22 Outubro 2025
- “Os recursos para viver são cada vez mais abundantes, mas estão concentrados nas mãos de muito poucos.”
- “Estou convencido de que a proximidade, o ênfase e a atenção do Santo Padre (Francisco) aos movimentos populares — e espero também a crescente atenção da Cúria Romana — vão marcar este pontificado. Disso estou certo.”
- “As COP não são tanto o lugar para tomar decisões ou fazer compromissos, mas a expressão dos compromissos já assumidos em nível nacional e regional, o colocar em comum o que já foi decidido em cada país.”
A entrevista é de Abraham Canales, publicada por Religión Digital, 21-10-2025.
Após a saudação inicial, recordações e mensagens de amigas em comum, sentamo-nos à mesa de trabalho. Sua vestimenta é a de um prelado simples. Não busca grandes manchetes, mas reflexões de fundo. Um estilo próprio de quem transmite calma e sorri. Apenas a simbólica cruz de madeira, com um prego proveniente de um barco, e seu anel do Concílio Vaticano II o denunciam como cardeal responsável pelo dicastério que escuta o grito sofrido das pessoas e da casa comum.
Eis a entrevista.
Chamou-me muito a atenção — e me parece um sinal importante — o fato de o senhor ter sabido de sua nomeação como cardeal estando no Brasil, na Escola Florestan Fernandes, em Guararema (São Paulo), em uma reunião com movimentos populares, dialogando sobre o Sínodo Amazônico (outubro de 2019). Isso é um sinal muito forte. Como o senhor interpretou aquele momento?
Pareceu-me um momento realmente providencial, que me ajudou a entender o chamado do Papa Francisco, basicamente, a tornar-me mais explicitamente próximo a ele, mais publicamente seu colaborador. E, nesse sentido, associar-me mais claramente ao seu Magistério, aos seus gestos e palavras.
Esse momento inesperado e impreparado me deu paz e selou o fato de me tornar cardeal.
Então, agradeci muito ao Senhor aquela chamada de Roma que chegou na madrugada do primeiro dia de setembro. Por isso, todos os dias seguintes da reunião, dois ou três dias, não me recordo bem — foram, de certo modo, um tipo de retiro com essa música de fundo.
O senhor é uma figura central no nascimento dos encontros mundiais dos movimentos populares. Recorda como foi essa aproximação com os dirigentes da época?
Sim, lembro-me muito bem. Na época, eu trabalhava na Cúria, no Pontifício Conselho Justiça e Paz. Um dia chegou Juan Grabois, enviado pelo Papa Francisco. Não sei exatamente o que o Papa lhe disse, mas posso imaginar. Basicamente, ele se apresentou dizendo: “Aqui estou porque o Papa me enviou e disse que você vai me ajudar”.
Essa foi minha introdução formal ao universo dos movimentos populares. Não porque eu o desconhecesse totalmente, já tinha experiências anteriores, mas por este enfoque explícito e a relação direta com a Igreja. Essa foi a grande novidade.
Desde então, Juan contou comigo em dois aspectos: um prático, apoiar logisticamente os encontros, e outro espiritual, acompanhando a caminhada conjunta.
O Papa não precisou insistir. Era evidente o que queria, e tratei de fazê-lo.
Que impacto têm as 3T — terra, teto e trabalho — na vida da Igreja e na sociedade?
Sempre senti certa divergência, pois gostaria de interpretar a “T” de terra também como “terra e comida”. Isso ajuda a universalizar as 3T, reconhecendo que o mundo será cada vez mais urbano. As 3T, portanto, não devem ser entendidas apenas em chave rural, mas como uma chave interpretativa para diferentes contextos.
Cada país e cada Igreja local encontram suas próprias palavras para expressá-las.
Que disposição o senhor encontra no Papa Leão para continuar com a proximidade aos movimentos populares? Que novos matizes podem surgir?
Estou convencido de que a proximidade e a atenção do Papa aos movimentos populares, e também da Cúria, marcarão este pontificado. Além disso, veremos um novo enfoque na relação entre esses movimentos e as Igrejas locais. Roma talvez não desempenhe mais o mesmo papel de antes.
Começamos aqui, como disse Grabois, “plantando a bandeira”, mas agora a consciência e o protagonismo estão se expandindo pelo mundo.
Este ano o Encontro dos Movimentos Populares acontece em Spin Time, um espaço símbolo de luta por moradia, solidariedade e dignidade. Que relevância tem isso?
A primeira coisa que quero dizer, que você não mencionou, é que Spin Time é um lugar de encontro entre a fé cristã e os movimentos populares, e também entre a Igreja Católica e os movimentos populares.
Spin Time não é uma iniciativa católica oficialmente, mas tem a graça de ser um espaço em que, quase desde o começo, se experimentou esse encontro — não falado, mas vivido. Por isso, Spin Time é um lugar simbólico e muito interessante.
O primeiro encontro dos movimentos populares com o Papa Francisco ocorreu na Aula Velha do Sínodo (outubro de 2024), simbolizando um encontro com a Igreja. Em Spin Time, o encontro é diferente, complementar, e isso me parece extraordinário.
Que papel podem desempenhar hoje os jovens para construir outra forma de fazer política mais ligada à fraternidade e à justiça social?
Têm que fazer o que Jesus fez: expulsar os demônios. Têm que exorcizar a política, ou seja, eliminar os “maus espíritos” dos tempos atuais. Isso não se faz com palavras, slogans ou discursos, mas vivendo uma nova política.
Vivendo a nova política, ela se desenvolve e se manifesta. Não se convence um jovem a abandonar o pessimismo com discursos, mas convidando-o a caminhar junto, no sentido sinodal, descobrindo, no caminhar, que a vida se realiza vivendo pelos outros. Assim se abre o mundo real, o mundo cristão, o mundo futuro.
Reconheço que é um momento de desesperança, mas depois de tantos anos vejo que a política deteriorou-se. A política é o sistema que desenvolvemos para assumir juntos a responsabilidade por nossa vida e pela casa comum.
E quanto aos jovens que já se comprometem na política e nos movimentos populares? Que contribuição eles trazem à missão da Igreja e ao bem comum?
Vivem, implícita ou explicitamente, o ensinamento de Jesus: que a vida se encontra quando se doa. Tenho a impressão e a esperança de que os jovens estão vivendo mais do que conseguem expressar.
O velho discurso político está vazio e desprestigiado, não há nada novo.
A nova política se desenvolve silenciosamente em lugares como Spin Time, no voluntariado, no ativismo pela paz e no cuidado da casa comum. Nessas experiências de vida pelos outros encontramos Jesus, porque Ele prometeu estar ali.
Estamos vendo uma criminalização da solidariedade com os migrantes e o fechamento de fronteiras. Como a Igreja deve responder a isso?
Continuando a acolher, proteger e acompanhar os migrantes. Não há mistério sobre o que devemos fazer. Os esforços que se fazem no Mediterrâneo e em outras fronteiras violentas são claros: é preciso perseverar na acolhida fraterna.
Perseverar no serviço desinteressado e generoso, com valentia, é o que devemos fazer em nome de Deus e da humanidade. As migrações são um sinal de nosso tempo.
Também o tema do clima preocupa. Estamos às portas da COP30 no Brasil. Que urgência se apresenta para a Igreja?
As cúpulas, as COP, não são tanto o lugar para decidir, mas para expressar compromissos já assumidos. Nossa atenção deve se concentrar nas políticas e compromissos nacionais.
Das três T, o trabalho talvez seja a mais importante no Magistério Social da Igreja. No entanto, para muitos trabalhadores, jovens, mulheres e migrantes, hoje ele significa precariedade e salários injustos. O que a Igreja propõe para que o trabalho volte a ser um espaço de humanidade e dignidade?
A Igreja continua fazendo o que Leão XIII iniciou: reconhecer o mundo do trabalho como campo de fé, evangelização e caridade. O trabalho digno está no centro da vida humana e da vocação cristã.
Não se trata apenas de economia ou distribuição, mas do coração do humano: como desenvolver o dom de Deus que é nossa vida e devolvê-lo a Ele no final.
A Igreja está interessada no trabalho de cada homem e de cada mulher sobre a terra.
O desafio é reconectar o trabalho necessário com os recursos para viver. Hoje, os recursos são cada vez mais abundantes, mas concentrados nas mãos de poucos uma contradição total.
No quarto Encontro dos Movimentos Populares, o Papa Francisco propôs duas medidas concretas: a redução da jornada de trabalho e a criação de uma renda básica universal. Essas propostas continuam válidas?
Sim, continuam na agenda e permanecem válidas neste tempo de mudanças.
Como o senhor avalia o compromisso dos movimentos populares em impulsionar novas formas de economia — social, solidária e popular?
Não há resposta única. Cada esforço é necessário para ver até onde podemos chegar. Ainda não sabemos como exercer a responsabilidade compartilhada, ou seja, a política, nem como distribuir os recursos e gerar trabalho digno. São desafios enormes.
É preciso reconfigurar o sistema, não apenas falando, mas caminhando juntos. Nesse sentido, os movimentos populares, que não apenas falam, mas agem — são uma contribuição muito importante.
Que mensagem o senhor deseja dirigir aos movimentos populares que se reunirão em Roma em outubro?
Uma palavra: esperança.
E que palavras de esperança o senhor deixaria aos jovens, crentes ou não, que buscam justiça e dignidade em um mundo ferido?
Continuem caminhando. O Sínodo é uma nova forma de compreender não só a vida da Igreja, mas a própria vida. Os jovens o reconhecem quando o experimentam: a vida real consiste em caminhar juntos.
Não é fácil encontrar caminhos comuns, mas é a única possibilidade. Precisamos aprender a escutar uns aos outros enquanto caminhamos. E os jovens que começam a fazê-lo, seja por convite da Igreja ou por outros motivos, estão preparando o futuro.
Muito obrigado por seu trabalho, por seu compromisso e por seu tempo.
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