12 Dezembro 2025
“As técnicas não são neutras, mas expressam as escolhas sociais e as condicionam, nem são onipotentes, nem intrinsecamente bondosas. E, concretamente, as tecnologias desenvolvem sociedades capitalistas, possuem limites e servem para sustentar o nosso mundo baseado em hierarquias”, escreve Luis González Reyes, integrante do movimento Ecologistas en Acción e autor e coautor de diversos livros sobre diferentes facetas do ambientalismo social, em artigo publicado por 15/15\15, 04-12-2025. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Vamos começar pelo princípio: o que é a técnica? Poderíamos defini-la como um conjunto de ações realizadas sobre um objeto para alcançar um fim. Ou seja, a técnica não é apenas o objeto técnico (o lápis, por exemplo), mas o ato de usá-lo (essa habilidade), com um objetivo determinado (pintar). Uma segunda definição que será útil para nós é que a técnica, qualquer técnica, é uma sedimentação de matéria, energia e conhecimentos. Os ingredientes são imprescindíveis.
Sob essas definições, faz sentido diferenciar técnica de tecnologia. A primeira é um conceito que acompanha a humanidade ao longo de sua história, ao passo que a tecnologia se refere às técnicas próprias do capitalismo industrial. Essas técnicas capitalistas, em sua maioria, utilizam energia fóssil, materiais minerais, são de grande escala, complexas e o conhecimento por trás delas é de tipo científico e privativo. Ou seja, a tríade energia-matéria-conhecimentos é muito particular na tecnologia. Seus fins também: a reprodução ampliada do capital. Utilizando e aprofundando essas definições, vou abordar três mitos sociais sobre a tecnologia.
O primeiro é o da neutralidade das técnicas. Este mito afirma que as técnicas não são boas ou más em si, mas que isto depende do uso que se faça delas. Deste modo, a técnica de manusear uma faca pode servir igualmente para esquartejar uma pessoa ou para preparar a comida. Somente os fins marcam a técnica, não os objetos técnicos, nem as habilidades para o seu uso.
Mas, na realidade, essa ideia parte de uma abstração da técnica, de considerá-la como se não tivesse nada a ver com as ordens sociais em que opera. Nenhuma técnica (nenhum objeto e nenhuma das práticas de uso) pode ser compreendida à margem de uma sociedade particular. Todas as técnicas são expressões da cultura, da política e da economia das sociedades que as criam e usam. Para dar um exemplo, a máquina a vapor não é uma invenção britânica do século XVIII, já existiam projetos prévios, por exemplo, na Grécia clássica. No entanto, apenas o capitalismo britânico já maduro que realmente a desenvolveu, porque foi quem lhe deu sentido social e econômico, como explica Andreas Malm, em Capital fóssil.
A falta de neutralidade das técnicas não se dá apenas no sentido de que elas são uma expressão das prioridades sociais, mas também porque condicionam profundamente as sociedades. Por exemplo, o telefone celular mudou a forma de trabalharmos, nos relacionamos uns com os outros, concebemos o lazer, ligar etc. Em todo caso, o fato de a tecnologia condicionar a ordem socioambiental não quer dizer que ela explique toda a ordem social, pois há outros fatores determinantes a serem considerados.
Aterrisso essa segunda dimensão da falta de neutralidade da técnica me fixando no caso da tecnologia. Algumas de suas características, como apontava anteriormente, são sua alta complexidade e sua composição fóssil e mineral. Esses três elementos implicam intrinsecamente relações de dominação. Em primeiro lugar, porque o uso de fósseis e minerais é insustentável, o que imprime algumas relações de dominação dos seres humanos sobre outros seres vivos e das gerações presentes sobre as futuras.
Devido aos recursos limitados utilizados em sua fabricação, não são universalizáveis. Além disso, seu uso se baseia em relações coloniais. Ambos os aspectos mostram relações de dominação por razões de classe, gênero, racialização, origem, entre outras. Finalmente, são tecnologias que colocaram nas mãos das elites um poder de coação jamais visto na história da humanidade, na forma de criação de subjetividades e de maquinaria militar. Também impondo seu uso através do que Ivan Illich descreveu, em A convivencialidade, como “monopólios radicais”. Um exemplo é o carro, que deixou de ser uma opção real de meio de transporte para uma parcela importante da população.
O segundo mito relacionado à técnica, e mais especificamente à tecnologia, é o de seu desenvolvimento imparável e onipotência. Não apenas não podemos fazer nada para impedir sua evolução contínua, como também é tão poderosa que poderá resolver os problemas que temos como sociedade, das mudanças climáticas à pobreza. Argumento por que considero que as coisas não são assim.
Em primeiro lugar, o ser humano não é onisciente, nem onipotente. Sempre dispõe de uma quantidade de informação limitada e, portanto, não pode evitar cometer erros. Além disso, os desafios atuais da ciência têm a ver com os sistemas complexos. Uma de suas características é o seu funcionamento, por vezes, caótico. Outra, que produzem emergências, ou seja, qualidades novas que surgem como consequência das interações das partes e não podem ser deduzidas das propriedades de seus elementos individuais. Isto faz com que as possibilidades humanas de compreender, e não digamos já controlar, o ambiente - e até mesmo as sociedades – sejam muito mais reduzidas do que o mito do progresso sustenta. Donella Meadows explica isto em Pensando em sistemas.
A lei dos rendimentos decrescentes deriva desta limitação. As invenções seguem essa lei na medida em que as mais fáceis são implementadas primeiro e as mais difíceis depois. Por isso, as necessidades energéticas, materiais, intelectuais e financeiras crescem exponencialmente conforme o conhecimento avança e, além disso, devem ser sustentadas por períodos mais longos de tempo. Isto se reflete em que a taxa de inovação descende e a produtividade da pesquisa também, como demonstram diversos estudos científicos. Expresso de outra forma, a grande maioria das últimas invenções no fundo é a evolução do que já havia sido desenvolvido há muito tempo: comunicação, transporte, comércio, manufatura.[1] E os avanços recentes mais significativos (internet, inteligência artificial) não têm muita utilidade para a sobrevivência.
Se somarmos a lei dos rendimentos decrescentes à redução progressiva da disponibilidade mineral e fóssil e aos longos prazos para o desenvolvimento das tecnologias, a dificuldade de soluções de base exclusivamente tecnológica para os desafios da humanidade torna-se ainda mais real. Parece, inclusive, cada vez mais complicado não só sustentar o ritmo atual de inovações, mas também o próprio sistema tecnocientífico atual.
O exemplo da energia de fusão nuclear pode ser ilustrativo desta afirmação. Após sete décadas de intensa pesquisa, ainda não se vislumbra de modo real a capacidade de construir um reator que funcione, sem falar na questão se é viável economicamente e se temos os materiais e a energia suficientes disponíveis para que realize uma produção de energia significativa para o conjunto da humanidade. Parece ser um desses desenvolvimentos técnicos que escapam das possibilidades humanas.
O terceiro e último mito é o da bondade da técnica e, mais concretamente, em nossa sociedade, da tecnologia. Este mito reza que seus fins são, majoritariamente, desejáveis para a humanidade. Os exemplos que costumam ser citados são a máquina de lavar roupa e os antibióticos. No entanto, devemos lembrar que o propósito da tecnologia não é o bem-estar humano, mas a reprodução ampliada do capital. As empresas não investem em inovação para o bem das pessoas e do planeta, mas para maximizar seus lucros. Além disso, não têm outro remédio a não ser este propósito, por operar em um ambiente altamente competitivo que as obriga a maximizar produtividade sob o risco de desaparecerem. Se isto depois melhora ou não a vida das pessoas é um efeito secundário.
É verdade que existe parte da pesquisa – uma parte substancial – que não é diretamente dirigida pela empresa privada, mas por instituições públicas. Contudo, isto não significa que não esteja, em maior medida, a serviço da manutenção das hierarquias. O Estado, após 6.000 anos de história, demonstrou ser uma forma de organização política que, em sua diversidade, sempre manteve sociedades articuladas ao redor das desigualdades (algumas mais do que outras). Uma manifestação disto é que a maior parte da pesquisa pública que não foi direcionada para a competitividade econômica se dirigiu para a militar.
Em conclusão, as técnicas não são neutras, mas expressam as escolhas sociais e as condicionam, nem são onipotentes, nem intrinsecamente bondosas. E, concretamente, as tecnologias desenvolvem sociedades capitalistas, possuem limites e servem para sustentar o nosso mundo baseado em hierarquias.
Diante disso, precisamos transformar a tecnologia em técnica e não em qualquer tipo de técnica, mas em uma técnica de características humildes. São as que se baseiam em energias renováveis e em um uso circular de materiais (o que significa que se integram nos ecossistemas), são apropriadas pelas comunidades (descentralizadas, localizadas e democráticas) e fruto e fomento de uma cultura ecocêntrica e do cuidado.
Para aprofundar esses temas, recomendo o relatório Técnicas humildes para el decrecimiento, publicado por Ecologistas en Acción, e o livro Técnica y tecnología, de Adrián Almazán. São as duas bases do artigo que você acabou de ler.
Notas
[1] Para fazer uma breve lista: a locomotiva (1825), o refrigerador (1834), o telefone (1876), a luz elétrica e a lâmpada (1879), o automóvel com motor de combustão interna (1886), o avião (1890), o cinematógrafo (1894), a estufa elétrica (1896), a televisão (1926), a penicilina (1928), o radar (1931), o motor de turbina (1939), o transistor (1947), o microprocessador (1971), etc.
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