trabalho precário se combina com o trabalho qualificado, que também é precarizado comparado aos países do Norte Global, mas que é um trabalho qualificado de trabalhadores que vão trabalhar como cientistas de dados, engenheiros de dados etc. na parte mais sofisticada de análise desses dados e desenvolvimento de modelos que analisam esses dados e que agregam valor econômico a esses dados numa camada mais sofisticada.
Ou seja, estão produzindo inteligência para as próprias plataformas, para a otimização contínua dos seus modelos. Então, o algoritmo dessas plataformas, como o do iFood, se torna mais eficiente. Assim, vem oferecendo esses dados, as informações produzidas a partir da análise desses dados, para terceiros. Seja utilizando esses dados para o treinamento de modelos que vão ser ofertados como desenvolvimento de inteligência artificial, seja como um produto.
A centralidade brasileira pode ser constatada, por exemplo, quando olhamos para ver quem são as empresas “unicórnios” brasileiras, as empresas do país, as empresas latino-americanas na área de tecnologia e as plataformas latino-americanas avaliadas em mais de um bilhão de dólares. De todas as plataformas latino-americanas avaliadas em mais de um bilhão de dólares, 27 delas se concentram no Brasil. O Brasil é, no Sul Global, depois da Índia e da China, um dos países que mais concentram a sede de plataformas digitais.
A plataformização do trabalho latino-americano ocorre nesse contexto histórico de superexploração estrutural que favorece, portanto, a expansão de plataformas de trabalho na América Latina, em comparação, por exemplo, a países do Norte Global. Os relatórios da Fairwork, que avaliam as condições de trabalho, indicam que o Brasil possui, repetidamente, ao longo dos anos, as piores condições de trabalho de plataforma do planeta. O que se configura em uma vantagem comparativa para essas plataformas que surgem domesticamente.
Falando do iFood, que é o que eu menciono no artigo original, estamos falando de 360 mil trabalhadores e 1.700 cidades em quatro países. É uma força de trabalho significativa, capaz de rivalizar e expulsar o Uber Eats do Brasil.
IHU – Como o subimperialismo de plataforma brasileiro está associado a um tema e conceito que não é nada novo o “capitalismo independente”, mas, aparentemente, ainda em vigor no país?
Kenzo Soares Seto – Essa pergunta eu já respondi, mas retomando: o subimperalismo de plataforma é resultado da interseção do capitalismo dependente brasileiro com o capitalismo de plataforma, onde a superexploração que caracteriza a formação de capitais brasileiros permite com que eles se expandam associados, agora, a essa nova dimensão em relação ao subimperialismo histórico, que o capitalismo independente não tinha anteriormente, que é o processo de extração de dados, em função do valor econômico que esses dados passam a ter.
IHU – Do ponto de vista dos trabalhadores, como a plataformização impacta não somente nos regimes de trabalho, mas também na remuneração?
Kenzo Soares Seto – Para explicar, preciso dizer como Marini interpreta a superexploração do trabalho. Para o autor, é a eliminação de barreiras à acumulação do capital que tinham sido estabelecidas pela luta dos trabalhadores, como, por exemplo, jornadas de trabalho fixas e salários fixos. Ou seja, uma expectativa clara para o trabalhador de jornada de remuneração. E o processo que o Marini já falava, de imposição aos trabalhadores dos custos da sua própria atividade de trabalho. Esses todos são mecanismos de expansão da taxa de mais-valia que está no centro dessa superexploração. Os trabalhadores latino-americanos têm menos capacidade, pelas razões históricas da herança do colonialismo em função do imperialismo, de impor barreiras à acumulação do capital comparado aos países imperialistas.
Essa expressão contemporânea do capitalismo independente se materializa por meio do trabalho de plataforma. Reitero: as plataformas latino-americanas possuem as piores condições de trabalho de plataforma do planeta, no que já é um trabalho globalmente precarizado.
A gente rebaliza, às vezes, no ranking da Fairwork, mas o Brasil só não é pior que Bangladesh – é interessante aprofundar o tema a partir do Sudeste Asiático; deixo como sugestão. São empresas que não garantem o salário mínimo, mesmo o iFood, considerando a jornada de trabalho.
Agora, a partir da regulação do trabalho de plataforma em outros países latino-americanos, como México, Chile, Uruguai e Colômbia que conseguiram aprovar uma regulação, é importante mencionar que o Brasil está ficando para trás e não conseguiu regulamentar o trabalho de plataforma. Os demais países estão avançando mais do que aqui e buscam conseguir se contrapor a isso, mas, na ausência dessa regulação, a maioria das plataformas de trabalho brasileiras não garante um salário mínimo, que é justamente essa definição do que é a superexploração, que é um pagamento abaixo do necessário à reprodução da força de trabalho, como dizia o Marini.
Então, não há expectativas claras de remuneração, embora seja necessário ressaltar que há desigualdades regionais. Por exemplo, no Sudeste, segundo os dados do IBGE por meio da PNAD Contínua, os trabalhadores de plataforma ganham menos, em média, do que os trabalhadores em geral. Não é a realidade do Nordeste brasileiro. No Nordeste, os trabalhadores de plataforma ganham acima da média dos trabalhadores, em geral. O que demonstra o quanto, mesmo dentro do Brasil, a questão meridional, como diria o Gramsci, mas no nosso caso, a questão setentrional, de desigualdade interna do Brasil e em outros países continentais, como a Rússia, tem essas desigualdades nas condições de trabalho.
Além do regime de trabalho, você perguntou da remuneração: não há previsibilidade de jornada e, conforme esse processo se expande, latino-americanamente existem desigualdades internas em função dessa posição que os países latino-americanos têm na cadeia global de poder, o quanto mais vulneráveis, mais subalternos eles são na ordem global.
Na Bolívia, 80% do trabalho é informal, no Chile é 30%, mas o trabalho de plataforma, tanto no Chile quanto na Bolívia, embora o trabalho em geral tenha diferenças gritantes de formalização, é igualmente informal em todos esses países. Isto é, mesmo no Chile, onde 70% dos trabalhadores em geral têm trabalho formal, 95% dos trabalhadores de plataforma, segundo a Organização Mundial do Trabalho, têm trabalho informal. Veja que interessante: mesmo em países que conseguiram ter mais formalização historicamente, o trabalho de plataforma destrói a formalização do trabalho.
Isso ocorre porque existe uma competição entre as próprias plataformas que homogeniza esse mercado de trabalho para ser precarizado. Na Argentina, tinha a PedidosJá, que depois inclusive o iFood comprou as operações e PedidosJá no Uruguai, evidenciando que parte do processo de expansão é a compra de plataformas nacionais por plataformas subimperialistas, como no caso do iFood, que mencionei acima.
A PedidosJá inicialmente tinha contratado na Argentina trabalhadores em regime formal, inclusive com delegados sindicais. Depois que o mercado argentino sofreu a entrada de plataformas latino-americanas de outros países, a PedidosJá, quando viu que as outras plataformas latino-americanas estavam tendo trabalho precarizado, também mudou. Demitiu seus trabalhadores que tinham sido empregados formalmente e passou a ter trabalhadores no modelo autônomo.
No Brasil, por exemplo, o APPJusto, que era uma proposta de uma plataforma que garantiria, como diz o seu nome, trabalho digno, colapsou porque não tinha condições de ter um modelo de negócio sustentável, ou seja, não baseado em superexploração, que pagasse um salário digno e direitos trabalhistas. O APPJusto é um fracasso que mostra quanto a superexploração é estrutural ao mercado de trabalho de plataforma na América Latina. Mesmo quando algum capitalista individual quer mudar esse padrão, ele não consegue.
É claro que tem o debate do cooperativismo de plataforma, mas se não houver ação decisiva do Estado brasileiro, não tem como mudar isso. E um elemento fundamental que demonstra essa relação, essa conexão entre superexploração, barbárie e trabalho de plataforma, é o quanto crises humanitárias favorecem o trabalho de plataforma. O maior exemplo é a Venezuela. Os trabalhadores venezuelanos, os imigrantes venezuelanos, são grande parte dos trabalhadores de plataforma em toda a América Latina. Dados de pesquisadores como Miguel Menéndez mostram que os venezuelanos são 67% dos trabalhadores de delivery no Peru, são 69% dos trabalhadores de delivery no Equador, 48% dos trabalhadores de delivery na Argentina. E isso é uma coisa muito perversa.
Os trabalhadores venezuelanos de plataforma na Argentina em média tem ensino superior, mas não conseguem se inserir em outras modalidades mais qualificadas de emprego e acabam trabalhando para as plataformas.
Existe uma associação intensa também entre, por exemplo, a expansão da plataformização do trabalho e a desregulamentação do trabalho. No Brasil, o marco é a contrarreforma trabalhista do governo Michel Temer. Em marcos mais globais, a crise econômica de 2008 é um ponto fundamental de expansão das plataformas digitais num contexto de desregulamentação do trabalho e dos controles sobre o capitalismo. Utilizando aquele termo da Naomi Klein, o conceito de capitalismo de desastre, capitalismo da doutrina de choque, acho que o capitalismo de plataforma tem uma íntima associação com o capitalismo de desastre, onde as elites exploram momentos de crise para impor políticas de desregulamentação, de violência contra o trabalhador que o obriga a se sujeitar a relações de superexploração. A crise migratória venezuelana é só um exemplo.
Estamos falando de condições muito precárias de remuneração de trabalho: 61% dos trabalhadores latino-americanos, segundo relatório da Organização Mundial do Trabalho, dependem exclusiva ou principalmente dos ganhos que fazem nas plataformas para sua sobrevivência. Então, 61% desses trabalhadores têm como principal fonte de remuneração o trabalho de plataforma. Eles trabalham em média sete horas por dia, embora 1/3 dos trabalhadores latino-americanos trabalhem mais de nove horas por dia. Isto é, 35% dos trabalhadores peruanos trabalham 13 horas por dia e 70% dos trabalhadores de delivery brasileiros trabalham mais de oito horas, sete dias por semana.
Por isso a importância do debate do fim da escala 6x1. Embora seja ainda focada no debate da pauta do trabalho formal, da CLT, nós temos que debater a dignidade de trabalho para todos, independentemente do regime de trabalho. Porque 70% dos trabalhadores brasileiros trabalham mais de oito horas por dia, sete dias por semana.
Os trabalhadores argentinos e chilenos, segundo os dados do Fairwork, por exemplo, trabalham mais de 45 horas por semana. E esses trabalhadores se sujeitam a essa remuneração muito abaixo da média dos demais trabalhadores, com exceção de especificidades regionais, como eu mencionei, do Nordeste. São trabalhadores majoritariamente muito jovens, em média, em todos esses países, os trabalhadores têm em torno dos 20, 30 anos, principalmente os entregadores – os motoristas de aplicativos costumam ser um pouco mais velhos que os entregadores.
Em países como, a República Dominicana, 70% dos entregadores têm menos de 30 anos. Os trabalhadores de plataforma da Bolívia, da plataformização das tarefas de cuidado, principalmente babás, que a idade média é de 26 anos. São todos dados da Organização Mundial do Trabalho.
Há marcadores também de gênero, que são importantes falarmos. 90% dos trabalhadores de tarefas domésticas plataformizados da América Latina, como cuidado e limpeza, são mulheres. Enquanto no delivery e no transporte aplicativo são majoritariamente homens. Na plataformização do trabalho sexual, é a única categoria onde, infelizmente, trabalhadores LGBTQIA+ se destacam. Nos relatórios da Fairwork há marcadores de gênero, de identidade de gênero e de sexualidade.
Há também os dados sobre raça, que é importante mencionar. É um trabalho profundamente racializado. A maioria dos trabalhadores de delivery e de trabalho doméstico plataformizado no Brasil são pessoas negras, pretas e pardas. Então, se em alguns países se destaca essa questão da migração, que geralmente associamos muito à Europa e aos Estados Unidos, mas já ocorre aqui na América Latina, como exemplo que eu falei dos venezuelanos.
IHU – Como as plataformas subimperialistas competem com aquelas de caráter global ou, para usar o termo da entrevista, “plataformas imperialistas”? Quem ganha e quem perde nessa disputa?
Kenzo Soares Seto – O ex-CEO do iFood, Fabricio Bloisi, tem uma frase que eu acho que resume essa questão: o trabalhador do iFood, o entregador do iFood, entrega na metade do tempo e com um custo três vezes menor do que o entregador das plataformas norte-americanas. Esse é um elemento fundamental.
No momento em que há disponibilidade de capital doméstico, capital financeiro e bancário – o Itaú foi um investidor importante no início do iFood – sempre associado ao capital estrangeiro, como SoftBank japonês, o fundo fundamental de investimento nas plataformas “unicórnios” latino-americanas, elas tiveram condições estruturais da superexploração do trabalho para se desenvolverem.
Essas plataformas regionais são plataformas de trabalho. Se pensarmos a inserção das plataformas que eu descrevo como subimperialistas, não só na América Latina, mas também na Turquia e no Sudeste Asiático, embora a Ásia seja diferente da América Latina, elas não estão disputando os serviços de infraestrutura mais básicos daquilo que o José Van Dijck descreve como a metáfora da árvore [1], as camadas mais profundas das diversas camadas que os ecossistemas digitais dependem.
Como é que o iFood domina 39% do mercado latino-americano de delivery? Porque os efeitos, ao crescer endogenamente, antes que as plataformas estrangeiras chegassem, conseguiu construir um controle quase monopólico do mercado brasileiro, que é o principal mercado da América Latina. É muito interessante ver que a Rappi e o Uber Eats [percam o mercado latino-americano]. É uma ironia de que o Uber tente processar no Conselho de Administração de Defesa Econômica – CADE o iFood por práticas monopólicas anticoncorrenciais. Portanto, temos um grande monopólio digital do Norte Global, acusando uma plataforma brasileira de práticas monopólicas anticoncorrenciais.
O iFood tentava garantir contratos de exclusividade com restaurantes, fazendo guerra tarifária. Assim, conseguia ofertar as promoções que fidelizam os consumidores, que são muito baratas. Às vezes, competia diretamente com os próprios restaurantes – antes oferecia refeições diretamente a partir das dark kitchens.
Os efeitos de rede beneficiam atores domésticos que se consolidaram antes da entrada de plataformas estrangeiras nesse mercado doméstico nacional. E depois, a partir do know-how, do capital acumulado, do controle do mercado doméstico brasileiro que é gigantesco, apesar de constrangido pela superexploração, conseguiu se expandir para o restante da América Latina.
Basicamente, o que essas plataformas fizeram foi emular um modelo de plataformas estrangeiras, mas com a vantagem desses efeitos de rede domésticos permitindo que elas saíssem na frente das plataformas estrangeiras e nos seus mercados domésticos. Com isso, amadureceu um modelo de negócio que permitiu que elas se expandissem para países vizinhos e também, além da vantagem histórica da superexploração do trabalho, onde os capitais brasileiros e a governança do trabalho brasileiro já estão acostumados com relação a essas outras plataformas.
Quem é que ganha e quem é que perde com isso? Todo mundo perde, só ganham as plataformas. Há um controle monopólico do mercado de delivery brasileiro que faz com que o iFood consiga impor pesadas perdas para todos os demais atores do ecossistema. Os restaurantes perdem porque se tornam dependentes – ainda mais depois da pandemia, mas sobretudo durante a pandemia – do iFood, mesmo quando possuem trabalhadores e entregadores próprios, porque o iFood é esse ator de mediação, que funciona como marketplace. Portanto, os restaurantes não conseguem chegar ao cliente sem passar pelo iFood, embora exista um movimento agora de tentativas de construção de aplicativos próprios, principalmente a partir de soluções White Label [2] que cada restaurante adapta e tal, mas isso ainda é marginal, não ameaça o iFood. Perdem além dos restaurantes, perdem os trabalhadores que se sujeitam a superexploração. Além disso, perdem também os usuários, porque depois que estão fidelizados, se inicialmente a plataforma oferece algumas vantagens econômicas, como descontos, cupons etc., na prática, os clientes também estão pagando mais do que se pagassem diretamente, sem a intermediação do iFood, aos restaurantes. Então, tem o trabalho precarizado, o restaurante tendo que subir o preço para pagar uma grana que vai para o iFood e o usuário pagando mais.
Estamos falando só do iFood, mas esse modelo se expandiu, por exemplo, para o Get Ninja, que fazia uma plataformização das mais diversas atividades. Há outras plataformas, como o Vinteconto [plataforma de freelancers], que plataformizam mais trabalho remoto.
É importante recordar que o trabalho remoto, de nuvem e de microdados, organiza um volume ainda maior de trabalhadores do que os motoristas de aplicativos e do que o de trabalhadores de delivery. Há estimativas na América Latina que o trabalho de nuvem organiza mais pessoas do que o trabalho de delivery e de entregador. Isso mostra que as plataformas latino-americanas estão se expandindo para além do trabalho de delivery e de Uber.
Há plataformas de cloud [de nuvem], por exemplo, segundo estimativas do Banco Mundial, que mobilizam 46 milhões de trabalhadores de trabalho plataformizado remoto na América Latina. No Brasil, há 15 milhões, 8,5 milhões no México, 5 milhões na Argentina, 5 milhões na Colômbia e entre 1 e 2 milhões no Peru, no Chile, Equador, Venezuela, Guatemala, entre outros 12 países, além desses que citei. É uma porcentagem muito grande.
Se no trabalho remoto ainda existe uma hegemonia, diferente do trabalho de delivery de motoristas de plataformas do Norte Global, já começam a surgir plataformas também latino-americanas, como na Argentina o Workana, e no Brasil o Vintepila.
IHU – Como a prática subimperialista de plataformização do trabalho e de captura de dados impacta no desenvolvimento de soluções tecnológicas em países periféricos?
Kenzo Soares Seto – A prática subimperialista complexifica a discussão que estava muito centrada em perceber a América Latina como um todo, de maneira homogênea, como uma colônia digital que apenas consome serviços digitais, exporta dados para plataformas do Norte Global.
O subimperialismo de plataforma reforça a centralidade relativa que o Brasil tem comparado a outros países latino-americanos e outros países do Sul Global, como a maior parte dos países africanos, inclusive países de população semelhante à brasileira, em termos da sua capacidade de desenvolvimento da indústria de tecnologia e da informação. Então, só uma empresa como o próprio iFood informa, não tem como auditar esses dados, mas está falando de 20 bilhões mensais de registros de dados de operações. Esses dados são todos, de todas as suas operações no continente, transferidos para sua sede no estado de São Paulo, onde seus cientistas de dados vão analisar. Esses dados são para o desenvolvimento de inteligência artificial – o iFood menciona investimentos de cerca de R$ 2 bilhões em desenvolvimento de inteligência artificial nos próximos dois anos.
Um exemplo dessa centralidade brasileira é que o único hub, entre os 25 maiores hubs de fluxos de dados, de intermediação de dados globais que aparecem na América do Sul e na América Latina como um todo, é São Paulo, que é a sede da maior parte dessas plataformas.
Ela reforça o fato de que a indústria da tecnologia da informação brasileira, embora não consiga competir com o Norte Global, com o estado da arte do desenvolvimento de inteligência artificial no Norte Global, comparado ao resto do Sul Global, está muito à frente. Mas também reforça um perfil muito perverso de desenvolvimento nacional, onde mesmo quando o Brasil tem alguma capacidade de desenvolvimento de tecnologia da informação, de aprofundamento de seus ecossistemas digitais, [o desenvolvimento] se dá de maneira a reforçar a inserção histórica no mercado global, ou seja, baseada em superexploração do trabalho e em trabalho precarizado.
Mas não só. Saindo um pouco do trabalho de plataforma, se pensarmos onde os investimentos em inteligência artificial acontecem no Brasil – tem um outro artigo que se chama AI from the South em que trago esses dados –, vamos ver que eles se concentram no setor de óleo e gás, no setor de mineração, no agronegócio, em algum grau, no trabalho de plataforma, como eu já mencionei no iFood, no setor bancário e financeiro, mas são majoritariamente setores que reforçam a lógica extrativista, subordinada, de inserção da economia brasileira.
Então, por um lado, o subimperialismo de plataforma faz com que estejamos melhor do que em outros países do terceiro mundo, mas não é um caminho que rompa com a nossa subordinação e com a nossa dependência histórica. Inclusive, existe o risco político, como em outros momentos da história, de que o Estado brasileiro aposte nessas plataformas que se organizam em torno de trabalho precário para serem campeões nacionais. Nos próprios debates sobre a regulação do trabalho, o que se dá é uma contraposição entre o lobby das empresas globais e, às vezes, de empresas nacionais como o iFood.
Apoiar a expansão de plataformas brasileiras que são baseadas em trabalho precário coloca uma questão de que o nosso horizonte não é de enfrentamento a big techs, que são baseadas em condições precárias de trabalho independente de qual é a bandeira nacional que fica no topo das suas sedes, de onde estão localizadas.
Todas essas plataformas, do Norte e do Sul Global, mesmo quando estão sob o controle de grupos financeiros locais, como no caso do iFood, estão em um nexo de capital global, de fluxos de capital e de fluxos de dados que é profundamente internacionalizado e que muitas vezes tem um caráter efêmero. Lembremos da 99, que tinha 300 mil motoristas e foi comprada pelo DiDi, empresa chinesa.
Nada garante que se o BNDES investir no iFood, isso manterá o caráter nacional da plataforma no futuro. É importante ressaltar o quanto o nosso desenvolvimento é desigual e combinado, ou seja, o fato de que nos países periféricos o capital queima etapas intermediárias que foram necessários ao seu desenvolvimento histórico nos países centrais. Assim, trazendo o que há de mais moderno, associado ao que há de mais arcaico, mantém relações de produção profundamente arcaicas, mas associadas às vezes com desenvolvimento técnico de ponta.
Eu só fui compreender essa questão quando tive a oportunidade de estudar a Europa e o quanto as plataformas de delivery na Europa, principalmente as plataformas locais, como o caso da Glovo espanhol, também se expandem para outros países. A Glovo se expandiu para Portugal, embora estejam no Norte Global, estamos falando de um setor periférico da Europa, que é a Península Ibérica, e como lá a Espanha, em algum grau, uma plataforma espanhola, se expandiu para o mercado português.
A Glovo é muito menos desenvolvida do que o iFood, por uma razão muito simples, a legislação. Não há superexploração, tirando os imigrantes, mas mesmo dos imigrantes em algum grau, ela é mais limitada do que na América Latina. Logo, não tem a disponibilidade de entregas em Portugal e na Espanha como tem no Brasil: uma plataforma como o iFood que oferece 24 horas por dia, 7 dias por semana, nos grandes centros urbanos, uma oferta de comida, que, portanto, produz dados 24 horas por dia, 7 dias por semana. Quando vamos para países como os Estados Unidos ou para a Europa, eles parecem, às vezes, mais arcaicos, enquanto o que ocorre é o contrário, porque os trabalhadores resistiram localmente ao desenvolvimento tecnológico de soluções predatórias que, infelizmente, são naturalizadas, normalizadas, em países como o Brasil.
IHU – Que alternativas temos frente a mais esta faceta da desigualdade?
Kenzo Soares Seto – Uma alternativa é a regulamentação do trabalho de plataforma, de modo a garantir direitos para os trabalhadores, independente do vínculo de emprego. O ideal seria o reconhecimento do vínculo empregatício entre os trabalhadores e as plataformas. Isso era a decisão do Superior Tribunal do Trabalho, que é o órgão máximo da Justiça do Trabalho brasileiro, mas que, infelizmente, aparentemente, o Supremo Tribunal Federal – STF vai reverter. Aparentemente o STF formou maioria para o não reconhecimento do vínculo empregatício entre plataformas e trabalhadores. Mas isso coloca a necessidade de avançar.
O Brasil está se tornando um país isolado na América Latina em termos de manter a não regulamentação do trabalho de plataforma, isso depende de organização e de luta popular. O exemplo mais avançado é a Colômbia, onde a mudança da regulação do trabalho de plataforma se deu no Congresso após a pressão por um plebiscito popular convocado pelo presidente Gustavo Petro. Também houve avanço no México, que é a legislação mais avançada do continente. Houve avanços no Chile, talvez ainda como um dos resultados da cauda longa, das manifestações multitudinárias que o Chile teve nesse processo de pressão por uma nova constituinte. A regulamentação ainda avançou no Uruguai com a retomada do governo pela Frente Ampla. Essa é uma dimensão fundamental.
Outra dimensão é a atuação direta do Estado para incentivar formas alternativas de plataformização do trabalho, ou melhor, de uso das tecnologias digitais em favor do trabalho que garanta um trabalho digno. Essa é uma das minhas pesquisas atuais. Eu estou como fellow do consórcio de cooperativismo de plataforma, associado ao ICDE da The New School, estudando justamente a formulação de políticas públicas para o cooperativismo de plataforma no Brasil.
Portanto, como o Estado brasileiro pode ter um papel indutor de alternativas de organização do trabalho que garanta a dignidade desse trabalho, com condições de pagamento justo, com previsão de jornada, com direitos trabalhistas, com seguridade social. O Estado brasileiro é o maior agente econômico da sociedade brasileira, o poder de compra da União, sem citar o poder de compra dos estados e municípios, é imenso. Logo, a adoção de políticas de compras públicas preferenciais que priorizem cooperativas de plataforma ou outras iniciativas de economia solidária digital, sob propriedade dos trabalhadores, é algo fundamental. Tanto quanto é o crédito.
O BNDES é um dos maiores bancos de investimento do mundo. Temos a Dilma como presidenta do Banco dos BRICS. Por isso, é importante que tenham políticas de financiamento, de crédito, inclusive s fundo perdido, porque é assim que as próprias plataformas hegemônicas operam. O capital financeiro, o Venture Capital permite um investimento incessante em desenvolvimento tecnológico e inovação, praticamente a fundo perdido, que são plataformas deficitárias por décadas, fora toda a infraestrutura na qual ela se baseia, que foi sustentada por investimento público. As pessoas sempre esquecem o quanto os Estados Unidos investiram, assim como os países europeus e o Japão, que fizeram enormes investimentos a fundo perdido estatal, para que dessas condições para o amadurecimento dos ecossistemas digitais.
Políticas de compras públicas, de crédito, de financiamento, de formação, de oferecimento de infraestrutura digital são [formas de regular as plataformas]. Para tanto, e importantes que incubadoras tecnológicas das universidades associadas à economia solidária, ofereçam o suporte técnico.
Parece que desapareceu do horizonte político a ideia de que o Estado tem o dever de oferecer infraestruturas públicas. O exemplo que eu sempre dou é do Táxi Rio, a Prefeitura do Rio de Janeiro, sob o comando do Eduardo Paes, que ninguém pode acusar de ser comunista ou socialista. Trata-se de uma plataforma de mobilidade urbana, onde o Estado oferece infraestrutura técnica. O Táxi Rio é fruto, foi criado e é mantido pela Empresa Pública de Tecnologia da Informação do Rio de Janeiro – IPLANRIO, inclusive como parte da minha pesquisa eu entrevistei o presidente do IPLANRIO. A plataforma não cobra nada dos motoristas, seja dos motoristas individuais, seja dos motoristas dos táxis que se organizam na forma de cooperativas. O serviço de infraestrutura de plataforma para os motoristas do Táxi Rio é oferecido como tarifa zero, como serviço público sustentado pelo orçamento do município do Rio de Janeiro. Infelizmente, temos que encarar as barreiras jurídicas. A Empresa Pública do Rio de Janeiro anunciou o lançamento de uma plataforma semelhante ao Táxi Rio para delivery, foi barrada judicialmente por uma ação do Partido Novo e permanece suspensa pela justiça.
Além disso, por exemplo, poderíamos ter marketplaces públicos de plataformas públicas, e ao contrário da expansão de plataformas privadas baseadas em trabalho precário e superexploração, como é o caso do iFood, poderíamos ter a expansão e a organização de federações de trabalhadores em escala continental, latino-americana ou no Sul Global como um todo.
O cooperativismo de plataforma e a economia solidária digital são movimentos globais e também têm desafios. Houve a tentativa frustrada de expansão do modelo da CopyCycle, da cooperativa de entrega europeia para a Argentina, mas acabou fracassando. Podemos aprender com esses fracassos e a partir também do suporte do Estado, pensar nas soluções latino-americanas ou também nos marcos do BRICS. Mas não pensar os BRICS de cima para baixo, apenas em cúpulas institucionais a nível de governo, mas a partir de um BRICS dos debaixo, que inclua os trabalhadores, a sociedade civil e os movimentos sociais desses países. De forma que eles se auto-organizem de modo a cobrar que seus Estados favoreçam essas soluções nacionalmente ou de forma transnacional, como alternativas em termos de arranjos de trabalho, ao trabalho plataformizado precário do modelo hegemônico de plataformas baseadas em capital financeiro, em capital de risco e superexploração do trabalho.
O Brasil teve a sua primeira conferência temática de cooperativismo de plataforma e de economia solidária digital esse ano, nos marcos da 4ª Conferência Nacional de Economia Solidária. Mas desde 2022, que foi quando o plano de ação do cooperativismo de plataforma foi apresentado para a sociedade civil, o presidente Lula se comprometeu com essa pauta, pouca coisa avançou além de promessas. Durante essa conferência temática ouvimos propostas interessantes do Gilberto Carvalho, que é o Secretário Nacional de Economia Solidária Popular. Existe a possibilidade de ter um aplicativo white label garantido pelo governo federal, que permita a infraestrutura tecnológica ser oferecida pelo SERPRO, pela Empresa Brasileira de Tecnologia da Informação, mas que a autogestão dos dados, da governança e a customização se dê por cada cooperativa local. Mas isso tem que avançar, por enquanto são só promessas.
Há linhas de financiamento que muitas vezes não tem critérios claros, de modo que umas cooperativas têm acesso a emendas parlamentares e outras não, dependendo muito da afinidade política dos atores envolvidos. O quanto [conseguiremos] avançar em termos dessas alternativas depende de enfrentar o lobby poderosíssimo das big techs, que enterraram o avanço da regulamentação do trabalho de plataforma no Brasil, mas muitas vezes estão presentes não só no lobby, nos corredores do Congresso Nacional, mas também no mecanismo de “porta de giratória” dos próprios ministérios, mesmo sob uma gestão do Partido dos Trabalhadores. O cooperativismo de plataforma não avançou como poderia ter avançado nos últimos três anos, porque há setores dentro do próprio governo federal que demoraram a reconhecer a importância do tema, não colocam ou inclusive impediram ou atrasaram [as discussões]. Um elemento interessante é que o novo presidente do PT, o Edinho, foi o prefeito Araraquara, onde houve uma tentativa de desenvolvimento municipal de plataformas para os trabalhadores.
São algumas alternativas possíveis de serem exploradas, para que ao invés de basearmos o desenvolvimento nacional tecnológico na expansão de plataformas de trabalho precário, do Brasil querer ter os campeões nacionais que sejam tão perversos quanto o Norte Global, possamos desenvolver soluções públicas ou infraestruturas públicas para soluções comunitárias, cooperativadas, que podem inclusive se expandir para além das fronteiras baseadas na solidariedade internacional dos trabalhadores.
[1] Metáfora da árvore: Para vislumbrar a natureza hierárquica e interdependente do ecossistema de plataforma, imaginamos uma árvore com três camadas interconectadas: as raízes de infraestruturas digitais chegam ao tronco de plataformas intermediárias que se ramifica em setores industriais e sociais de onde brotam galhos e folhas. Esta metáfora enfatiza como as plataformas constituem sistemas dinâmicos “vivos” que constantemente se transformam, “comoldando” sua espécie. Assim como folhas, galhos e raízes absorvem o ar e a água para fazer a árvore crescer, a plataformização é um processo no qual dados são continuamente coletados e absorvidos. Fonte aqui.
[2] Soluções White Label: plataformas desenvolvidas por uma empresa que podem ser personalizadas e vendidas por outras empresas sob suas próprias marcas, sem a necessidade de construir a tecnologia do zero.