Vozes de Emaús: Refazer, hoje, o Pacto das Catacumbas. Artigo de Marcelo Barros

Arte: Laurem Palma | IHU

15 Novembro 2025

"Se não lutarmos contra as estruturas sociais e políticas que criam e alimentam os diversos rostos que a pobreza toma, agimos como alguém que quisesse enxugar uma sala molhada, sem antes fechar a torneira"

O artigo é de Marcelo Barros, monge beneditino, teólogo e escritor. Assessora movimentos sociais e comunidades eclesiais de base e é membro da Comissão Teológica da Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo.

Marcelo Barros. (Foto: Arquivo pessoal)

O presente texto integra a coluna Vozes de Emaús, que conta com contribuições semanais dos membros do Grupo Emaús. Para saber mais sobre o projeto, acesse aqui.

Eis o artigo.

Cada 16 de novembro recorda um acontecimento fundamental para as Igrejas cristãs e para o mundo. Nessa data, em 1965, em Roma, durante o último período de sessões do Concílio Vaticano II, 42 bispos católicos de diferentes países e continentes se encontraram para assinar um compromisso público fundamental para a inserção amorosa da Igreja junto às populações mais empobrecidas. Através daquele documento, os bispos decidiam renunciar a títulos honoríficos como “príncipes da Igreja” e a símbolos de nobreza, como palácio episcopal, cruz e anel de ouro, ou metal precioso. Alguns arcebispos tinham até trono. Assumiram, então, o compromisso de simplicidade e sobriedade no modo de morar, de vestir e de viver. Como servidores do Evangelho, testemunhavam que, por vocação evangélica, a Igreja de Cristo deve ser, prioritariamente, Igreja de pobres e para pobres. Para assumir e assinar esse documento, aqueles 42 bispos se reuniram nas Catacumbas de Domitila, em Roma. Era um local simbólico, porque, ali, nos primeiros séculos, junto ao túmulos de irmãos e irmãs, mártires da fé, a comunidade cristã de Roma celebrava o louvor de Deus e vivia a comunhão. Por isso, esse documento se tornou conhecido como “Pacto das Catacumbas”. Nos dias seguintes, mais de 500 outros bispos de todo o mundo assinaram o documento e assumiram o mesmo compromisso.

No episcopado católico brasileiro, depois do Concílio Vaticano II, esse novo modo de compreender a missão eclesial e de viver o ministério pastoral foi vivido por homens como Helder Camara, Antônio Fragoso, Jorge Marcos, Marcos Noronha, José Maria Pires e mais tarde, Tomás Balduíno, Pedro Casaldáliga, José Gomes, José Rodrigues, Paulo Evaristo Alves e vários outros pastores profetas. Mesmo sem a mesma visibilidade, houve movimento semelhante entre alguns pastores evangélicos brasileiros e latino-americanos.

Em 2019, durante o Sínodo para a Amazônia no Vaticano, um grupo de bispos, padres, missionários e missionárias leigas, ministros e ministras de outras Igrejas cristãs e também representantes de povos originários se reuniram de novo, nas Catacumbas de Domitila. Ali, renovaram o compromisso do Pacto das Catacumbas e o atualizaram em um documento que se chamou: Pacto das Catacumbas pela Casa Comum". Em 15 pontos que atualizam o chamado à pobreza evangélica e à defesa da vida e da casa comum, essa nova versão do Pacto focou na defesa da Amazônia, no cuidado com a Mãe-Terra e na solidariedade aos povos originários.

A partir dessa iniciativa, em algumas Igrejas locais, grupos ecumênicos laicos se constituíram como grupos da renovação do Pacto.
Na época do primeiro pacto, o compromisso com os irmãos e irmãs pobres se compreendia como caminho ascético de renúncia ao conforto e busca de comunhão com os empobrecidos e empobrecidas do mundo. Já em tempos anteriores ao Vaticano II, em alguns países, surgiu o movimento dos padres operários. Depois do Concílio, muitos irmãs e irmãos religiosos (as) optaram por morar nas periferias e viver junto às pessoas mais empobrecidas. Também alguns grupos de jovens seguiram este caminho.

Em nossos dias, as pessoas pobres não são apenas indivíduos. São coletivos que o mártir salvadorenho Ignacio Ellacuría chamava de “povos crucificados. Por isso, hoje, o Pacto das Catacumbas não pode mais ser apenas de comunhão e proximidade. É urgente fazer os povos crucificados descerem da cruz. A Teologia da Libertação nos ensinou: “Com os pobres, mas contra a pobreza injusta”.

Para isso, a solidariedade aos povos empobrecidos (opção não só preferencial, mas prioritária) continua necessária, mas é preciso mais. Temos de atacar as raízes do problema: as causas estruturais da pobreza no mundo. Se não lutarmos contra as estruturas sociais e políticas que criam e alimentam os diversos rostos que a pobreza toma, agimos como alguém que quisesse enxugar uma sala molhada, sem antes fechar a torneira.

Desde o começo do seu ministério, em 2013, o saudoso Papa Francisco propôs que a Igreja se colocasse “em saída, ao encontro das periferias do mundo”. Concretamente, Francisco provocou encontros mundiais de representantes de movimentos populares de todo o mundo e propôs como meta da luta contra a pobreza o direito universal aos três T: terra, trabalho e teto.
Neste 2025, 16 de novembro coincide com o 33º Domingo comum do ano, no qual, pela nona vez, a Igreja Católica celebra o Dia Mundial dos Pobres. Neste ano, o tema proposto é “Tu és a minha esperança" (Sl 71,5).

De fato, o aumento descomunal da pobreza no mundo, as discriminações sociais e a perseguição violenta que migrantes e estrangeiros sofrem nos mais diversos países, assim como a proliferação de guerras e conflitos tornam urgente esse chamado. O olhar sobre a realidade, por mais necessário que seja, pode ser desmobilizador e os diagnósticos, pessimistas. A esperança só pode vir da confiança da fé. Podemos dizer “Tu és a nossa esperança”. Concretamente, o Espírito de Amor, no qual esperamos suscita a resistência das comunidades originárias, dos grupos afrodescendentes e dos movimentos populares. Quanto mais dificuldades e obstáculos se agravam, mais expressam alegria e resistência amorosa. Assim, o amor vence a indiferença e a vida vence a morte. Dom Helder Camara repetia sempre: “Quanto mais escura é a noite, mais bela e fulgurante será a aurora”.

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