Crise internacional: ''está tudo embaraçado numa ideologia fortíssima''. Entrevista especial com José Carlos de Assis

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13 Abril 2012

“Se não houver uma mudança política na Europa e nos Estados Unidos, a crise irá durar anos, até ocorrer essa mudança política”, adverte o economista.

Confira a entrevista.


A luta de classes entre patrões e trabalhadores, apontada por Marx no século XIX, reflete no século XXI na disputa pelo orçamento público, entre aqueles que defendem a política monetária e a política fiscal. É com essa percepção que o economista José Carlos de Assis analisa a crise financeira internacional e a incapacidade de o sistema neoliberal permanecer vigente enquanto modelo político e econômico. “Não se trata somente da luta de patrão contra empregado, é muito mais do que isso: é a luta do cidadão por um espaço maior no Estado, que transfere a este cidadão parte da renda nacional através de políticas sociais”, explica em entrevista concedida à IHU On-Line por telefone. Para ele, a má condução da política monetária tem impedido a resolução das últimas crises do capitalismo, inclusive a de 2008, que se arrasta há quatro anos. “O que está errado é a política econômica europeia, que tem a crise econômica voltada para os interesses dos ricos e dos financistas, voltada para os interesses daqueles indivíduos que provocaram a crise”, afirma.

Autor do livro O universo neoliberal em desencanto (Civilização Brasileira, 2011), escrito em parceria com o professor Francisco Antônio Dória, Assis enfatiza que as crises são próprias do capitalismo e o problema não está nelas em si, mas na política econômica utilizada para enfrentá-las. Em sua avaliação, a saída deste colapso econômico consiste em romper com o neoliberalismo. “Se não fizerem uma decisão eleitoral a favor simultaneamente de Obama e do Partido Democrata na Câmara e no Senado dos EUA, essa crise irá durar mais quatro anos. Não tenho dúvidas. E vai ser uma coisa horrorosa, porque irá juntar o que tem de pior na política americana com o que tem de pior na política europeia, que é Merkel, Sarkozy e o inglês David Cameron”, menciona.

Assis também esclarece as implicações da independência dos bancos, a exemplo dos Bancos Centrais brasileiro e europeu, os quais, apesar de serem independentes, não são orientados por políticas em defesa do emprego e do desenvolvimento econômico. “Diz-se que o Banco Central tem que ser independente dos políticos. Isso é uma brincadeira. O Banco Central tem operacionalmente que ser independente, mas não pode ser independente da política. Quer dizer, ele não pode ser uma instância sobrepujada na sociedade, uma instância que atua fora dos cânones da democracia. (...) Não há sentido uma entidade que não responde a ninguém (ao eleitorado) e que tem uma autoridade ilimitada. Isso só existe dentro de uma ideologia neoliberal. Portanto, tem que se ter um banco central dependente de mandatos definidos politicamente em termos da lei geral, e não da lei particular”, assegura.

Como alternativa ao neoliberalismo, o professor vislumbra a era da cooperação, em que, na inexistência de um líder político e econômico hegemônico, as nações precisam cooperar umas com as outras para garantirem a sobrevivência dos povos. “Não é uma questão idealista, não é uma questão religiosa, é um imperativo da cooperação. Nós estamos saindo da idade moderna agora, cujo fundamento foi a busca da liberdade individual ilimitada para uma situação que é complementar a isso. A cooperação, de certa forma, impõe limites à sua liberdade, mas é em favor de uma maior segurança das pessoas e dos povos coletivamente”, resume.

José Carlos de Assis (foto) é doutor em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, e professor de Economia Internacional na Universidade Estadual da Paraíba. Entre seus livros, citamos Análise da crise brasileira e A quarta via e a sátira contra o neoliberalismo.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Quais são as bases matemáticas e políticas do neoliberalismo? Como vocês identificaram essas bases?

José Carlos de Assis –
Não vou falar muito sobre as bases matemáticas porque não sou um especialista nessa área. Tenho conhecimento da matemática, porém voltada para a economia. Quer dizer, conheço mas não no nível de teoremas, diferentemente do professor Dória. De todo modo, o essencial é que foi formulada uma teoria central para a teoria neoclássica, que foi fundamento para o neoliberalismo, segundo a qual os mercados tendem ao equilíbrio naturalmente: os preços se estabilizam, implicando uma distribuição de renda ótima em que cada um recebe o que dá. Essa é a construção teórica do neoclassicismo e, depois, do neoliberalismo. É isso que o professor Dória e outros economistas discutem através de um teorema. Eles abalaram os alicerces dessa teoria porque fizeram uma demonstração em que, mesmo que os preços tendam ao equilíbrio, não é possível saber nem quando nem onde exatamente se dá esse equilíbrio. Tampouco é possível saber com que nível de preços eles acontecem.

Isso significa que não se pode deixar o mercado trabalhar sozinho. Quais são os dois fundamentos centrais do neoliberalismo? A ideia de que tem que ter um Estado mínimo; e a ideia da autorregulação dos mercados. O teorema apresentado pelo professor Dória derruba a ideia de autorregulação dos mercados, quer dizer, os mercados não tendem ao equilíbrio sozinhos. Essa é a essência da matemática.

IHU On-Line – No livro O universo noeliberal em desencanto, o senhor diz que a luta de classes identificada por Marx no século XIX se dá, hoje, entre os que defendem a política monetária e a política fiscal. Esse é um processo global? Quem defende a política monetária e quem defende a política fiscal? Como se dá a luta de classes?

José Carlos de Assis –
A luta de classes clássica é no sentido de que contrapõe trabalhadores diretos e patrões, ou patrões e trabalhadores. Quer dizer, são duas classes sociais basilares na sociedade. Acontece que a configuração da sociedade mudou, e hoje existe uma grande classe média que exerce influência no Estado. Quer dizer, o Estado da época do Marx, da luta de classes típica, era pequeno e que representava 8 ou 10% do Produto Interno Bruto – PIB e era voltado, quase que exclusivamente, para as forças armadas, quer dizer, para a defesa externa e para a polícia, tudo a fim de garantir a ordem interna.

Transformações

Ao longo do início do século XX, começa-se um processo em que o Estado, por pressão de um grupo social mais forte, as classes médias, vai tomando outra forma, quer dizer, vai sendo um agente transferidor de recursos na sociedade. Ele recolhe tributos e os redistribui sobre pressão dos grupos sociais. Nesse sentido, há um deslocamento da luta de classes. Não se trata de um deslocamento absoluto, mas se tem uma nova instância da luta de classes no plano da transferência de renda no Estado. Então, não se trata somente da luta de patrão contra empregado. É muito mais do que isso: é a luta do cidadão por um espaço maior no Estado, que transfere a esse cidadão parte da renda nacional através de políticas sociais. Essa é a característica do Estado moderno. Quer dizer, o Estado moderno não é o Estado da época do Marx. É um Estado em que se tem uma outra instância de luta, que é a luta política pelo orçamento público, e que não se dá exclusivamente com respeito aos trabalhadores, aos operários, mas a uma gama social muito maior, que inclui autônomos, pequenos empresários e um grande número de categorias sociais muito mais ampla do que a classe trabalhadora stricto sensu. Portanto, ao lado das lutas de classes típicas do século XIX há uma nova luta de classes, que se dá pelo processo de transferência de renda através do Estado.

IHU On-Line – Essa luta pela disputa do orçamento público é um reflexo da subordinação da política à economia?

José Carlos de Assis –
Não necessariamente. Na verdade, a política é um controlador da economia. A partir do momento em que as classes médias passaram a ter maior influência sobre o processo político, passaram também a interferir no processo econômico. Então, não é propriamente de uma sobre a outra; é, antes, uma interação das duas. Quer dizer, hora é o político que determina o econômico, hora é o econômico que determina o político. Essa é a característica dos tempos atuais. Isso foi crescendo ao longo de todo o século XX, sobretudo no Ocidente.

IHU On-Line – Por não haver interferência na política monetária, a política fiscal impede o aumento do salário real?

José Carlos de Assis –
Vou explicar o que acontece. Na macroeconomia, que é basicamente política fiscal, política monetária e política cambial, é onde se dá o grande processo de transferência de renda na sociedade, porque a política monetária é, fora a questão ideológica, uma espécide de Banco Central transferindo recursos monetários diretamente para o sistema bancário e o sistema bancário retransferindo esses recursos para o conjunto das empresas. Quem toma dinheiro emprestado do Banco Central a taxas muito baixas de juros é o sistema bancário. Nenhum cidadão comum e nenhuma empresa produtiva podem tomar empréstimo no Banco Central. Quando o Banco Central baixa a taxa de juros a próximo de zero, como é atualmente na Europa, 1% ao ano, e nos EUA, 0,25% ao ano, quem toma esses recursos – é bom que se diga – não são empresas, são outros bancos. Esses outros bancos é que emprestam dinheiro para as empresas. Mas as empresas só podem pegar esse dinheiro se tiverem um patrimônio para dar como garantia. Então, o circuito da política monetária se dá entre ricos, abastados, banqueiros e financistas. Trata-se de um dinheiro que é disponibilizado para os riscos, no suposto de que eles aumentarão o investimento e o investimento vai aumentar o emprego e a renda, e assim por diante. Mas isso é um suposto, uma suposição. Como estamos vendo hoje na crise mundial da Europa e dos EUA, a política monetária de expansão e crédito não está gerando aumento do investimento.

O dinheiro, como se dizia na década de 1930 – época da Grande Depressão –, está empossado no sistema bancário. Os bancos pegam esse dinheiro e especulam com ele fora do sistema produtivo e se beneficiam disso. É por isso que dizemos que a política monetária só beneficia os ricos e não beneficia sequer o setor produtivo e muito menos os pobres.

Política fiscal

Já a política fiscal é a transferência de renda através do orçamento público a partir de uma carga tributária. Essa transferência de renda é feita pelo Estado, portanto, é uma transferência para os mais pobres. Por quê? O que faz o Estado? O Estado toma dinheiro emprestado do setor privado e investe nas funções tradicionais: infraestrutura, que atende aos interesses de todo mundo, saúde e educação – que benefíciam sobretudo os pobres, porque ricos não precisam de saúde e educação públicas –, e investe ainda em outras funções que são direcionadas para o próprio Estado, como o programa Bolsa Família. Ou seja, quando o Estado pega dinheiro emprestado para investir nesse programa, por exemplo, ele está fazendo uma transferência de renda direta de quem tem dinheiro para quem não tem. Essa é a ideia que está por trás desse conceito de uma nova luta de classes em nível mundial e nacional. Quer dizer, não se trata mais da luta de classes na fábrica. A luta de classes aí está mais ou menos resolvida pela regulação do conflito trabalhista. As empresas não têm muita dificuldade em atender às reivindicações dos trabalhadores e transfere esse custo à sociedade através dos preços. Então, não é aí que se dá a luta de classes para valer. O que acontece nesse ambiente é um jogo de interesses entre empresas e trabalhadores. O conflito de classes se dá em torno do orçamento público.

IHU On-Line – O senhor cita no livro o exemplo democrático do New Deal, em que houve uma parceria entre o FED e o Tesouro americano. Se o New Deal é um exemplo possível, por que os Estados não mudam a política monetária? E, nesse sentido, qual é o impacto da autonomia dos bancos centrais?

José Carlos de Assis –
O Estado não muda porque isso está tudo embaraçado numa ideologia fortíssima que é consagrada internacionalmente. Quer dizer, ao mexer com a política econômica, mexe-se com as instituições internacionais como o FMI, o Banco Mundial, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE. A fórmula operacional deles é conservadora, tradicional, e eles transmitem suas decisões como se fossem decisões técnicas, e não propriamente decisões políticas e submetidas a grupos de interesse.

Independência

A independência dos bancos centrais demonstra outra situação de domínio ideológico quase absoluto. Essa independência foi inventada na década de 1980 por alguns países e pelas agências multilaterais como sendo o grande segredo da política monetária. Eles alegavam que a política monetária seria neutra porque o Banco Central não poderia depender de governos e, portanto, deveria ser uma instância acima da sociedade e dos políticos. No fundo, isso transformou os bancos centrais em submetidos aos interesses do capital financeiro.

O modelo de metas de inflação que alguns países adotaram, inclusive o Brasil no governo final do mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, é um embuste do ponto de vista técnico. Essa matemática eu não entendo. Aliás, a Europa está pagando caro por isso hoje. Os europeus transformaram a crise financeira em crise fiscal, e o Banco Central Europeu não ajuda a reduzir o problema fiscal na Europa porque ele está descolado dos governos, dos orçamentos públicos e, portanto, da política fiscal.

IHU On-Line – Para mudar esse quadro, o Estado deve interferir no Banco Central? Ou como os bancos centrais devem agir?

José Carlos de Assis –
De certa forma, sim. O Estado tem de intervir. Mas a questão é que tem de ter interferência política no mandato dos bancos centrais. Para que foram feitos esses bancos? O Banco Central brasileiro, por um decreto do Fernando Henrique Cardoso, tem como objetivo único combater a inflação, como é o caso também do Banco Central Europeu. Agora, se você observar o FED (Banco Central americano), verá que ele tem três mandatos: o mandato da inflação, do emprego – quer dizer, tem de promover o emprego – e o mandato do desenvolvimento econômico. Então, é nesse nível que defendo um banco central orientado politicamente, ou seja, orientado por políticas e não por políticos. Essa é a essência.

Políticas x políticos

Esse é um debate completamente camuflado porque usa o artifício de utilizar palavras no sentido pejorativo. Ou seja, no Brasil diz-se que o Banco Central tem que ser independente dos políticos. Isso é uma brincadeira. O Banco Central tem operacionalmente que ser independente, mas não pode ser independente da política. Quer dizer, ele não pode ser uma instância sobrepujada na sociedade, uma instância que atua fora dos cânones da democracia. Quer ser independente, então, submeta-se a uma eleição. Não há sentido numa entidade que não responde a ninguém (ao eleitorado) e que tem uma autoridade ilimitada. Isso só existe dentro de uma ideologia neoliberal. Portanto, tem que se ter um banco central dependente de mandatos definidos politicamente em termos da lei geral, e não da lei particular. Aliás, na Argentina, nesse momento, fez-se uma revolução na constituição de seu Banco Central, na direção de um banco que cuide da inflação, do emprego e do desenvolvimento. Isso não é novidade alguma, porque assim também funciona o Banco Central americano (Fed).

IHU On-Line – Em sua avaliação, vivemos hoje em um mundo de democracia de cidadania ampliada e, portanto, a economia política da concentração de renda está com os dias contados. Movimentos como Occupy Wall Street (EUA) e 15M (Espanha) contribuem para essa mudança ao passo que reivindicam outro modelo político, econômico e participação política?

José Carlos de Assis –
Esses movimentos são uma expressão, um sinal dessa mudança. Não sei se a força para mudar virá deles. Em minha avaliação, a força para mudar o sistema será o fracasso das políticas econômicas neoliberais. É um fracasso absoluto, quer dizer, não se trata da maior crise dos últimos 70 anos; é a maior crise da história do capitalismo. Se você observar o que aconteceu e o que está acontecendo com o sistema bancário, que é o próprio núcleo do sistema capitalista, vai perceber que a crise dessa vez é muito maior. A crise da Grande Depressão de 1929 não quebrou nenhum grande banco americano. Pelo contrário, quebraram milhares de bancos pequenos, porque a crise não tinha influência sistêmica. A crise atual quebrou a AIG, que é a maior seguradora do mundo, quebraram também as duas maiores empresas de crédito imobiliário dos Estados Unidos, a Fannie Mae e a Freddie Mac, além das duas maiores empresas manufatureiras, a GM e a Chrysler. Enquanto isso, os bancos sobreviveram, porque foram salvos pelo governo americano. Na Europa também quebraram várias empresas, e na Inglaterra quebraram os dois maiores bancos. Na Irlanda quebraram três.

IHU On-Line – Na prática, que mudanças políticas são necessárias para mudar os rumos desta crise financeira global?

José Carlos de Assis – Não tem como sair desta crise, a não ser por um grande acordo internacional que passa pela ruptura com o sistema neoliberal. Coisa dificílima, porque o G-20 está dividido entre os neoliberais como a Ângela Merkel, da Alemanha, e os desenvolvimentistas que seriam, mais ou menos, comandados pelo Obama que, de qualquer forma, está sem grande moral, porque ficou sem a presidência dos democratas na Câmara.

Se não fizerem uma decisão eleitoral a favor simultaneamente de Obama e do Partido Democrata na Câmara e no Senado dos EUA, essa crise irá durar mais quatro anos. Não tenho dúvidas. E vai ser uma coisa horrorosa, porque irá juntar o que tem de pior na política americana com o que tem de pior na política europeia, que é Merkel, Sarkozy e o inglês David Cameron. O que está acontecendo é um risco para a humanidade.

Outro dia alguém me perguntou sobre a possibilidade de haver uma guerra em função dos conflitos de interesses econômicos. Só não vai haver guerra porque estamos na Era Nuclear, e existem várias potências nucleares.

IHU On-Line – Mas está havendo uma guerra entre os países, só que ela é cambial...

José Carlos de Assis –
É verdade. Pode haver guerras de outras formas. Embora tenham me agradado as declarações da presidente Dilma, na Índia e na Alemanha, no que se refere à denúncia da chamada guerra cambial. O problema não é câmbio somente; o problema é a política global, é a política econômica. O que está errado é a política econômica europeia, que tem a crise econômica voltada para os interesses dos ricos e dos financistas, voltada para os interesses daqueles indivíduos que provocaram a crise. Isso é dramático: estão protegendo o interesse deles e não o interesse dos povos.

Também tenho dito que o problema não é a crise em si, porque, ao longo do capitalismo, as crises sempre existiram. O problema é a política econômica que se utiliza para enfrentar a crise. O que os Estados Unidos estão fazendo – porque eles ainda são a maior potência econômica, política e militar –, é a mesma coisa que fizeram na crise de 1930, com o New Deal. O problema é que o New Deal foi aplicado até 1937, quando o Congresso obrigou o governo a mudar de rumo, e a economia afundou outra vez. Foi exatamente isso que aconteceu novamente nas três primeiras reuniões do G-20. Houve um acordo espetacular e amplo entre os lideres desse grupo, onde se decidiu que todo mundo tinha que fazer política fiscal expansiva. Todo mundo tem que fazer com que os Estados gastem mais. Isso porque, gastando-se mais, gera-se mais consumo e, gerando-se mais consumo, a demanda cresce. A demanda crescendo, o investimento cresce e o investimento crescendo, o emprego cresce. Com o emprego crescendo, volta-se ao círculo benéfico, aumentando novamente o consumo, a renda e o investimento. Essa decisão foi tomada na primeira reunião do grupo em Washington, ainda no governo Bush.

Europa x EUA

Na reunião de Toronto, no primeiro semestre de 2010, eles acharam que a crise tinha passado e a Dona Merkel, Sarcozy, e Cameron, o qual tinha mudado a política da Inglaterra, impuseram ajustes fiscais no conjunto da Europa, sobretudo aos países periféricos. Aí levaram de novo os países à recessão que estão agora vivendo. Então, se não houver uma mudança política na Europa e nos Estados Unidos, a crise irá durar anos, até ocorrer essa mudança política.

IHU On-Line – O senhor escreve no livro que a política econômica do governo está invertida, mas está dando certo porque não é o modelo de metas que contem a inflação, mas a inflação baixa que está dando credibilidade. Quais são os principais equívocos da política econômica?

José Carlos de Assis –
Têm elementos extremamente positivos desde 2008, sobretudo no começo de 2009. No início da crise, acharam que ela seria uma “marolinha”, quer dizer, que passaria ao lado de nós. Então, o Banco Central não só manteve mas também aumentou a taxa de juros em plena crise mundial. Quando chegou janeiro de 2009, levaram um susto, porque a taxa de desemprego deu um salto: quase 700.000 pessoas estavam desempregadas. Aí realmente o governo acordou e apostou bem: fez vários programas de diretos fiscais, aumentou o salário mínimo, o programa Bolsa Família, a exoneração fiscal em bens de consumo durável. Também abriu uma linha de crédito de 100 bilhões de reais e depois, no ano seguinte, de 80 bilhões, totalizando 180 bilhões via BNDES para ativar os investimentos. Essas medidas funcionaram não de forma absoluta, porque ainda tivemos uma queda do PIB, uma contração de 0,6% em 2009.

Mais em 2010, houve um crescimento muito grande de 7,5%. Entretanto, cometeram o mesmo erro que a Alemanha cometeu e que os Estados Unidos estão cometendo – os Estados Unidos a despeito de Obama, porque esse presidente ainda tentou aplicar um programa de 400 bilhões de dólares no ano passado, não tendo sucesso porque o Congresso não deixou. O Brasil achou que o pior da crise havia passado, que a economia iria acelerar por conta própria a partir de 2010. O fato é que em 2011, como todo mundo viu, a taxa de crescimento caiu barbaramente para 12,7%, porque reduziram os programas de estimulo e porque o conjunto de medidas, aplicado para manter a economia em crescimento alto, não se sustentou. Não sei se a mágica irá dar certo duas vezes. Pelo menos impediu-se a estúpida valorização do câmbio, que vinha ocorrendo com um grande prejuízo para a monofatura brasileira.

Riscos

Apesar disso, ainda há riscos graves para a economia brasileira, pois a China desacelerou 7,5% e isso significa que importará menos matérias-primas brasileiras. Como a principal relação do Brasil com o resto do mundo se dá através das matérias-primas, o país poderá chegar ao pior dos mundos, porque não tem nem produtos manufaturados exportáveis nem produtos primários – quer dizer, o país continuará tendo produtos primários, mas pode ser que a taxa de crescimento caia muito, prejudicando o emprego e a geração de renda interna.

Saída

A saída do Brasil passa fundamentalmente por um processo de integração em bloco da América do Sul, porque a política econômica europeia vai no sentido de aumentar as exportações e reduzir as importações. Isso significa que, ao contrário do que acontece entre Brasil e China, o Brasil estará em uma situação pior em relação à Europa, porque os chineses pelo menos importam muito. Então, o risco do Brasil não é o risco da China apenas. É o risco da Europa por causa da política econômica que está sendo imposta em cima deles. Eles ameaçam desestruturar o sistema manufatureiro brasileiro, ou seja, a indústria interna brasileira. Contra isso só há uma saída: aprofundar a integração sul-americana, porque, se os países da América do Sul criarem um bloco, será possível criar algum tipo de barreira alfandegária e protecionista contra o dano das exportações europeias. Como país, isoladamente o Brasil não pode fazer isso porque cai nas rédeas da Organização Mundial do Comércio - OMC, que irá retaliá-lo. Como bloco econômico, essa medida é viável porque está prevista nas regras internacionais.

Já começa a haver algum entendimento nesta direção da integração sul-americana na área empresarial, política, e espero que em algum momento o governo se dê conta disso. É claro que os vizinhos sul-americanos têm menos a perder do que o Brasil num primeiro momento, porque eles têm menos indústrias. Mas eles perderão a expectativa de um dia terem indústrias.

IHU On-Line – Como alternativa ao neoliberalismo, o senhor vislumbra a era da cooperação. Essa é uma visão bastante otimista considerando o cenário atual. Ela será possível?

José Carlos de Assis -
Eu estou convencido disso pelo seguinte: tem uma convergência de situações cuja saída é um ligamento pela cooperação. Quer dizer, não existe saída a não ser pela via da cooperação. Economicamente, não se tem saída fora da cooperação, porque não existe mais “hegemon”, um líder hegemônico, alguém que mande e crie uma ordem internacional financeira, como foi criada na Segunda Guerra Mundial pelos Estados Unidos. Dessa vez, se os Estados Unidos quiserem colocar uma ordem mundial a seu modo, a seu jeito, não vão conseguir, porque a China não aceita, a Rússia pode não aceitar, a Europa pode não aceitar. Então, a saída tem que ser via algum processo de cooperação. A economia não vai ser reordenada por um “hegemon” e se tornará uma coisa anárquica se não houver uma instância e coordenação das políticas nacionais em escala mundial.

Em segundo lugar, o mundo não tem como enfrentar a crise do meio ambiente a não ser por medidas cooperativas. O meio ambiente é comum, não tem fronteiras geográficas nem políticas. O que se faz no Brasil tem repercussão na Flórida. O que você faz na Flórida tem repercussão na Ásia. Se tivesse alguém com capacidade hegemônica de dizer o que os demais países devem fazer, tudo bem, mas não existe uma entidade com capacidade de impor isso.

Interesses

Hoje, a realidade econômica americana é uma partilha com outras entidades mundiais. Por exemplo, os interesses dos EUA são, em grande parte, reproduzidos pelas empresas americanas na China. As empresas americanas na China têm interesse em se relacionar com os EUA e, simultaneamente, com o governo chinês. Então, não tem como isolar as nações umas das outras para que uma delas imponha ordem às demais. Não existe isso. No próprio campo geopolítico também não existe. O mundo está nuclearizado. Existem cinco potências nucleares de primeira linha: EUA, Rússia, Inglaterra, França e China. E duas potências de segunda linha: Índia e Paquistão. Além de Israel, têm os candidatos Irã e Coreia do Norte.

Interferência nuclear

O poder nuclear está dividido e, em meio a uma situação dessas, você tem uma espécie de nivelamento por baixo, porque aquele estado menos poderoso tem um poder de dissuasão tão grande quanto dos maiores. E a dissuasão é o risco de uma guerra nuclear que liquida com a espécie humana. Numa conjuntura dessas, existem duas saídas: o isolamento ou a cooperação. O isolamento reduz a sua segurança, porque um país não sabe o que o outro está fazendo. A cooperação não é uma questão idealista. O amadurecimento das forças produtivas dessas áreas levou a situação a tal que exige a cooperação como forma de menor risco e de menor insegurança. Não é uma questão idealista, não é uma questão religiosa, é um imperativo da cooperação. Nós estamos saindo da idade moderna agora, cujo fundamento foi a busca da liberdade individual ilimitada para uma situação que é complementar a isso. A cooperação, de certa forma, impõe limites à sua liberdade, mas é em favor de uma maior segurança das pessoas e dos povos coletivamente.

(Por Patricia Fachin)

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