"Um dos temas mais polêmicos e delicados do livro é o que trata a questão controversa dos cuidados paliativos e da morte assistida. Talvez seja o momento mais nebuloso de minha reflexão, em razão das tremendas resistências que envolvem questão da morte assistida, sobretudo na igreja católica, mas também em determinados profissionais de saúde, que lidam seja com a distanásia ou com a ortotanásia, e sua relação com os cuidados paliativos".
O artigo é de Faustino Teixeira, teólogo e colaborador do IHU e do Canal Paz e Bem.
Faustino Teixeira (Foto: Ricardo Assis/UFJF/divulgação)
O presente texto integra a coluna Vozes de Emaús, que conta com contribuições semanais dos membros do Grupo Emaús. Para saber mais sobre o projeto, acesse aqui.
Acabei de concluir um livro sobre o tema do envelhecimento e morte: A ultima aventura da liberdade: envelhecer e morrer (Editora Recriar – no prelo). O livro compõe-se de oito capítulos, precedidos de uma introdução e de uma apresentação feita por uma amiga querida, professora de educação na UNB: Paula Gomes de Oliveira. O temas abordados são diversificados: cenários do envelhecimento; reflexões a partir da travessia de Rita Lee; os passos e enigmas da vida; o choque do desenraizamento: as casas de acolhida para idosos; morrer e morte na produção cinematográfica; o difícil campo das decisões: cuidados paliativos e morte assistida; Francisco e a cultura do cuidado com os idosos; o humano na teia da vida.
Um dos temas mais polêmicos e delicados do livro é o que trata a questão controversa dos cuidados paliativos e da morte assistida. Talvez seja o momento mais nebuloso de minha reflexão, em razão das tremendas resistências que envolvem questão da morte assistida, sobretudo na igreja católica, mas também em determinados profissionais de saúde, que lidam seja com a distanásia ou com a ortotanásia, e sua relação com os cuidados paliativos.
Recentemente uma das reconhecidas profissionais que lidam com os cuidados paliativos no Brasil manifestou sua resistência à questão. Ela dizia em postagem no Facebook que o crescente debate em torno da “chamada morte assistida” a entristece profundamente. A seu ver, o termo é um “eufemismo para assistência médica para morrer”. Em outro trabalho da profissional ela relaciona a morte assistida ao exercício de matar. Vejo isso como extremamente complicado e equivocado.
Tenho sublinhado em minhas reflexões recentes que a morte assistida deve ser entendida como “ajuda para morrer” e não como “exercício de matar”. No capítulo de meu livro onde abordo o tema – “O difícil campo das decisões...” –, situo as posições de autores sérios, como os teólogos Hans Küng e Vito Mancuso, como também do cardeal Martini, que atuou por longos anos à frente da diocese de Milão, na Itália.
Em obra de 1995 (a tradução italiana é de 1996), Hans Küng e Walter Jens, escreveram um precioso trabalho sobre o tema: Sobre a dignidade do morrer. Uma defesa da liberdade de escolha. Os dois manifestaram com clareza a convicção de que a morte deve ser vivida com dignidade. E reagiam com estranheza ao fato de inúmeras pessoas estavam privadas da possibilidade de decidir sobre o seu destino no momento crucial de sua vida [1]. Ao abordar algumas teses para o esclarecimento da questão da eutanásia, ao final do livro, Hans Küng reage ao que nomeou de “processo de perversão da morte”, que se pode observar por todo lado, em existências vegetativas mantidas por técnicas farmacológicos e recursos artificiais. Sublinha ainda que mesmo as terapias indicadas para o controle ou supressão da dor nem sempre respondem à demanda dos envolvidos. Segundo Küng, as terapias da dor podem ajudar aos pacientes a suportar o estado terminal, mas não pode ser a única solução adequada para as demandas explícitas em favor da vontade de morrer manifesta [2]. Em razão de um desespero existenciado muitos pacientes querem algo a mais do que a medicina paliativa. São pessoas que expressam com clareza o seu cansaço com a vida, frente a tanto sofrimento inútil [3]. Dizia ainda que uma decisão “ilegal” poderia ser uma decisão “moralmente legítima”.
O cardeal Martini, em artigo de janeiro de 2007, defendeu a legitimidade da solicitação feita por Piergiorgio Welby em favor de uma morte digna. O paciente sexagenário, sofria há anos de uma hipertrofia muscular e respirava por meios artificiais. Ele acabou morrendo em 20 de dezembro de 2006. Em sua argumentação, Martini sublinhava a importância de um discernimento particular para o caso, para além de uma regra geral, quase matemática. Defendia para casos semelhantes um discernimento atento, que levasse em conta as “condições concretas, as circunstâncias e as intenções dos sujeitos envolvidos” [4]. Em outra ocasião, o mesmo cardeal sublinhou que “a continuação da vida física humana” não constitui em si “o princípio primeiro e absoluto”, pois o valor absoluto é o da dignidade humana [5].
Em recente colóquio com um amigo querido, Álvaro P. Pires, que atua como docente na Universidade de Otawa no Canadá e é grande especialista em temas relacionados à racionalidade penal, abordamos o tema da morte assistida no processo que envolve o ajudar a morrer. Os dois somos muito críticos com respeito à utilização de terminologias como eutanásia ou suicídio assistido, em razão do peso histórico que tais termos envolvem, e dos preconceitos correlatos. Há que encontrar termos mais propícios, cuidadosos e corteses para lidar com uma questão tão delicada. Gosto de uma expressão utilizada pelo cardeal Martini quando fala em “gesto de abreviar a vida, causando positivamente a morte”. Temos aí, sim, uma linguagem bem mais acolhedora e plausível para lidar com um gesto tão complexo e doloroso.
Partilho aqui algumas reflexões desenvolvidas oralmente por Álvaro Pires durante o nosso colóquio [6]. Ele chamou minha atenção para o termo que vem sendo utilizado hoje no Canadá: “ajuda para morrer”. Para o desenvolvimento de sua reflexão, ele parte da questão dos animais. Diz com pertinência que lidamos com a morte de nossos animais, que são “espécies companheiras”, com menor dificuldade. No caso dos animais, o cuidado envolvido inclui a “eutanásia”. Tudo vem precedido por uma reflexão difícil e uma decisão complexa: “Até quando eu deixo o meu cachorro e o meu gato viverem por causa de mim, porque eu os quero aqui, e até que ponto eu estou pensando, de fato, neles, quando busco prolongar sua vida”.
Com base em reflexão do teólogo belga, Adolphe Gesche (1928-2003), em livro sobre o Mal (GESCHé [7], Álvaro argumenta que sofrimentos profundos que ocorrem com pessoas que passam por situações de terminalidade não se coadunam com a ideia de um Deus misericordioso. E assinala:
“A gente não pode imaginar que Deus, que ama seus filhos e filhas, queira que eles sofram até o último momento da vida orgânica deles, ignorando inclusive os entes queridos que estão em volta. Isso é como se a gente tivesse passando a mensagem eclesiástica, histórica e temporal na frente da mensagem cristã e evangélica mais profunda. Deus não é alguém que ama o sofrimento dos seus filhos e filhas”.
Na clara e precisa visão de Alvaro Pires, ao abordar o tema sem sensibilidade adequada estamos lidando com uma visão de Deus como um ente quantitativo, que guarda vidas, em vez de Deus como um ente qualitativo, que se preocupa de fato com aqueles que ama. Álvaro nos lança uma severa advertência ao abordar o tema. Sublinha que na base de atitudes que buscar prorrogar a vida biológica a todo custo, com ou sem os aparelhos artificiais, está uma atitude egoísta e não altruísta. Concordo plenamente. Qual, de fato, é a motivação que leva alguém a querer atrasar a passagem ou travessia de uma pessoa, quando vive um momento de profunda dor e solidão ? É a questão que permanece acesa para todos nós.
Quando lemos documentos magisteriais como a carta Samaritanus Bonum, da Congregação para a Doutrina da Fé, de 2020 [8], ficamos perplexos com a falta de sensibilidade diante de um tema tão complexo e delicado. O documento simplesmente identifica a eutanásia como um “ato intrinsecamente mau”. Fala-se também em “gesto homicida”. São termos radicalmente inadequados. Além do mais, o documento condena não só os que praticam o ato, mas também aqueles que colaboram de alguma forma com a decisão tomada.
Na abordagem feita por Gesche sobre o mal, há argumentações bem precisas e propícias para um posicionamento alternativo face à visão instaurada e quase naturalizada. Ele abre sua reflexão sinalizando que o mal “é aquilo que mais nos revolta neste mundo” [9]. Diante dele nascem as mais extremas perguntas e questões. Como lidar com o sofrimento do inocente e com a morte antes do tempo ? Estas e outras indagações tocam o nosso coração e suscitam reflexões e posicionamentos. Diante de tantos sofrimentos e dores nos colocamos diante de uma lancinante questão: Como lidar contra um mundo “que parece tornar impossível sustentar que existe um Deus” [10]. Ao verificar a revelação judaico-cristão constatamos, em verdade, que o Deus que ali se manifesta é um “adversário radical do mal” [11].
Seguindo a pista aberta por Gesché podemos nos perguntar se de fato estamos conseguindo alcançar o grito do humano, bem com captar suas reações porque é maculado por um sangramento. Essa dor humana suscita de nossa parte uma resposta. O dado de sua fragilidade exige de nós uma abordagem mais fraterna e sutil, pontuada pelo traço da compaixão e da misericórdia. Como indicou Gesché, o mal-desgraça acabou sendo “ofuscado na história do pensamento cristão”. E ele está aí, diante de nossos olhos: “O mal que desaba sobre o inocente (a fome das crianças, a injustiça do destino de povos inteiros) ou sobre todos e sem discernimento de culpado ou não culpado (a 'injustiça' de uma seca, de uma guerra), isso é verdadeiramente um mal escandaloso” [12]. Podemos aqui acrescentar, sem dúvida, o mal que acomete alguém que vive uma situação terminal dolorosa, que carece de horizontes benignos e alvissareiros.
É aqui que entra, segundo Gesché, o dado fundamental da caridade. Ele lança a pergunta: “A caridade não é o caminho escolhido por Deus na luta contra o mal? [13]” E não é o “traço especificamente cristão” que nos lança avidamente contra o mal mediante a prática do “fazer justiça com amor, com caridade? [14]” São questões fundamentais lançadas pelo teólogo belga e que se encaixam delicadamente no caso daqueles que vivem uma experiência de dor sem futuro. É profundamente plausível conceber a ideia de que, nesses casos concretos, o amor vale mais do que a justiça. Gesche nos adverte que a nossa civilização “está mais preocupada com a justiça do que com a caridade”. Sem dúvida, é o que também penso e acolho com seriedade.
Apesar do magistério católico resistir a temas candentes, com respostas tímidas e tradicionais, há que ousar, tendo em conta o sofrimento em questão. Como mostrou Gesché com pertinência, “a esperança cristã não pode dispensar-se dessa louca sabedoria, de saber que deve resistir a uma fé que se julgaria toda acabada nela e toda dada por ela” [15]. Estamos diante de um desafio essencial: o de recuperar uma ética e estética da “salvação do mal”. Gesché recupera de forma admirável o sentido mais nobre de salvação, que ele identifica como sendo o caminho de uma vida bem sucedida. A salvação pode ser alcançada em seu significado mais positivo. Os termos salvus e salvare indicam expressões que são positivas: forte, sadio, sólido, conservado. Como mostra Gesché, “a salvação é conduzir a própria vida como uma realização de si mesmo e de todas as coisas dentro das finalidades que nos definem” [16].
Ao refletir sobre o mal, Gesché sublinha que o momento presente nos aponta um caminho alternativo, inserindo em nossa reflexão a ideia “louca” de salvação, que não se restringe, absolutamente, ao campo das religiões. Não é apanágio daqueles que crêem mas envolve a todos, no sentido da busca de uma vida bem sucedida [17]. E essa busca de realização de si se dá igualmente na experiência de decisão que envolve aqueles que vivem uma situação limite e buscam pelo direito à acolhida de sua dignidade, de sua opção, e o exercício de sua liberdade. Esse sentido peculiar de salvação vem, assim, ao encontro daqueles que buscam, autenticamente e serenamente, vencer os obstáculos ou se ver livre deles. Isso está profundamente ligado à ideia “primeira e mais ampla de salvação como realização positiva, como plenitude” [18].
[1] Hans Kung; Walter Jeans. Della dignità del morire. Una difesa della libera scelta. 2 ed., Milano: Rizzoli, 2020, p. 24.
[2] Ibidem, p. 148.
[3] Hans Küng. Una bataglia lunga una vita. Milano: Rizzoli, 2014, p. 1065.
[4] Carlos Maria Martini. Io, Welby e la morte. Il sole 24 ore. 21 gennaio 2007.
[5] Apud Vito Mancuso: Aqui. Acesso em 15-09-2025.
[6] A conversa ocorreu pelo WhatsApp em 13-09-2025.
[7] Adolphe Gesché. O mal. São Paulo: Paulinas, 2003 (Coleção Deus por pensar – 5 volumes).
[8] Leia aqui. Acesso em 15-09-2025.
[9] Adolphe Gesché. O mal, p. 9.
[10] Ibidem, p. 17.
[11] Ibidem, p. 65.
[12] Ibidem, p, 117.
[13] Ibidem, p. 87.
[14] Ibidem, p. 151.
[15] Adolphe Gesché. O sentido. São Paulo: Paulinas, 2005, p. 137.
[16] Adolphe Gesché. A destinação. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 25.
[17] Adolphe Gesché. O mal, p. 11.
[18] Adolphe Gesché. A destinação, p. 25.